Muitos brasileiros que jogam por clubes de futebol europeus são membros de congregações pentecostais e estão determinados a divulgar sua fé. Apesar dos jogadores terem que doar um décimo de sua renda considerável para suas igrejas, eles freqüentemente não sabem onde vai parar o dinheiro. O Jogador do Ano pela Fifa, Kaká (foto) do Milan, envia cerca de US$ 1,1 milhão para o Brasil a cada ano.

Marcelo Bordon, um zagueiro de futebol, é um verdadeiro urso. Ele está sentado no restaurante de propriedade do Schalke 04, o time da Bundesliga (o campeonato alemão de futebol) no qual joga. Com seu cabelo alisado para trás, corpo musculoso e tatuagens, ele poderia facilmente se passar por um guarda de prisão em Nova Jersey. Mas ele fala suavemente, explicando o amor que o ajuda quando está em dificuldades, e sobre aquele que sempre esteve lá para ajudá-lo, desde que entrou na sua vida.

Bordon fala do Espírito Santo.

O brasileiro de Ribeirão Preto, que veio para a Alemanha em 1999, é um evangélico. Ele é membro de uma igreja pentecostal carismática, que prega um respeito rígido à Bíblia e um “relacionamento pessoal com Deus”. Esta é, segundo ele, a única igreja verdadeira de Jesus Cristo. Bordon, 32 anos, exibe uma tatuagem entre seus ombros, com as palavras “Jesus é minha Força” gravadas em sua pele em letra ornada.

A Bíblia nos diz para sermos soldados de Deus, ele diz, tomando um suco de maçã.

Cerca de 35 milhões de brasileiros – quase um entre cinco – são evangélicos. O número deles cresce em dois milhões ao ano, e 70% deles são, como Bordon, membros de congregações pentecostais carismáticas.

Há 40 anos, o Brasil ainda era um país 90% católico. Mas agora que os evangélicos mudaram seu foco da conversão dos pobres para a pregação de que a riqueza e o consumo são sinais de verdadeira fé, eles estão começando a ter apelo junto a artistas, políticos e atletas bem remunerados. Os jogadores de futebol, uma das exportações mais bem-sucedidas do Brasil, estão levando sua fé para o mundo.

No passado, eram jogadores como Jorginho e Paulo Sérgio do Bayer Leverkusen que convidavam publicamente outros jogadores para participarem dos grupos de discussão da Bíblia. Depois disso, jogadores como Zé Roberto e Lúcio do Bayern de Munique, ou Cacau do Stuttgart, exibiam suas camisetas brancas com frases como “Jesus Te Ama” após cada gol em uma partida da Bundesliga. Eles tiravam mecanicamente a camisa do seu time que vestiam sobre suas camisetas de Jesus.

Agora que a Fifa, a federação internacional de futebol, proibiu toda declaração política e religiosa no material esportivo dos jogadores, os evangélicos passaram a celebrar de forma mais discreta. O meio-campista Gilberto, que jogou pelo Hertha BSC de Berlim até janeiro, agora reza em Londres, no Tottenham Hotspur, o jogador Edmílson ora em Villarreal, Espanha, Cris, em Lyon, Luisão, em Lisboa, e o astro Kaká, em Milão.

Eles pregam com a ajuda do ouro brasileiro, o futebol, que une as pessoas. Do ponto de vista das congregações, é uma estratégia de marketing eficaz.

As igrejas do movimento pentecostal carismático, que se espalharam pelo Brasil vindas dos Estados Unidos na primeira metade do século 20, se chamam Assembléias de Deus, Renascer em Cristo ou Igreja Universal do Reino de Deus. Algumas já se espalharam para mais de 70 países. Todos os membros compartilham a crença de que Jesus entrou em seus corpos na forma do Espírito Santo.

Bordon, o capitão do Schalke, se juntou a outros evangélicos na Bundesliga, assim como cerca de 100 outros atletas do Brasil e formaram uma organização chamada Atletas de Cristo. A missão deles, como declarada em seu site, é converter o mundo ao cristianismo. Quando dispõe de tempo, Bordon se encontra com seus irmãos para cultos religiosos.

No campo de treinamento, Bordon convidou o manager do Schalke, Andreas Müller, um mórmon, para participar de um círculo bíblico. O trabalho missionário faz parte do compromisso assumido por Bordon quando foi para a Europa como um atleta de Cristo. “Deus queria que eu viesse para a Alemanha para espalhar sua palavra”, ele diz.

Bordon já teve um bate-boca com seu companheiro de equipe Frank Rost. O goleiro, atualmente no Hamburgo SV, disse que o capitão tentou voltar outros jogadores contra ele por ter se recusado a orar com Bordon. Rost alega que Bordon disse aos treinadores e managers que ele, Rost, o embaraçava por estar possuído pelo diabo.

