Para 59%, ser humano é resultado de uma evolução guiada por Deus; somente 8% não acreditam em interferência divina. Pesquisa mistura evangélicos e testemunhas de Jeová e diz que, para estes, o livro de Gênesis não é unanimidade. As informações obtidas pela pesquisa realizada no Brasil contrastam com as colhidas nos EUA, mas se aproximam dos resultados na Europa.

Leia abaixo, na íntegra, matéria do jornal Folha de São Paulo de hoje:

Um de cada quatro brasileiros acredita em algo parecido com o mito de Adão e Eva. Para eles, o homem foi criado por Deus há menos de 10 mil anos. Esse dado consta da primeira pesquisa Datafolha que investigou as convicções da população sobre a origem e o desenvolvimento da espécie humana.

A maioria das pessoas crê em Deus e Darwin. Para 59%, o ser humano é o resultado de milhões de anos de evolução, mas em processo guiado por um ente supremo. Apenas 8% consideram que a evolução ocorre sem interferência divina.

A crença no mito de Adão e Eva despenca à mdida que aumentam renda e escolaridade. Quando se acrescentam dinheiro e instrução, a proporção dos darwinistas puros mais do que dobra do menor para o maior estrato. Entre os que acatam a evolução sob gerência divina, o aumento é mais modesto: fica entre 15% (renda) e 20% (escolaridade).

O Datafolha ouviu 4.158 pessoas com mais de 16 anos. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais.

Os 25% de criacionistas da Terra jovem (que atribuem menos de 10 mil anos a nosso planeta de 4,6 bilhões de anos) surpreendem porque o fundamentalismo bíblico, em que as Escrituras são interpretadas literalmente, não faz parte das tradições religiosas do Brasil.

A Igreja Católica, ainda a mais influente no país, jamais condenou a evolução. Pelo contrário até, o Vaticano vem já há algumas décadas flertando discretamente com o autor de “Origem das Espécies”.

Em 1950, o papa Pio 12, na encíclica “Humani generis”, classificou o darwinismo como “hipótese séria” e afirmou que a igreja não deveria rejeitá-la, embora tenha advertido para o mau uso que os comunistas poderiam fazer dessa teoria. Em 1996 foi a vez de João Paulo 2º declarar que a evolução era “mais do que uma hipótese”.

Também entre evangélicos, a literalidade do Gênesis, o livro da Bíblia que relata a criação do mundo e do homem, está longe de unânime. Na verdade, só algumas poucas denominações como adventistas e Testemunhas de Jeová pregam abertamente contra a evolução.

Boa parte das demais se limita a apontar “problemas” no neodarwinismo, tentando reservar algum espaço para Deus, que pode ter papel mais ou menos ativo. Ele pode ser desde o demiurgo, que se limitou a criar o mundo com todas as suas leis (incluindo a seleção natural), e retirou-se até o “Deus ex machina” que interfere o tempo todo, projetando bichos, atendendo a preces etc.

Em tese, qualquer uma dessas posições se encaixa na afirmação de que Deus e evolução atuam juntos. Ela funciona como um guarda-sol que abriga desde católicos estritos a deístas, passando por entusiastas do “design inteligente”, que nada mais é do que criacionismo com pretensões científicas.

Teologia intuitiva

Como os adeptos de religiões que defendem a literalidade do Gênesis não chegam nem perto de 25% da população, é forçoso reconhecer que a boa parte das pessoas que abraçaram a hipótese de Adão e Eva o fez seguindo suas próprias intuições, sem prestar muita atenção ao que afirmam suas respectivas lideranças espirituais.

Essa impressão é reforçada quando se considera que a adesão ao criacionismo bíblico se distribui de forma generosa entre todos os credos. Umbandistas (33%) e evangélicos pentecostais (30%) ficam um pouco acima da média nacional, mas católicos comparecem com 24% e evangélicos não pentecostais, com 25%.

Outros países

Uma nota curiosa vai para os que se declaram ateus. Entre eles, 7% também se classificam como criacionistas da Terra jovem e 23% como partidários da evolução comandada por Deus.

Os resultados obtidos no Brasil contrastam com os colhidos nos EUA, mas se aproximam com os de nações europeias. Entre os norte-americanos, a proporção de criacionistas bíblicos chega a 44%. Os evolucionistas com Deus são 36%, e os neodarwinistas puros, 14%. Esses números foram apurados em 2008 pelo Gallup, numa pesquisa que vem sendo aplicada naquele país desde 1982 e que serviu de modelo para a sondagem do Datafolha.

Em relação à Europa, o Brasil se encontra mais ou menos na média. De acordo com uma pesquisa de 2005 do Eurobarômetro, que aferiu o número de pessoas que rejeita a evolução, os criacionistas por ali variam de 7% (Islândia) a 51% (na islâmica Turquia), com a maioria dos países apresentando algum número na casa dos 20%.

Darwinismo: Fé não pode se sobrepor à ciência

SANDRO JOSE DE SOUZA

A pesquisa abre espaço para interpretações otimistas e pessimistas. Os otimistas dirão que 67% dos brasileiros acreditam na evolução. Os pessimistas, que 25% não acreditam na evolução e que 59% acreditam que a evolução tenha sido um processo guiado por Deus. Tanto otimistas quanto pessimistas têm razões para comemorar.

