O papa Bento 16 enfrenta alegações de que teria demorado a agir no caso de um padre que abusou de crianças, nas acusações mais diretas já feitas contra ele. Quando era ainda cardeal Ratzinger, ele teria resistido a pedidos para suspender um padre americano acusado de abusar sexualmente de crianças, segundo uma carta de 1985 que contém sua assinatura.

A carta, obtida pela Associated Press, é o maior desafio para o Vaticano, que insiste que Bento 16 não teve nenhuma participação em barrar a expulsão de padres pedófilos durante os anos em que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

O documento, assinado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, foi datilografado em latim e faz parte de anos de correspondência entre a diocese de Oakland, na Califórnia, e o Vaticano sobre a proposta de suspensão do reverendo Stephen Kiesle, acusado de molestar crianças em 1978.

Kiesle não foi encontrado para comentar o caso. William Gagen, advogado que o representou em 2002, não retornou uma ligação para comentar o caso também.

Resposta do Vaticano

O Vaticano confirmou ser a assinatura de Ratzinger e disse ser um formato típico de carta usado em casos de suspensão.

“A assessoria de imprensa não acredita ser necessário responder a cada documento tirado de contexto com relação a situações legais específicas”, disse o reverendo Federico Lombardi. “Não é estranho que existam documentos com a assinatura do cardeal Ratzinger.”

Outro porta-voz do Vaticano, Ciro Benedetiini, disse que a carta não mostra nenhuma tentativa de encobrir o caso. “O então cardeal Ratzinger não encobriu o caso, mas, como a carta claramente mostra, ele deixou claro a necessidade de analisar o caso com mais atenção, levando em consideração o bem de todos os envolvidos.”

O advogado do Vaticano, Jeffrey Lena, disse que o assunto transcorreu “de forma eficiente, não segundo padrões modernos, mas para os padrões da época” e que o religioso deveria ser cuidado para evitar outros abusos.

Segundo o advogado, quando Ratzinger escreveu pedindo que Kiesle recebesse “o máximo possível de cuidado paternal”, foi uma forma de pedir ao bispo para assegurar que ele não cometesse outros abusos.

Ele afirmou ainda que não houve nenhum caso de abuso cometido por Kiesle entre 1981, quando a diocese pediu sua suspensão pela primeira vez, e 1987, quando ele foi finalmente suspenso.

Demora para agir

Kiesle foi afastado em 1978 por três anos, acusado de amarrar e molestar dois garotos em uma paróquia na área da baía de San Francisco.

Segundo o bispo de Oakland, John Cummins, o padre pediu uma licença e fez terapia nesse período. Não é claro onde Kiesle viveu nesse período, mas Cummins mencionou que ele foi designado para dioceses vizinhas, o que nunca funcionou.

Como o período de licença terminou em 1981, Kiesle pediu para deixar a vida religiosa. A diocese de Oakland, então, recomendou a suspensão de Stephen Kiesle em 1981, ano em que Ratzinger foi nomeado chefe do órgão do Vaticano que cuida de abusos cometidos por padres.

Em carta escrita em 1982, Cummins afirmou estar certo de que o escândalo seria maior se deixassem o padre continuar sua carreira religiosa, do que se ele fosse suspenso.

O caso ficou esquecido no Vaticano por quatro anos, até que Ratzinger finalmente escreveu para o bispo de Oakland, John Cummins. Depois disso, ainda se passaram mais dois anos até que Kiesle foi suspenso. Durante esse tempo, ele continuou prestando serviço voluntário com crianças por meio da Igreja.

Oficiais da igreja da Califórnia escreveram para Ratzinger pelo menos três vezes para checar a situação do caso. Em um momento, um oficial do Vaticano escreveu dizendo que o arquivo devia ter sido perdido e sugerindo reenviar o material.

Ele foi finalmente suspenso em 13 de fevereiro de 1987, apesar de os documentos não indicarem quando, como ou por que, ou qual o papel de Ratzinger na decisão.

Toneladas de crianças

“Ele admitiu ter molestado muitas crianças dizendo ser o Flautista de Hamelin [personagem do conto dos Irmãos Grimm] e disse que tentou molestar todas as crianças que se sentaram em seu colo”, disse Lewis VanBlois, um advogado de seis vítimas de Stephen Kiesle, que entrevistou o ex-padre na prisão.

“Quando perguntado quantas crianças ele tinha molestado, ele disse ‘toneladas’.”

Kiesle foi preso e acusado em 2002 por 13 casos de abuso de crianças nos anos 1970. Apenas dois casos não foram excluídos pela Suprema Corte americana –que considerou inconstitucional uma lei da Califórnia estendendo o tempo para prescrição do crime.

Em 2004, ele foi acusado de molestar uma menina em sua casa em Truckee, em 1995, e sentenciado a seis anos de prisão.

Mais de seis vítimas chegaram a um acordo em 2005 com a diocese de Oakland, acusando Kiesle de molestá-las quando crianças.

Hoje, com 63 anos, Kiesle vive em um condomínio fechado em Walnut Creek, segundo seu endereço registrado na lista de criminosos sexuais.

Carta do papa

Na carta de novembro de 1985, Ratzinger disse que os argumentos para suspender Kiesle são de “grave importância”, mas acrescentou que tais ações requeriam “uma revisão cuidadosa e mais tempo”.

Ele também pediu ao bispo para oferecer a Kiesle “o máximo possível de cuidado paternal” enquanto esperava pela decisão, segundo um tradução para a AP feita pelo professor Thomas Habinek, chefe do departamento de Ciências Clássicas da Universidade do Sul da Califórnia.

Com essa declaração, Ratzinger dizia ao bispo de Oakland que ele era responsável por evitar que o religioso cometesse novos abusos, defendeu o advogado do Vaticano, Jeffrey Lena.

O futuro papa também ressaltou que qualquer decisão de suspender Kiesle deveria considerar “o bem da igreja universal” e o “dano que conceder essa dispensa pode provocar dentro da comunidade dos que creem em Cristo, particularmente considerando a pouca idade”. Kiesle tinha 38 anos na época.

“O cardeal Ratzinger estava mais preocupado em em evitar escândalos do que em proteger crianças”, disse Irwin Zalkin, advogado que representa algumas das vítimas.

Fonte: Folha Online

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