Os salafistas na Alemanha chamaram cada vez mais atenção nas últimas semanas com sua campanha para distribuir milhões de exemplares do Alcorão. Qual seria seu objetivo?

Alguns vendem o islamismo como uma cultura pop e pedem abertamente uma guerra santa, mesmo sob o olhar vigilante das autoridades.

Mohamed Mahmoud está sentado em sua cama e tenta manter seu gato longe das visitas. Ele está vestindo a roupa tradicional paquistanesa chamada “shalwar kameez”, e um “pako” marrom, o chapéu usado pelos pashtuns. “O Profeta Maomé também tinha um gato”, diz o rapaz de 26 anos com um sorriso, notando nossa surpresa. Na parede atrás dele, está a bandeira preta do tipo que é vista em vídeos da Al Qaeda e de organizações similares, com o credo da fé muçulmana escrito em letras árabes: não há deus além de Deus, e Maomé é o mensageiro de Deus. “Meu objetivo na vida é a vitória ou a ‘shahada’, a morte do mártir”, diz Mahmoud, que ficou famoso no movimento jihadista mundial como Abu Usama Al Gharib.

Apesar das aparências, porém, Mahmoud não é um guerrilheiro nas cordilheiras afegãs. Ele está sentado em uma quitinete em uma pequena cidade próxima a Frankfurt. O prédio fica no centro da cidade, ao lado de uma farmácia e de um restaurante turco. Para ele, o mundo lá fora é o mundo dos “kuffar”, ou infiéis. Mahmoud tem uma única missão: ele quer converter os infiéis ao salafismo, a interpretação ultraconservadora do Alcorão que gerou um debate na Alemanha sobre os limites da liberdade religiosa.

“É isso que eu defendo, e por isso morrerei”, diz Mahmoud, nascido na Áustria de pais imigrantes egípcios. Até agora, ele acha que a sociedade não compreendeu nem a ele nem a seu zelo religioso. Mas a maior parte dos grandes líderes, diz ele, só recebem verdadeiro reconhecimento após a morte.

Mahmoud também se vê como um líder, selecionado por Alá na diáspora. Ele é inimigo do país, e a religião é sua zona de combate. No mundo que ele quer estabelecer na Europa Ocidental, haveria morte por apedrejamento e açoitamentos. Mahmoud e seus camaradas radicais estão lutando por uma espécie de califado europeu governado pela shariah, em vez da lei secular. Com este fim, ele está construindo uma rede nacional na Alemanha chamada “Millatu-Ibrahim”, que apoia as ações do imame de Frankfurt, Ibrahim Abou Nagie, cujos ajudantes estão atualmente distribuindo exemplares gratuitos do Alcorão nas zonas de pedestres do centro da cidades alemãs.

[b]Provocação e agitação
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Homens como Abou Nagie, Mahmoud e seu amigo Denis Cuspert, ex-rapper que hoje está fazendo proselitismo ao lado de Mahmoud, representam um desafio à democracia. Eles usam palavras como armas, e eles tiram vantagem da liberdade de expressão em uma sociedade que trata a liberdade religiosa como um valor importante. Com seus atos de provocação e agitação, eles levam o Estado constitucional até seu absoluto limite e algumas vezes vão além.

O salafismo “não se encaixa em uma sociedade livre como a que temos aqui na Alemanha”, diz o ministro do interior da Alemanha, Hans-Peter Friedrich, membro da União Social Cristã (CSU). Mas nem mesmo Friedrich tem uma estratégia para lidar com os jovens barbudos usando vestes longas, detentores de passaportes alemães, que vêm distribuindo o Alcorão na Alemanha há várias semanas, assim como as testemunhas de Jeová distribuíram sua revista religiosa, “The Watchtower”.

O confronto com os agitadores como Mahmoud e Abou Nagie está sendo travado com sanções administrativas, com a lei e a vigilância. Ele também representa uma tentativa de lidar com a questão do que motiva os salafistas e por que sua mensagem está alcançando um número assustadoramente grande de jovens. Para compreender o fascínio que tal versão arcaica do islã pode ter e como é pregado hoje, é preciso ouvir os jovens como Mahmoud.