Não é desprezível que 2/3 da população brasileira acreditem na evolução, principalmente se nos compararmos com países de indicadores educacionais mais sólidos. Contudo também não é desprezível que 1/4 da população ignore as evidências científicas sobre a evolução. Mesmo entre aqueles com curso superior, 17% acreditam que Deus criou o homem.

A ideia de uma primeira causa na figura de um Deus, apesar de não ser científica, é legítima.

Esta corrente do criacionismo, o evolucionismo teísta, é a mais moderada, no sentido que aceita todas as evidências científicas, mas mantém Deus como agente causal. O evolucionismo teísta, no entanto, não pode ser tratado como ciência devido à sua natureza metafísica. A existência ou não de Deus não pode ser testada e por isso não é científica, e sua aceitação depende de um estado da mente chamado de fé. A evolução, por outro lado, é fato corroborado por evidências científicas acumuladas nos últimos 150 anos.

Me incluo entre os otimistas.

Contudo, a predominância de uma visão teísta na população brasileira gera um risco de que assuntos da fé sobreponham-se a assuntos da ciência. Aulas de ciência devem se ater à ciência.

Temos visto figuras públicas manifestarem-se a favor da equiparação entre evolucionismo e criacionismo. Escolas brasileiras já ensinam criacionismo em aulas de ciência. Tal absurdo coloca em risco a formação de milhões de brasileiros.

SANDRO JOSE DE SOUZA é pesquisador do Instituto Ludwig e autor de A Goleada de Darwin

Criacionismo: Teoria é mal compreendida

MICHELSON BORGES

Quando nos deparamos com o desafio de explicar eventos passados únicos e irreproduzíveis, como a origem da vida e a origem do ser humano, acabamos ultrapassando as fronteiras da metodologia científica e utilizamos inevitavelmente conhecimento suplementar de natureza não científica (o que não significa necessariamente conhecimento anticientífico).

O evolucionista utilizará conhecimentos oriundos do naturalismo metafísico (componente não científico do evolucionismo). E o criacionista verificará a possibilidade de se harmonizar o conhecimento científico com o conhecimento bíblico (componente não científico do criacionismo).

Dos entrevistados, 25% acreditam que Deus criou os seres humanos exatamente como são hoje. São, portanto, fixistas.

Ao contrário desses, criacionistas bem informados entendem que Deus dotou os seres vivos com a capacidade de variação, o que lhes permite sobreviver em ambientes diferenciados adquirindo adaptabilidade ao meio: a isso chamam de microevolução. Segundo o criacionismo, Deus criou os tipos básicos de seres vivos e eles sofreram modificações, dentro de limites preestabelecidos. Dizer que elas descendem de um mesmo ancestral unicelular comum é extrapolação.

As grandes questões para as quais parece não haver respostas satisfatórias são: qual a origem da informação complexa, aperiódica e específica? Qual a origem dos códigos zipados, encriptados, compartimentados e com uma lógica algorítmica que tem em seres inteligentes sua única causa? O criacionista, partindo da ideia de planejamento e propósito inteligentes na criação, consegue fornecer boas respostas para essas questões -mas, primeiro, precisa ser ouvido e compreendido.

MICHELSON BORGES é jornalista e editor do blog www.criacionismo.com.br

Associar ciência e ateísmo só traz prejuízos

EDUARDO CRUZ

Estatísticos e cientistas concordam que dados obtidos por levantamentos como este podem trazer muitas mensagens diferentes. Veja-se o curioso dado de que a proporção de respostas entre as três opções é mais ou menos a mesma, independente do grupo religioso.

Pode parecer muito estranho, pois a maioria dos líderes católicos escolheria a alternativa A, enquanto a maioria dos evangélicos defenderia a B (“criacionista”). Acontece que há muitos estudos de ciência da religião que procuram explicar a “incorreção teológica” dos fieis, apesar de muitas vezes a doutrinação ser maciça.

No caso brasileiro também temos grande facilidade para a mobilidade religiosa e a dupla pertença. O que pode se supor é que o grosso da população brasileira forme suas opiniões não nos jornais, nos cultos ou na escola, mas a partir de uma vaga consciência cristã-católica tradicional que ainda pervade nossas mentes. Valeria o mesmo para os ateus? É claro! Se fosse pelos líderes, tipo Richard Dawkins, poderia se esperar que 100% das respostas seriam C. Só 56% o indicaram. “Incorreção ateia”? Bem provável.

Talvez o aspecto mais importante seja uma tentação que assola críticos do criacionismo: partindo dos dados, que indicam que pessoas de maior escolaridade tendem a escolher menos a alternativa criacionista, assume-se que esta esteja ligada à ignorância e à superstição, enquanto a teoria da evolução “ateia” estaria ligada à racionalidade científica. Mesmo depois de bater nesta tecla durante décadas, a comunidade acadêmica americana viu crescer o número de adeptos de uma criação recente. A história de tal paradoxo é muito grande para ser contada aqui, portanto, oferecemos três rápidas considerações:

1º) os líderes criacionistas são em geral pessoas com alta escolaridade;

2º) Muito do ensino de ciências no ensino médio é ainda algo doutrinário;

3º) Temos o testemunho de Marcelo Gleiser, que sugere que a associação da cultura científica com o ateísmo só traz prejuízo à ciência e aliena pessoas religiosas que poderiam ser aliadas numa defesa sustentada da evolução darwiniana.

EDUARDO R. CRUZ é professor titular do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP

Fonte: Folha de São Paulo

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