À medida que o meio-dia se aproxima, os monges entram na igreja, com os seus capuzes brancos ondulando sobre as costas. Eles fazem fila em silêncio, ficando de frente uns para os outros no longo palanque do coral. Santos de madeira colocados na austera cúpula romanesca olham para baixo.

Os sinos tocam e o cântico tem início – a princípio baixo, mas depois crescendo, à medida que outros monges juntam-se ao coro. As vozes suaves passam por sobre as pedras antigas, substituindo a atmosfera de claustro vazio por algo semelhante ao som da eternidade.

Exceto, é bom que se diga, pelos cliques de uma câmera digital empunhada por um fotógrafo que espreita por detrás de uma coluna de pedra.

Este tipo de fato se repete desde a primavera passada, quando correu a notícia de que os monges cistercianos de Stift Heiligenkreuz, mosteiro situado nas profundezas das florestas de Viena, haviam assinado um contrato para a gravação de um álbum de cantos gregorianos.

Quando o álbum, “Chant: Music for Paradise” (“Canto: Música para o
Paraíso”) foi lançado na Europa em maio – tendo ficado em sétimo lugar na lista britânica de sucessos musicais populares, e em determinado momento tendo vendido mais do que Amy Winehouse e Madonna – a pequena atenção da imprensa transformou-se em uma torrente (o CD será lançado nos Estados Unidos em 1º de julho).

Agora este mosteiro, onde os rituais diários de oração e trabalho orientam a vida dos seus habitantes há 875 anos, vê-se em meio a um turbilhão de mídia ao mesmo tempo animador e incômodo para os seus 77 monges.

“Somos monges”, diz Johannes Paul Chavanne, 25, que ingressou no mosteiro após estudar direito em Viena, e que se prepara para ser padre. “Não somos e nem queremos ser astros de música popular”.

Tarde demais: o álbum transformou os monges de Heiligenkreuz em um sucesso de vendas, no mais recente exemplo de como o canto gregoriano de mil anos de idade, que no passado era uma parte negligenciada da liturgia católica, pode ser reassimilado por uma sociedade secular que gosta da sua cadência calmante e etérea.

Heiligenkreuz – o nome significa Santa Cruz – encarregou Karl Wallner, um dos seus monges mais ligados ao mundo exterior, de cuidar das relações públicas. Quando não está rezando, ele passa os seus dias atendendo a telefonemas de repórteres que ligam de locais tão remotos como a Nova Zelândia. O seu telefone celular, cujo toque é um canto gregoriano, chama constantemente.

“Sou uma espécie de escudo em torno da minha comunidade”, afirma Wallner, que é monge há 26 anos. “No início houve muito temor de que isso destruísse a serenidade do mosteiro”.

Alguns monges também temem que transformar os cantos, que são, afinal, orações, em um produto comercial equivale a um tipo de profanação. “É como usar Leonardo da Vinci como papel de parede”, compara um dos religiosos. Mas para a maioria deles os riscos são superados por aquilo que acreditam ser o grande potencial da música: provocar sentimentos de fé em uma sociedade que se afastou bastante da religião.

Mesmo assim, a criação desses mais recentes astros monásticos evidencia mais como o mundo secular é capaz de penetrar até nos claustros mais fechados, graças ao poder da Internet.

Em 1994, os beneditinos de Santo Domingo de Solis, na Espanha, promoveram a última grande ressurreição do canto gregoriano com um álbum que se tornou um fenômeno. Mais recentemente, o uso de um canto no popular videogame “Halo” gerou um enorme interesse.

Ansiosa por capitalizar esta onda, a gravadora clássica Universal, de Londres, colocou um anúncio em publicações católicas, convidando grupos de canto a submeterem os seus trabalhos. Os executivos da gravadora achavam que seria muito difícil encontrar um outro grupo como os beneditinos espanhóis.

“Nem todos os monges desejam manter uma relação comercial porque não é isso o que eles passam o dia fazendo”, explica Tom Lewis, o gerente de desenvolvimento artístico da Universal Classics and Jazz.

Mas o anúncio foi visto pelo neto de um monge daqui. Ele avisou Wallner, que, além das suas tarefas de relações públicas, administra a academia teológica e o Website do mosteiro.

“Um monge austríaco jamais saberia o que é a Universal Music”, diz Wallner. “Nós fomos escolhidos pela divina providência para mostrar que hoje em dia é possível levar uma vida religiosa saudável”.

Mas a habilidade do monge, e não divina providência, pode ser a maior responsável por isso tudo. Wallner enviou um e-mail curto a Lewis com um link para um vídeo dos cantos que os monges colocaram no YouTube depois que o Papa Bento 16 visitou o mosteiro em setembro do ano passado.

Embora os monges de vários mosteiros entoem cânticos, Heiligenkreuz tem um orgulho especial da sua música, que foi aperfeiçoada durante anos por um dos monges, que foi regente de corais na Alemanha.

Lewis ficou fascinado, e conta que o vídeo eclipsou os mais de cem outros trabalhos apresentados. “Havia nas vozes uma suavidade que a gente associa a pessoas mais jovens”, diz ele.

A Universal negociou um contrato com os monges, que mostraram não ser nem um pouco ingênuos quando se trata de negócios. O fato de o abade Gregor Henckel Donnersmark ter mestrado em administração de empresas e ter administrado o escritório na Espanha de uma companhia de navegação alemã antes de ingressar no mosteiro, em 1977, ajudou bastante.

As cláusulas exigidas por ele determinavam que a Universal não poderia usar os cantos em videogames ou música popular. Os monges jamais se apresentariam em shows. E Heiligenkreuz receberia royalties com base nas vendas do álbum, o que, segundo o abade, equivale a cerca de um euro por CD vendido.

Henckel Donnersmark calcula de forma otimista que o quinhão do mosteiro poderá chegar a algo entre US$ 1,5 milhão e US$ 3,1 milhões, um dinheiro que será usado para ajudar a financiar os estudos teológicos de jovens em países em desenvolvimento. Até o momento a Universal vendeu quase 200 mil cópias.

“O dinheiro não é uma fonte de realização”, afirma o abade, embora observe que a quantia recebida aliviará as despesas do mosteiro, que são altas, em parte devido seu sucesso em atrair noviços.

Antes mesmo do lançamento do álbum, esses monges já haviam se encontrado com o mundo do show business. O sobrinho do abade, Florian Henckel von Donnersmark, escreveu o roteiro de “Das Leben der Anderen” (“A Vida dos Outros”, Alemanha, 2006), filme premiado pela Academia sobre a Alemanha Oriental, enquanto estava enclausurado em Heiligenkreuz. Ele levou o Oscar ao mosteiro, onde os monges fizeram fila para segurar a estatueta.

“Um lugar como aquele recalibra a bússola moral do indivíduo”, disse Henckel von Donnersmark, de Los Angeles, por telefone. “A única coisa na qual essas pessoas pensam é em como amar e servir a Deus”.

Por ora, os monges parecem ter certeza de que são capazes de manter o equilíbrio entre essa profunda vocação e o brilho da fama.

“Se os problemas tornarem-se muito grandes, eu pegarei um avião para Santo Domingo de Silos e pedirei conselhos ao abade de lá”, diz o abade de Heiligenkreuz.

Fonte: The New York Times

Comentários