Em seu computador, há um apelo para libertarem da prisão Filiz Gelowicz. Filiz é a mulher de Fritz Gelowicz, um dos terroristas condenados em 2010 de planejar atacar as instalações militares norte-americanas na Alemanha. Ela está na prisão por ter levantado fundos para a jihad. “Como posso, como muçulmano, dormir ou comer em paz, quando minhas irmãs estão na prisão sofrendo?”, pergunta Mahmoud. Seus olhos se enchem de lágrimas e ele enterra o rosto entre as mãos. Mahmoud fica intoxicado com o discurso revolucionário. A linha de frente, para ele, é onde um bom mujahedin enfrenta os maus cristãos.

O telefone toca. É alguém do banco do outro lado da rua, ligando para dizer que ele não obteve permissão para abrir uma conta. “Por que?”, pergunta à mulher ao telefone. “Por causa de políticas corporativas”, ela responde. Mahmoud, que está desempregado, tem tempo de sobra para pensar sobre coisas como políticas corporativas. “Não posso abrir uma conta”, diz ele, “porque eles me veem como um risco de segurança”. A mulher dele paga o aluguel do apartamento.

[b]Várias visitas à sua casa
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A polícia alemã está alarmada com a determinação e a agressividade com a qual Mahmoud e seus colegas salafistas estão convertendo jovens alemães ao islã. A polícia e o Escritório Federal pela Proteção da Constituição (BfV), a agência de inteligência interna alemã, acreditam que ele é um dos islamistas mais perigosos da Alemanha. As autoridades em seu Estado natal de Hesse fizeram várias visitas à sua casa.

“Não ligo a mínima que eles pensem que eu sou perigoso”, diz ele. Ele está confortável nesta pequena cidade da Alemanha. Uma cama contra a parede e uma mesa com alguns livros em cima, é só o que ele precisa, diz. E um computador, é claro. “A Internet é nossa arma”, diz ele, toma um grande gole de Red Bull e sorri.

Ativistas como Mahmoud são muito modernos no que concerne energéticos e a Internet como plataforma de formação de rede e propaganda. Mas eles são muito antiquados no que concerne o contentamento.

Os salafistas se veem como verdadeiros muçulmanos, orientados para o profeta Maomé e os chamados ancestrais, os primeiros muçulmanos, que eles acreditam ser os únicos verdadeiros descendentes do profeta. Muitos salafistas acham que são a elite de sua religião, o que não os torna muito populares entre outros muçulmanos. Como resultado, nas grandes cidades, muitas vezes ele oram em salas menores, com tapetes velhos, isolados dos outas congregações muçulmanas.

O BfV estima que haja entre 3.000 e 5.000 seguidores dessa escola fundamentalista de religião na Alemanha. Os salafistas conquistaram novos membros nos últimos anos, especialmente entre os jovens do sexo masculino, porque passam uma imagem de firme determinação. O salafismo tornou-se uma subcultura islâmica que é especialmente atraente para os filhos e netos de imigrantes. Como todas as subculturas, o salafismo também tem seus astros, que são cercados de fãs. Centenas de jovens e mulheres frequentam palestras de Pierre Vogel, ex-lutador de boxe que hoje mora no Egito e ocasionalmente faz aparições na Europa. O pregador divulga gravações de seus eventos na Internet. Mahmoud também produziu vários vídeos de propaganda.

Não demorou muito para Mahmoud, cujo pai pertence à Irmandade muçulmana no Egito, compreender que não seria recebido de braços abertos na Alemanha. O ônibus em que ia de Viena para Berlim foi detido pela polícia federal e uma autoridade perguntou a ele quais eram suas intenções na Alemanha e onde pretendia ir. “Os austríacos aparentemente tinham notificado as autoridades alemãs sobre sua chegada”, disse o advogado de defesa, Michael Murat Sertsöz.