O jogador brasileiro nega. Rost e Bordon, com suas personalidades completamente diferentes, simplesmente eram incompatíveis, diz Müller. Mas o ex-atacante Ailton do Schalke também diz que ocorreram discussões com Bordon que quase acabaram em socos. Segundo Ailton, Bordon o acusou de não ter um relacionamento pessoal com Deus e, em conseqüência, abrir o caminho para o diabo ter acesso ao time. Mas, segundo Ailton, ele simplesmente não acreditava na versão de Bordon para a salvação.

‘O dia mais comovente da minha vida’

Ailton não permitiu que o Espírito Santo entrasse em sua vida, diz Bordon. Para ele, isso aconteceu em 1994. Ele estava sentado na última fileira de uma pequena igreja em São Paulo. Os amigos o convenceram a ir junto. Ele começou a sentir um calor em suas pernas, ele diz, naquele que considera “o dia mais comovente da minha vida”.

De repente, como recorda Bordon, seus pés começaram a bater no chão, como se tivessem vontade própria, primeiro lentamente, e depois cada vez mais rápido. Todos na congregação de 400 pessoas olharam para ele, mas o pastor disse que deviam deixá-lo marchar.

Àquela altura, diz Bordon, ele tinha conseguido tudo o que tinha sonhado na infância: dinheiro, reconhecimento e belas mulheres. Mas ele não se sentia realizado.

As congregações pentecostais visam membros da classe média alta brasileira. Parte de seu objetivo, aparentemente, é assegurar as doações dos cidadãos em boa situação financeira. No passado, os membros eram proibidos de beber álcool, fumar, assistir televisão ou irem ao cinema ou teatro. Atualmente as igrejas evangélicas pregam que a riqueza e o divertimento são compatíveis com um estilo de vida cristão. Isso torna a fé mais atraente.

Os membros da igreja até mesmo acreditam que a riqueza material é uma recompensa por levarem uma vida temente a Deus. Por outro lado, eles também devem se tornar ricos para serem bons cristãos, a lógica sendo a de que os ricos podem doar mais dinheiro, e que aqueles que doam grandes somas de dinheiro são boas pessoas.

‘Esta fé na riqueza é viciante’

Esta expansão das igrejas evangélicas carismáticas preocupa Reinhard Hempelmann, diretor do Centro Protestante para Assuntos Religiosos e Ideológicos, em Berlim. “Esta fé na riqueza é viciante.” Talvez Hempelmann, na condição de teólogo, não seja totalmente neutro nesta questão. Ele está familiarizado com os problemas das igrejas tradicionais, que estão perdendo mais e mais fiéis, alguns para as comunidades pentecostais. Todo o ser humano tem o direito de escolher seu lugar de adoração, diz Hempelmann, mas ele desaprova a noção de comprar a salvação.

Bordon está familiarizado com essas críticas. Ele pergunta o que há de errado em ajudar os membros mais fracos da sociedade a ganharem estrutura em suas vidas. Os evangélicos doam 10% de sua renda para a igreja e acreditam que quanto maior a oferta, maiores são suas chances de assegurar felicidade e sucesso. Segundo estimativas do Brasil, o Jogador do Ano pela Fifa, Kaká do Milan, envia cerca de US$ 1,1 milhão para o Brasil a cada ano. É visto como um sinal de Deus – e de que ele provavelmente doou muito pouco – quando um jogador não tem sucesso ou se machuca. A oferta de 10% da renda é um “sinal da lealdade do homem a Deus”, prega a Igreja Universal.

Aqueles que se recusam a pagar estão enganando a Deus e podem esperar que o diabo domine suas vidas. Isso é apenas uma teologia de acúmulo de riqueza, dizem sarcasticamente críticos como Alexandre Fonseca, da Universidade de São Paulo.

Os membros não sabem o que acontece exatamente com suas doações, que pagam até com cartão de crédito ou cartão de débito. Bordon diz que não tem como monitorar o que acontece com seu dinheiro. Ele presume que é investido em centros comunitários nas áreas pobres, em comida para os irmãos e irmãs e em educação. “Mas confiar não faz parte da fé?” ele pergunta.

Em 2005, um bispo evangélico foi preso quando seu jato particular pousou em Brasília. A polícia revistou sua bagagem e apreendeu sete mala cheias com aproximadamente R$ 10 milhões em notas pequenas. O bispo, Ramos da Silva, explicou que dinheiro era o dízimo do fim de semana das congregações da região amazônica, uma das mais pobres do Brasil.

