Duas províncias argentinas (Mendoza e Buenos Aires) investigam mais de 30 denúncias de abusos sexuais de menores deficientes auditivos internados em distintas filiais do Instituto Antonio Provolo —instituição privada, porém vinculada à Igreja Católica.

Sediada na Itália e com filiais em países latinos, a entidade é especialista em tratar de crianças surdas dos 7 aos 15 anos.

[img align=left width=300]http://www.folhagospel.com/imagem/pedofilia_crianca_2.jpg[/img]Em dezembro último, foram detidos dois religiosos sobre os quais recaem as principais acusações. Trata-se do italiano Nicola Corradi, 82, e do argentino Horacio Corbacho, 56. Além deles, também estão presos outros três funcionários da sede do instituto em Mendoza.

“Eles responderão a processo por abuso sexual triplamente agravado”, afirma à Folha de São Paulo o promotor Fernando Cartasegna. “Além de as vítimas serem menores de idade, são deficientes auditivas, portanto com pouca chance de compreensão e de defesa, e estavam sob a guarda desses homens.” Segundo o promotor, as penas podem variar de 8 a 20 anos.

O caso veio à tona há dois anos, quando uma associação de vítimas em Washington enviou uma indagação à Argentina sobre o paradeiro de Corradi, procurado pela Justiça italiana desde os anos 60 por acusações de estupro de menores quando trabalhava no Provolo de Verona.

A Itália investigava desde 2009 mais de 50 religiosos, e Corradi era um dos únicos não localizados. Descobriu-se, então, que ele seguia em atividade, no Provolo da pequena Luján de Cuyo, na província de Mendoza.

“Em vez de puni-lo, a igreja preferiu transferi-lo para a Argentina, em 1984. Primeiro, Corradi foi para o Provolo de La Plata [capital da província de Buenos Aires], onde esteve até 1997, quando se transferiu para Mendoza. Em ambos os locais seguiu atuando da mesma forma”, diz Cartasegna.

O caso vem na sequência da série de acusações que se fez depois que o filme “Spotlight” —sobre abusos de religiosos nos EUA e que ganhou o Oscar em 2016—, em seus créditos finais, apontou que havia sete casos na Argentina. Desses, seis religiosos foram condenados (um deles morreu), e apenas um ainda não recebeu sentença.

Assim como no filme, em que uma denúncia abriu caminho para o surgimento de outras, as procuradorias de Mendoza e de La Plata começaram a receber depoimentos relacionados ao Provolo.

“Acreditamos que possam ser mais de 60 casos”, afirma o promotor. Entre as descrições relatadas está a de como era feita a seleção dos menores que seriam abusados, sempre no momento em que tomavam banho em conjunto. Segundo os depoimentos, eles eram retirados da ducha e levados a outro espaço.

Outras vítimas relataram que alguns abusos aconteciam no meio da noite, quando os padres entravam de surpresa no quarto dos garotos, ou, ainda, que eram levados em duplas, para que uma criança praticasse sexo oral na outra, enquanto os religiosos assistiam. Durante o ato, os aparelhos de audição usados pelas vítimas eram arrancados.

“É um processo difícil de investigar, porque muitos já são adultos e estão casados, não querem fazer a denúncia. Entre os que querem, há dificuldades de logística, pois os religiosos preferiam escolher crianças órfãs e de províncias distantes”, conta Cartasegna.

Porém, as promotorias de Mendoza e La Plata se organizaram para receber as denúncias, que agora ocorrem com auxílio de um tradutor da língua de sinais e de um psicólogo, que ajuda a conduzir a sessão quando as vítimas não se sentem bem.

Nas próximas semanas, duas vítimas se apresentarão em La Plata para juntar mais denúncias contra Corradi. Uma delas é Daniel Sgardelis, hoje com 42 anos, que vive na cidade de Salta, no noroeste do país.

[b]IGREJA
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Nem Corradi nem Corbacho fizeram declarações sobre as acusações. Embora o arcebispo de La Plata tenha dito que preferia que as investigações fossem feitas pela própria igreja, e não pela Justiça, não se negou a oferecer informações. “Tudo o que perguntei foi respondido, por enquanto não estou encontrando dificuldades com a igreja”, disse Cartasegna.

De Roma, nos primeiros dias do ano, o papa Francisco solidarizou-se com as vítimas de abusos. “A igreja pede perdão e se une à dor das vítimas. Escutemos o choro e os gemidos dessas crianças, escutemos também o choro e o gemido de nossa igreja, que sofre diante da dor causada aos pequenos por alguns de seus membros.”

Já o Instituto Provolo argentino declarou na última semana que pedirá a saída dos religiosos da instituição e que o gerenciamento das sedes seja compartilhado com o Estado.

[b]’MONSTRO’
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Daniel Sgardelis tem 42 anos e é cabeleireiro. Entre os anos de 1982 e 1991, esteve no Instituto Provolo de La Plata, onde conta ter sido abusado sexualmente diversas vezes.

“Enquanto estive aí, era um menino triste, comia pouco. Mas nunca tive coragem de denunciar, nem de contar para os meus pais. Demorei muito para me abrir, mas agora não só quero denunciar como pedir que as outras vítimas também denunciem”, disse à Folha, por meio de um chat virtual por escrito —Sgardelis é deficiente auditivo.

Há quatro anos, ele gravou um vídeo relatando, em língua de sinais, os abusos. Jogou no YouTube e divulgou nas redes sociais. “Mas ninguém deu a menor bola”, lembra ele.

Depois que o filme “Spotlight” deu projeção à causa, contando a história de padres abusadores em Boston, nos Estados Unidos, as coisas começaram a mudar.

Sgardelis passou a receber algumas mensagens. “Mas muita gente ainda tem medo. Sei que seguem sofrendo, mas não têm coragem de falar. Eu não tenho porque percebi que os abusos acabaram com a minha vida, me jogaram num poço escuro. E eu não quero que a mesma coisa ocorra com outros garotos.”

Na cidade de Salta, Sgardelis já deu seu primeiro depoimento via teleconferência, mas irá nas próximas semanas a La Plata para dar o testemunho ao vivo.

“E não só isso, quero me reencontrar com os meus colegas do Instituto que moram lá e incentivá-los a apresentar denúncia. São muitos casos. Me comprometi com a procuradoria que ajudaria a fazer com que viessem à luz.”

Ele conta que o primeiro abuso ocorreu quando chegou ao local, e que se repetiram durante todo o tempo em que esteve lá. “Quando minha mãe soube, sofreu muito, porque ela pagava mensalmente aquele lugar para que me torturassem.”

Sgardelis disse que se lembra de Corradi como “uma pessoa de duas caras”. “A comunidade gostava dele, era simpático, mas, da porta para dentro, era um monstro”.

Ele lembra ainda que os garotos eram proibidos de usar a língua de sinais na instituição, para que se forçasse o aprendizado da fala.

“Mas isso apenas fazia com que ficássemos mais impotentes, até para conversarmos entre nós e compartilhar o que nos estava acontecendo. Eu gostaria de pedir que essa proibição caísse e, ao contrário, que se estimulasse mais a comunicação lá dentro”, conta.

[b]Fonte: Folha de São Paulo[/b]

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