[b]Canções sobre Bin Laden
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Mahmoud tem alta credibilidade em círculos jihadistas internacionais porque passou quatro anos em uma prisão austríaca. “Tive muito tempo para estudar durante meu encarceramento”, diz ele. Ele foi condenado em Viena por pertencer a uma organização terrorista e por seu papel como líder da Frente Global Islâmica em língua alemã. O site do grupo foi usado para divulgar a Al Qaeda e vídeos do Taleban para a comunidade islâmica local.

Mahmoud estudou com um imame na Itália chamado Hassan Mustafa Osama Nasr, conhecido como Abu Omar. O imame tornou-se internacionalmente conhecido quando foi revelado que agentes da CIA o haviam sequestrado em Milão, em fevereiro de 2003, e que depois foi torturado no Egito.

“Meu interesse na Jihad começou muito cedo”, conta Mahmoud, enquanto descreve como, quando criança, assistia vídeos das guerras na Bósnia e na Tchetchênia, de corpos mutilados, mulheres estupradas e homens decapitados, todos muçulmanos. “Eu já estava do lado dos mujahedin naqueles tempos”, diz ele.

Em outubro de 2002, quando ele tinha 17 anos, ele desapareceu por oito meses. Presume-se que ele tenha viajado para o Iraque via Itália, onde foi treinado em um campo terrorista. Ele foi detido no Irã, perto da fronteira com o Iraque, e enviado de volta à Áustria. A polícia identificou Mahmoud em 2007, quando ele comprou substâncias químicas que poderiam ser usadas para a fabricação de uma bomba suicida.

Mahmoud não demonstrou remorso algum após sua condenação em Viena. Ele teria convertido vários jovens prisioneiros ao salafismo na prisão de Simmering. “Vou continuar em meu caminho”, disse à polícia, de acordo com um relatório do Escritório de Investigação Criminal de Berlim, “e eu até morreria por este caminho”. Se atirassem na cabeça dele como resultado, disse Mahmoud, “tudo bem”. Isso foi pouco antes de sua libertação, em setembro.

[b]Cultura popular islâmica
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Poucos dias depois, Mahmoud dirigiu para Berlim e foi ver um homem que ele não precisava converter: Denis Cuspert, 36. Cuspert foi rapper e chegou a se apresentar no mesmo palco de Deso Dogg. Depois, ele se converteu ao islã e hoje se chama Abu Malik.

O ex-prisioneiro Mahmoud e o ex-rapper Cuspert hoje são inesperáveis. Eles inauguraram o projeto missionário “Millatu-Ibrahim” (“a comunidade de Ibrahim”) e foram de mesquita em mesquita, vendendo o islã como uma cultura popular. Eles querem que os jovens se distanciem dos kuffar, tenham orgulho de sua religião “e não se envergonhem de andarem armados”, diz Mahmoud aos seus colegas no YouTube. Ele diz que o Millatu-Ibrahim já tem filiais em Berlim, Hamburgo e Colônia, Flensburg e Solingen e que outras cidades seguirão. Ele também se encontrou com pessoas que pensam da mesma forma em Antuérpia e Londres.

O ex-rapper Cuspert fornece à comunidade islâmica músicas inspiradas de sua nova cultura pop -não o rap, mas um canto fiel ao Alcorão. “Sabemos exatamente como nos dirigir a esses jovens”, diz Cuspert. “Falamos a mesma língua e sabemos o que sentem, porque, como eles, também crescemos na Europa”.

As canções religiosas que Cuspert canta hoje são chamadas “nashids”. As letras são sobre as muçulmanas na prisão e Osama Bin Laden. “Seu nome corre em nosso sangue”, canta Cuspert, referindo-se ao líder da Al Qaeda que foi morto no ano passado no Paquistão.