Um ano e meio atrás, a polícia nos Estados Unidos prendeu Estevam e Sônia Hernandes, o casal que fundou a Igreja Renascer em Cristo, com US$ 56 mil em sua bagagem. Eles foram sentenciados a cinco meses de prisão por contrabando de dinheiro ao país. Eles estão sob investigação no Brasil por lavagem de dinheiro. O Ministério Público de São Paulo também contatou as autoridades na Itália para levantar o relacionamento entre o jogador Kaká e o casal de bispos, cujo patrimônio é estimado em US$ 75 milhões.

Acredita-se que Kaká também visitava frequentemente o casal Hernandes na mansão deles em São Paulo. Ele doou o troféu que recebeu da Fifa em dezembro para a Igreja, durante uma cerimônia. Ele agora está exibido no principal prédio da Igreja, em São Paulo, onde Kaká se casou em 2005. A lista de convidados incluiu Ronaldo, o ex-jogador da Seleção Brasileira, e Zé Roberto, do Bayern de Munique. Os filhos do casal Hernandes foram os padrinhos. Kaká não se impressionou com as acusações contra os líderes de sua Igreja. “Eu nunca, nem por um momento, questiono a honestidade e integridade deles”, ele disse, mesmo após a condenação dos bispos.

Construindo um império de mídia

Bordon diz que soube dos problemas na Renascer em Cristo, mas que não sabe o que pensar a respeito. O que é importante para ele, ele diz, é que seus companheiros encontrem o caminho para o Senhor.

O jogador do Bayern de Munique, Lúcio, não tem receio em promover sua fé. O Audi que dirige, que é de propriedade do clube, está adornado com um adesivo que proclama seu lema: “Jesus Te Ama”. A direção do clube, incluindo o manager Uli Hoeness, não se incomoda com isso. Para eles, os brasileiros são atletas profissionais modelos. Eles não deixam as festas de Natal do clube mais cedo para passar a noite farreando em clubes, possuem vida familiar estável e não se embebedam na Oktoberfest anual.

Os evangélicos construíram um pequeno império de mídia no Brasil. Em 1989, a Igreja Universal do Reino de Deus comprou a Record, uma rede de rádio e televisão, pelo equivalente a US$ 62 milhões. Ela agora é dona de cerca de 60 emissoras de rádio, um jornal, uma editora e uma gravadora especializada em música gospel.

A TV Record exibe regularmente os cultos religiosos. Ela conseguiu atrair importantes apresentadores de emissoras rivais, enquanto autores conhecidos fornecem roteiros para suas novelas. Hoje a Record é a segunda maior rede de televisão do Brasil e tem planos para desenvolver uma espécie de versão pentecostal carismática da CNN, que transmitiria em espanhol e inglês. Assim, diz Edir Macedo Bezerra, o fundador da Igreja Universal, o evangelho pode ser “pregado para todos os cantos da Terra”.

Mas até que a emissora possa rodar o mundo, os membros da Igreja ainda pregam em ginásios ou salões de conferência não adornados, como fizeram em uma tarde de domingo, no segundo andar de um prédio comercial no distrito de Zuffenhausen, em Stuttgart, em nome da comunidade cristão evangélica brasileira. O sol está brilhando pelas janelas, algumas poucas velas decoram a sala, há uma bateria montada no palco e o assoalho foi varrido. Centenas de fiéis vieram ao culto. Um homem usando óculos com armação prateada e uma camisa xadrez está em pé à frente. Seu nome é Jeronimo Maria Barreto Claudemir da Silva, mais conhecido como Cacau, e é atacante do Stuttgart, um time da Bundesliga, há cinco anos.

Os jogadores de futebol são os astros nas congregações evangélicas alemãs. Após dizerem algumas poucas palavras de saudação em português, que um intérprete traduz para os alemães presentes, Cacau, 27 anos, pede que todos abracem uns aos outros. Isso é seguido por cantos, dança e bater de palmas. Então o jogador de futebol profissional diz uma oração em tom sereno. A congregação chora e os fiéis pressionam suas mãos contra os olhos ou erguem seus braços no ar. “Em nome do Senhor, aleluia!” eles gritam.

Em 10 minutos, Cacau, um jogador tímido, se transforma no condutor de um show emotivo.

Aos 13 anos, o atacante diz depois, ele foi recrutado pelo Palmeiras em São Paulo, mas foi descartado quando um novo técnico foi contratado. Sua autoconfiança desapareceu. Seu irmão estava fazendo uma visita a ele na época, diz Cacau, um irmão que era viciado em bares e clubes. “Mas de repente ele parecia diferente. Então maduro e equilibrado. Ele me disse que seu comportamento era por causa de Jesus. Ele me levou aos cultos. Antes disso, eu acreditava que o futebol era o centro da minha vida.”

Cacau diz que aceitou Jesus como seu salvador. Ele diz isso de imediato e com entusiasmo, mas não tenta promover sua fé dentro da equipe. Não, segundo ele, por ter vergonha. Ele simplesmente não quer pressionar ninguém.

Fonte: Der Spiegel

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