O governo italiano sabia que a regulamentação dos casais de fato provocaria um conflito com a Igreja Católica. Mas não esperava uma resistência tão dura quanto a apresentada pelo Vaticano e os bispos. Bispos preparam documento que proíbe aos católicos apoiar o projeto.

A Conferência Episcopal adotou o tom de um quarto de século atrás, quando se discutiu a lei do aborto, e ameaça emitir um documento para informar aos fiéis, incluindo os políticos, de que apoiar o projeto governamental representa descumprir pontos essenciais da doutrina católica, com as conseqüências que isso envolve. O próprio papa Bento 16 denunciou no sábado a existência de uma campanha internacional para a destruição da família. O projeto de lei chega nesta terça-feira ao Parlamento.

O presidente da República, Giorgio Napolitano, e o primeiro-ministro Romano Prodi se reuniram na segunda-feira com o secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Tarsicio Bertone, e com o presidente da Conferência Episcopal, cardeal Camillo Ruini, para tentar abrir alguma forma de diálogo.

Comemorava-se o aniversário dos Pactos Lateranenses, pelos quais o papado renunciou aos Estados Pontifícios, e organizou-se um encontro privado Prodi-Bertone durante a cerimônia. Sob a cordialidade diplomática não se percebeu a menor aproximação.

Prodi é católico praticante. Quando enfrentou a necessidade de regular legalmente a convivência fora do matrimônio, uma questão incluída em seu programa e reivindicada por seus aliados de esquerda, que na Itália afeta mais de 500 mil casais, tomou todas as precauções possíveis. Um dos redatores foi a ministra Rosy Bindi, católica estrita – mantém o voto de castidade desde a juventude – e muito bem relacionada com os meios eclesiásticos. Bindi evitou incluir no projeto a palavra “casais”, que poderia soar “matrimonial” demais, e insistiu em que não se propusesse sequer a criação de uma forma de convivência alternativa ao matrimônio, mas “o desenvolvimento de uma série de direitos individuais”. A possibilidade de que os casais de fato pudessem adotar crianças ficou absolutamente descartada.

Mas as cautelas foram inúteis. A contestação por parte do Vaticano e da Conferência Episcopal foi imediata. Ruini mencionou inclusive a expressão “non possumus”, utilizada por Pio 9º quando se negou a aceitar a perda dos Estados Pontifícios e proibiu que os católicos participassem das eleições, criando um confronto que só terminou meio século depois, exatamente com os Pactos Lateranenses negociados por Benito Mussolini. As palavras “non possumus” lembram na Itália anos muito difíceis.

Ruini anunciou a próxima publicação por parte dos bispos de “uma nota oficial de cumprimento obrigatório para os que recebem o magistério da igreja”. A ameaça causou espanto em amplos setores do catolicismo, temerosos das conseqüências de um ditame religioso. Pouco depois, um grupo de intelectuais católicos assinou um manifesto no qual se pedia a Ruini que não fomentasse confrontos civis.

A negativa taxativa da igreja a aceitar o projeto de lei abriu fissuras gravíssimas no próprio governo. O ministro da Justiça, Clemente Mastella, centrista e católico, negou-se a participar do Conselho de Ministros que aprovou o rascunho e anunciou que votaria contra no Parlamento. “Confio que o Senado rejeitará o texto”, disse na segunda-feira mastella, que como ministro da Justiça seria o responsável teórico pela aplicação da lei.

Em ocasiões anteriores, Prodi havia utilizado seus contatos pessoais com a hierarquia católica: o cardeal Ruini foi quem oficiou seu casamento, e durante anos houve entre eles uma certa amizade. Mas os canais de comunicação foram interrompidos. Ruini está prestes a deixar a presidência da CEI por razões de idade e não quer sair sem uma última batalha triunfal.

Nos meios vaticanos especula-se com a possibilidade de que o papa conceda uma prorrogação de alguns meses a Ruini com o fim de lhe dar tempo de encabeçar a resistência contra a lei.

O apoio de Bento 16 a Ruini é público e absoluto. O papa levantou a bandeira da família. “A família dá sinais de quebra sob a pressão de lobbies que contam com capacidade para incidir nos processos legislativos”, denunciou no sábado. O papa não esclareceu quais são esses lobbies, mas o fizeram por ele fontes oficiosas do Vaticano e o escritor Vittorio Messori, autor de livros-entrevistas com João Paulo 2º e Bento 16 e amigo pessoal de Joseph Ratzinger. “A Organização Mundial da Saúde, certos setores da maçonaria, as organizações de homossexuais, as organizações ecologistas que odeiam o catolicismo porque sentem nostalgia do paganismo, os círculos liberal radicais e a grande indústria farmacêutica, que obtém lucros formidáveis da venda de pílulas anticoncepcionais e preservativos.” Essa é, segundo Messori, a rede que pressiona governos e parlamentos para “erodir a família”.

Contorções sintáticas

O projeto de lei italiano sobre casais de fato é um prodígio de contorções sintáticas. No artigo primeiro, por exemplo, a expressão “os dois conviventes juntos” foi substituída por “contextualmente por ambos os conviventes”, a pedido dos ministros católicos que desejavam obscurecer o texto o quanto possível.

O projeto evita em toda a sua redação utilizar a palavra “casal”, por temer que seja relacionada a “casamento”. Não esclarece como se realiza – ou mesmo se deve se realizar – uma inscrição no registro público que deve ser feita com “ambos os conviventes”. Para isso utiliza-se o termo “declaração” e parece favorecer que basta um dos conviventes se dirigir ao registro, já que estabelece que o segundo “convivente” só deve ser informado dos fatos “mediante carta certificada com acusação de recibo”.

Apesar da obscuridade textual e das muitas cautelas, o projeto de lei sobre “direitos e deveres das pessoas que convivem de forma estável” inclui as principais exigências dos partidos de esquerda e das organizações a favor dos direitos dos homossexuais, que são os que a promoveram. Estas são resumidas a seguir.

Maiores de idade. Podem beneficiar-se da lei duas pessoas maiores de idade e de posse de suas faculdades mentais, sem distinção de sexo. Ficam excluídos os casais que mantenham relações “profissionais” (entre doente e médico por exemplo), as pessoas casadas com terceiros e as pessoas condenadas por homicídio do cônjuge anterior do “convivente”.

Pensão. Depois da extinção da convivência, se esta tiver durado pelo menos três anos ou houver filhos em comum, e se um dos membros do casal não puder se manter por si só, o outro é obrigado a lhe pagar uma pensão (no projeto não se estabelece como se impõe o pagamento nem o valor).

Saúde. Os direitos de um dos coniventes em termos de assistência de saúde pública são extensivos a seu par. Se um dos conviventes for de fora da Comunidade Européia, pode solicitar a residência. Nesse sentido, a lei equipara a convivência ao casamento.

Direito de herança. Depois de nove anos de convivência estável, as pessoas amparadas na lei podem, em caso de morte de um dos conviventes, herdar e manter a residência no domicílio comum se for alugado.

Fonte: El País

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