O caso de Arid Uka, que matou dois soldados norte-americanos no Aeroporto de Frankfurt em 2009, mostra quanta influência tem o ex-rapper, especialmente na segunda e terceira geração de muçulmanos. O assassino era um dos amigos de Cuspert no Facebook. Um vídeo foi divulgado no site do ex-rapper que mostrava homens com uniformes militares norte-americanos estuprando uma muçulmana. O vídeo enfureceu Uka, que o assistiu na noite anterior ao ataque. As cenas eram de um filme e não eram reais, mas Uka não sabia disso.

[b]Cuidando dos irmãos
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Mahmoud, Cuspert e sua organização agem como catalizadores de jovens como Arid Uka. A maior parte de seus seguidores não está interessada em violência, mas um pequeno número é atraído para as escolas radicais do Egito e, dali, continua para Paquistão, Afeganistão, Al Qaeda e grupos similares. “Meu dever é usar minha voz para dizer às pessoas a verdade, e a verdade é a jihad”, canta Cuspert. “A jihad é um dever”.

Cuspert, como Mahmoud, cresceu no Ocidente. Ele nasceu em Berlim como filho de mãe alemã e pai de Ghana. O pai, porém, deixou a família quando Denis ainda era garoto. A mãe casou-se com um ex-soldado norte-americano, mas o menino e seu padrasto não se davam bem, e Denis eventualmente foi enviado para internatos. Cuspert tentou encontrar uma família com as gangues de rua em Berlim a princípio, e foi preso uma série de vezes.

Hoje, Mahmoud e Cuspert são uma espécie de time de ouro para a cena islâmica radical. Há uma foto com os dois com um par de islâmicos de Berlim que foram presos pouco antes de uma eleição parlamentar local em setembro. O juiz teve que soltar os suspeitos devido à falta de provas. Mahmoud e Cuspert pegaram os homens na prisão e os quatro posaram para um fotógrafo, fazendo o sinal de vitória. O veterano de prisão cuida de seus irmãos mais jovens -essa era a mensagem.

Como um governo lida com tais detratores da sociedade Ocidental? O ramo de Berlim do BfV preparou um estudo sobre o ex-rapper Cuspert. Contudo, se ele não cometer erros ou emitir um pedido público de violência, as autoridades nada podem fazer nada além de vigiá-lo. No caso de Mahmoud, o governo usa instrumentos administrativos como meio de defesa.

[b]”Amamos a morte”
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Depois de sua chegada, as autoridades em Berlim iniciaram um processo de deportação contra o austríaco. Os obstáculos à deportação de um europeu são altos. Sob a lei da União Europeia, qualquer um pode se estabelecer em qualquer parte da UE e, apenas após intensa revisão de um caso individual, pode um cidadão delinquente da UE ser deportado da Alemanha. Esse seria o caso, se ele constituísse uma “séria ameaça” à segurança pública. No caso de Mahmoud, o Escritório de Investigação Criminal de Berlim coletou evidências desde o início. Mahmoud elogiou o martírio dos líderes da Al Qaeda e reforçaram que ele “lutaria até a última gota de sangue”, observaram os investigadores em novembro.

Talvez uma razão por Mahmoud estar viajando em torno da Alemanha seja para tirar vantagem da confusão burocrática inerente ao sistema federalista do país. Após uma audiência em Berlim, ele viajou para Solingen, na Alemanha Ocidental, para pregar para a comunidade islâmica local -com sucesso: dentro de um curto espaço de tempo, a mesquita tinha disso rebatizada Mesquita Millatu-Ibrahim. Depois de protestos dos moradores, Mahmoud eventualmente mudou-se para seu atual apartamento em Frankfurt. As autoridades enviaram seus arquivos para o novo Estado e os processos contra ele estão prosseguindo em Hesse.

Mahmoud se vangloria de não ter medo de deportação. De fato, de não ter medo de nada. Há uma diferença importante entre seus inimigos e ele, um devoto muçulmano: “Eles amam a vida. Nós amamos a morte”.

[b]Fonte: Der Spiegel[/b]

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