Os pesquisadores norte-americanos e europeus foram os que fizeram a maior parte do progresso na área de biotecnologia. Mas eles ainda enfrentam um enorme obstáculo – Deus, da forma como este é definido por certas religiões ocidentais.

Agora que biólogos do Estado de Oregon anunciaram ter usado a clonagem para produzir um embrião de macaco e extrair células-tronco, parece mais plausível do que antes que um embrião humano seja clonado e que, algum dia, nasça um humano clonado. Mas não necessariamente neste lado do Oceano Pacífico.

Enquanto críticos de direita e de esquerda denunciam o aspecto moral da pesquisa com células-tronco e da engenharia genética, cientistas ocidentais famosos têm ido para a Ásia, como os geneticistas Nancy Jenkins e Neal Copeland, que saíram do Instituto Nacional do Câncer e mudaram-se no ano passado para Cingapura.

A Ásia oferece aos pesquisadores laboratórios novos, menos restrições e uma visão diferente em relação à divindade e à vida depois da morte. Na Coréia do Sul, quando Hwang Woo-suk anunciou a criação de células-tronco embrionária humanas por meio da clonagem, ele não se desculpou por ofender tabus religiosos. Ele justificou a clonagem citando a sua crença budista na reciclagem da vida através da reencarnação.

Quando descobriu-se que a alegação de Hwang era uma fraude, a sua pesquisa foi apoiada pelo líder da maior ordem budista da Coréia do Sul, o reverendo Ji Kwan. O monge afirmou que a pesquisa com embriões está de acordo com os preceitos do Buda e pediu aos cientistas coreanos que não se guiem pela ética ocidental.

“As religiões asiáticas preocupam-se menos do que as ocidentais com a possibilidade de a biotecnologia tentar ‘fazer o papel de Deus'”, afirma Cynthia Fox, autora de “Cell of Cells” (“A Célula das Células”), um livro a respeito da corrida global disputada entre os pesquisadores de células-tronco. “A clonagem terapêutica em particular se coaduna bem às idéias budistas e hinduístas de reencarnação”.

É possível visualizar esta divisão Oriente-Ocidente nos mapas feitos por Lee M. Silver, biólogo molecular da Universidade de Princeton. Silver, que analisa o choque entre espiritualidade e ciência no seu livro “Challenging Nature” (“Desafiando a Natureza”), vem mapeando as políticas de biotecnologia em todo o mundo e tentando entender, sob o ponto de vista espiritual, quem tem medo do que.

A maior parte dos países do sul e do leste da Ásia manifesta relativamente pouca oposição à pesquisa com células-tronco embrionárias clonadas ou às lavouras com plantas geneticamente modificadas. A China, a Índia, Cingapura e outros países aprovaram leis que permitem a clonagem de embriões para pesquisa médica (algumas vezes chamada de clonagem terapêutica, para diferenciá-la da clonagem reprodutiva, cujo objetivo é recriar um ser humano inteiro). Lavouras com plantas geneticamente modificadas são cultivadas na China, na Índia e em outros países da região.

Porém, na Europa as plantações geneticamente modificadas são um tabu. A clonagem de embriões humanos para pesquisa é legal na Inglaterra e em vários outros países, mas é proibida em mais de uma dúzia de outros, incluindo a França e a Alemanha.

Nas Américas do Norte e do Sul, as lavouras com plantas geneticamente modificadas são bastante utilizadas. Mas a clonagem de embriões para pesquisa foi proibida na maior parte dos países, incluindo Brasil, Canadá e México. Ela não foi proibida em âmbito nacional nos Estados Unidos, mas tal pesquisa não pode receber verbas financeiras, e alguns Estados a proibiram.

Silver explica esses padrões por meio da divisão daqueles que crêem em um mundo espiritual em três amplas categorias. A primeira, a dos cristãos tradicionais, predomina na América e em alguns países europeus. A segunda, que ele chama de pós-cristãos, se concentra em outros países europeus e em partes da América do Norte, especialmente nas áreas litorâneas. O terceiro grupo é formado pelos seguidores de religiões orientais.

“A maioria dos indivíduos nos países hindus e budistas possui uma tradição básica segundo a qual não existe um deus criador único. Em vez disso, pode não haver nenhum deus, ou então muitos deuses, e não há um plano mestre para o universo. Os espíritos são eternos e a virtude individual – ou karma – determina o que ocorre com o seu espírito na sua próxima vida. Com algumas exceções, esta visão geralmente permite a aceitação tanto da pesquisa com embriões para apoiar a vida como as lavouras geneticamente modificadas.

Contrastando com isso, na tradição judaico-cristã, Deus é o mestre criador que confere novas almas a cada ser humano e dá aos humanos o “domínio” sobre as plantas e animais, que seriam destituídos de alma. Para os cristãos tradicionais que consideram um embrião um ser humano dotado de alma, não é correto os cientistas usarem a clonagem para criar embriões humanos ou destruir embriões no decorrer da pesquisa.

