Nas últimas semanas, o pontificado de Bento XVI tem sido colocado à prova diante de centenas de denúncias de abusos sexuais cometidos por religiosos católicos na Alemanha, sua terra natal. Não bastasse o escândalo, que descortina uma sucessão de histórias sórdidas, o manto papal foi definitivamente maculado quando começaram a pesar sobre o sumo pontífice incômodas acusações de conivência com os supostos crimes.

Em 1996, ainda cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e homem forte de João Paulo II, ele teria feito vista grossa para mais de 100 denúncias de pedofilia que incriminavam o padre americano Lawrence Murphy, acusado de molestar crianças com deficiência auditiva. Em 1980, ainda bispo de Munique, o religioso teria optado pelo afastamento, e não pela denúncia formal, do sacerdote alemão Peter Hullermann, um notório pedófilo. Também paira sobre Bento XVI a suspeita de que ele saberia dos abusos no tradicional coral Regensburger Domspatzen, dirigido por seu irmão Georg Ratzinger, de 1964 a 1994. Em meio a essa névoa de desconfiança, o mundo fica cada vez mais reticente diante do chefe supremo da Igreja Católica, alvo de críticas incisivas e inclementes de vários setores da sociedade, que chegam a pedir seu afastamento do cargo. Tudo em vão. Na condição de papa, Bento XVI é inatingível pela justiça dos homens.

E o único homem do mundo que só responde a Deus. “Está no cânone 1404 do Código do Direito Canônico: a primeira sede por ninguém é julgada”, recita em latim o cônego Celso Pedro da Silva, teólogo e reitor da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Unifai), em São Paulo. Primeira sede, no caso, é a Santa Sé, representada exclusivamente pelo papa. A razão para tanto poder concentrado em uma única pessoa se explica. O sumo pontífice vive o legado direto de Jesus, que, inicialmente, confiou a Igreja ao apóstolo Pedro. Desde a morte de Pedro, em 67 d.C., pratica-se o ritual sucessório de acordo com ordens deixadas pelo próprio Cristo. Outro cânone, de número 331, especifica os poderes dos sucessores do primeiro sumo pontífice: “tem na Igreja o poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal”.

Trocando em miúdos, não presta contas a ninguém, age como bem entender e não está sujeito sequer às interferências da instituição que o colocou no cargo, que não tem poder para tirá-lo da função. A única pessoa apta a questionar o papa é o próprio papa, que, em última instância, pode renunciar. Era de esperar que, na justiça dos homens, a situação fosse diferente. Mas não é. O líder máximo dos católicos permanece intocável diante das leis de qualquer país ou instituição. “Juridicamente, a condição do papa é estranha até para nós”, explica o advogado George Niaradi, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil e presidente da Comissão de Relações Internacionais. Segundo Niaradi, o religioso goza da imunidade diplomática dos chefes de Estado, com a diferença de que seu cargo é vitalício.

A prerrogativa foi estabelecida pelas Convenções de Viena de 1961 e 1963, que regulamentaram privilégios dessa natureza. “Para processá-lo, o sujeito precisa primeiro questionar a imunidade diplomática e ganhar”, afirma Niaradi. Esse movimento, porém, praticamente não existe. E a razão é simples. O país que revogar a imunidade papal deve revogar as Convenções de Viena integralmente. E não há nação disposta a enfrentar esse desgaste, embora algumas cortes nos Estados Unidos, por exemplo, tenham tentado. “Em 1994 houve um caso no Estado do Texas”, diz Niaradi. Lá, processos contra os papas João Paulo II e Bento XVI por suposta manobra para acobertar padres pedófilos foram indeferidos pela corte. Os sacerdotes acusados foram responsabilizados, mas João Paulo II e Bento XVI não foram incluídos nos autos por “incompatibilidade com os interesses de política externa dos Estados Unidos”. Enquanto o papa deve atravessar incólume os escândalos, apesar da imagem chamuscada, os sacerdotes podem responder pelo crime de pedofilia.

A Igreja, porém, tem dificultado ações nesse sentido. O comportamento da instituição ao identificar um padre pedófilo tem sido o de manter sigilo, acobertar o caso e transferir o agressor. Em última instância, cogita- se a excomunhão, mas, de maneira geral, o arrependimento do criminoso e sua mudança de paróquia enterram a questão. É que para a hierarquia católica, além de ser moralmente delicados, esses casos de abusos podem sair muito caros.

Estima-se que só nos Estados Unidos, por exemplo, US$ 2,5 bilhões (R$ 4,4 bilhões) tenham sido pagos em indenizações às vítimas de sacerdotes. A Igreja também se recusa a discutir o celibato, muitas vezes associado aos casos de abusos sexuais. Mas a pressão pública para que as histórias venham à tona e os responsáveis sejam punidos é tamanha que o Vaticano teve de se mexer. Na Alemanha, a Igreja criou na semana passada uma caixa postal e um disque-denúncia para apurar as acusações. Foram 50 ligações só no primeiro dia.

Na Irlanda, o clima é tenso desde novembro de 2009, quando o “Relatório da Comissão Murphy” mostrou que entre 1975 e 2004 houve um esforço “obsessivo” da Igreja Católica para acobertar casos de pedofilia. A repercussão foi tamanha que a primeira carta oficial do Vaticano a tratar exclusivamente do abuso de crianças foi endereçada ao país bretão. “O papa observa que o abuso sexual de crianças e adolescentes não é só um crime hediondo, mas um pecado grave que ofende a Deus e fere a dignidade do ser humano”, diz o texto, tornado público no dia 20 de março. Apesar do esforço em contrário, Bento XVI corre o risco de entrar para a história como o papa dos escândalos de pedofilia.

Cabe a ele jogar luz sobre as sombras que rondam seu passado e o da instituição da qual é soberano. Para que tanto poder seja usado de acordo com um dos pilares do cristianismo, que é o de fazer o bem.

Fonte: Revista Isto É

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