Mas não existe tal tabu em relação ao fato dos humanos aplicarem a clonagem e a engenharia genética em animais e plantas “inferiores”. De acordo com Silver, como conseqüência, animais clonados e plantas geneticamente modificadas não se transformaram em uma grande fonte de controvérsia para os cristãos tradicionais. Os pós-cristãos estão mais preocupados com a flora e a fauna.

“Muitos europeus, assim como esquerdistas nos Estados Unidos, rejeitaram o deus cristão tradicional e o substituíram por uma deusa cristão da Mãe Natureza e uma escatologia cristã modificada. Não é um sistema coerente de crença. Ele pode ou não incorporar idéias new age. Mas, bem no fundo, existe a idéia de que os seres humanos não devem se intrometer no mundo natural”, explica Silver.

Daí a oposição aos alimentos geneticamente modificados.

“Devido ao fato de os pós-cristãos não adotarem necessariamente a visão bíblica de uma deidade onipotente dotada do poder único de criar almas, eles se preocupam menos com a possibilidade de os cientistas ‘atuarem como deus’ no laboratório com embriões. Em locais como a Califórnia, os moradores votaram a favor não só da clonagem de embriões para pesquisas, mas também do financiamento dessas pesquisas”, afirma Silver.

Mas às vezes a reverência pelo mundo natural se estende aos embriões, gerando alianças improváveis. Quando intelectuais conservadores como Francis Fukuyama fizeram campanha no Congresso pelo banimento da clonagem de embriões, alguns ativistas do movimento ambiental, como Jeremy Rifkin, uniram-se a ele. Voker Beck, um líder do Partido Verde na Alemanha, referiu-se à pesquisa com células-tronco de embriões clonados como “canibalismo disfarçado”.

É claro que vários críticos da biotecnologia não usam explicitamente o dogma religioso para justificar a sua oposição. Afinal, é de se esperar que países como os Estados Unidos sejam norteados por constituições seculares, e não por credos sectários. Assim, os oponentes dos alimentos geneticamente modificados concentram-se nos possíveis perigos para os ecossistemas e a saúde humana, e comitês de cientistas tentam resolver a polêmica conduzindo análises de risco.

O resultado depende mais de crenças do que de dados científicos. Um estudo que revele que os alimentos geneticamente modificados são seguros pode tranqüilizar cristãos tradicionais do Estado de Kansas, mas não farão com que pós-cristãos de Estocolmo deixem de se preocupar com as “Frankenfood” (algo como “alimentos Frankenstein”).

De forma similar, alguns dos principais oponentes das pesquisas embrionárias para clonagem, como Leon Kass, dizem estar defendendo não as crenças judaico-cristãs, mas sim a “dignidade humana”. Kass, ex-diretor do Conselho de Bioética do presidente, diz que o status especial dos humanos descrito no livro de Gênesis deve ser respeitado não devido à autoridade da Bíblia, mas porque a mensagem reflete uma “verdade cosmológica”.

Porém, não é fácil defender verdades supostamente auto-evidentes sobre a natureza humana que não são tão evidentes para uma grande parcela da humanidade. Conservadores na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos conseguiram aprovar uma lei proibindo os norte-americanos de ir ao exterior para submeterem-se a tratamentos baseados em células-tronco que envolvem a clonagem de embriões. Mas o projeto de lei não foi aprovado pelo Senado.

Não está de forma alguma assegurado que esse tipo de pesquisa com células-tronco algum dia venha a proporcionar tratamentos para enfermidades como a Doença de Parkinson, mas, caso isso ocorra, é difícil imaginar como o Congresso – ou qualquer lei – seria capaz de impedir que as pessoas buscassem curas.

A perspectiva de clonagem de crianças é bem mais distante, especialmente agora que os pesquisadores estão ficando otimistas quanto à obtenção de células-tronco sem a utilização de embriões. Por ora, cientistas de todo o mundo dizem que não querem sequer pensar na clonagem reprodutiva devido aos riscos para a criança. E as pesquisas de opinião pública não revelam apoio a esse tipo de procedimento em nenhum lugar.

Ainda que a clonagem humana torne-se segura, pode ser que jamais haja muita demanda por ela, já que a maioria das pessoas prefere ter filhos da maneira tradicional.

Mas alguns indivíduos podem desejar desesperadamente um filho clonado – talvez para substituir um que morreu ou para fornecer medula óssea para um irmão -, e eles não serão dissuadidos de fazer tal coisa, independentemente de quantos cristãos ou pós-cristãos tentem detê-los. Para alcançar essa fronteira, eles podem simplesmente rumar para o Oriente.

Fonte: The New York Times

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