A revista IstoÉ traz como matéria de capa desta semana das crianças a reportagem “A infância de Jesus”. A reportagem diz que “relatos dos séculos I a III revelam que o filho de Deus, ainda criança, fazia milagres e era travesso. Agora, novos estudos procuram detalhar essa fase da vida de Jesus”.

Confira a reportagem abaixo:

Quem um dia recorreu à Bíblia para conhecer melhor a história de Jesus, o homem que deu origem ao cristianismo, certamente terá notado a falta de informações a respeito da infância do filho de Deus. Dos quatro evangelhos que contam o surgimento do chamado Messias, somente dois – os de Mateus e Lucas – trazem episódios da primeira fase de sua biografia. As menções são escassas e frustram quem gostaria de saber mais da vida do menino. Mas agora estão se tornando populares certas narrativas que descrevem momentos reveladores da relação do jovem Jesus com sua família e com as outras crianças.

De acordo com esses textos, ele foi um garoto consciente de seu poder divino e fazia milagres desde pequeno. Ainda assim, não deixou de cometer travessuras que lhe valeram reprimendas da mãe, Maria. Inteligente ao extremo, chegava a desafiar seus mestres. Um professor, Zaqueu, teria procurado José para se queixar de Jesus, que recebera para aulas quando este tinha cinco anos. “Ai de mim, não sei o que fazer. (…) Não posso suportar a agudeza de seu olhar, nem chego a entender suas explanações. (…) Queria um aluno e encontrei um mestre. (…) José, leve-o para casa.”

Apesar de não receberem a chancela do Vaticano, relatos como esses, produzidos entre os séculos I e III, têm sido analisados por teólogos, historiadores e até mesmo por religiosos católicos. São os evangelhos apócrifos ou pseudoevangelhos, elaborados como complemento dos textos bíblicos. O termo apócrifo é empregado para designar relatos cuja autenticidade não é reconhecida pelo Vaticano. Ao todo, são 60, de diversas autorias. Citações sobre os primeiros anos do filho de Deus estão em alguns desses textos, entre eles o evangelho chamado de Armênio da infância e nos livros atribuídos a Tiago e Tomé, dois apóstolos de Cristo. Tomé detalha fatos ligados propriamente à infância, enquanto Tiago (tido como irmão de Jesus em narrativas não-oficiais) aborda mais a vida da família nos primeiros anos do futuro Salvador. Durante muito tempo, relatos desse gênero ficaram relegados a segundo plano, conhecidos basicamente apenas por quem se dedicava a estudar religião. Essas histórias, no entanto, começam a se espalhar inclusive entre os não-católicos, principalmente por ação de escritores que enxergam na força do mito Jesus um belo caminho rumo ao estrelato. Que o diga Dan Brown, o autor de O código Da Vinci.

Uma das novidades nesse sentido é o livro Cristo Senhor, da americana Anne Rice, que chega nesta semana às prateleiras brasileiras. Autora do best seller Entrevista com o vampiro – que gerou um filme, possível passo do atual livro –, Anne nasceu em família católica, mas abandonou a religião aos 18 anos. E só a retomou em 1998, quando se recuperou de um coma provocado pela diabete. Em 2002, mergulhou nos textos apócrifos para elaborar a sua versão do menino Jesus. Em Cristo Senhor, que ficou três meses na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, o narrador é o filho de Maria, com a idade de sete anos. É uma ficção reforçada pelos textos não sacramentados pela Igreja. Ela assegura, porém, ter se disciplinado para não contradizer o que está na Bíblia. “Há bastante informação para que possamos imaginar como pode ter sido a vida de toda a família”, disse a ISTOÉ. E completa: “Coloquei na minha cabeça que faria uma história muito realista, absolutamente conectada com as escrituras. Usei o que pude.”

Vida a pássaros de barro

Pode ser, mas um dos episódios que abrem o livro é um milagre narrado por Tomé. Trecho que demonstra o aspecto divino de Cristo na infância. Naquele período, Jesus, claro, não era considerado o Messias. Seus feitos, no entanto, não passavam despercebidos. Por isso, as crianças o temiam e seus pais proibiam os filhos de brincar com ele. Segundo a narrativa de Tomé, Jesus estava com sete anos quando um menino caiu do telhado de uma casa e morreu. Imediatamente, seus pais o apontaram como responsável pela morte. Diante da acusação, Jesus chamou com voz forte o garoto de volta à vida para que contasse que não era ele o culpado. No livro de Anne Rice, Jesus se inclina sobre o menino e diz: “Acorda, Eleazar. Desperta agora.” O filho de Maria também faz viver passarinhos de barro. No evangelho apócrifo intitulado Infância do Salvador, ele os pega na mão e ordena: “Ide.” E os passarinhos saem voando e gorjeando.

Diversos relatos ressaltam o lado generoso, curativo e benevolente do jovem Jesus. Entretanto outros episódios contidos nos textos sugerem que ele era sapeca. Em um final de tarde, brincava com um grupo de crianças em seu quarto. Segundo o evangelho Armênio da infância, um raio de sol entrou pela janela. Gaiato, perguntou aos colegas se eles conseguiriam subir pelo raio. Os meninos nem se aventuraram. Jesus subiu. Uma travessura é aceitável. Mas como as narrativas apócrifas salientam, ele não era um menino comum. Também no escrito de Tomé, revela-se um lado negativo de seu poder. Com a desistência de Zaqueu em tomar o pequeno como aluno, José procurou um novo mestre para o filho. Encontrou um homem que, apesar de conhecer a fama do esperto Jesus, aceitou o convite. O garoto o desafiou logo na segunda aula. Posto à prova em seus conhecimentos, o professor se enraiveceu e bateu na cabeça de Jesus. Sentindo dor, ele o amaldiçoou e o mestre caiu por terra, sem sentidos.

Milagres mais sérios

Não há como negar que passagens como essas soam fantasiosas demais. Para alguns teólogos são episódios que mais se assemelham a histórias de super-heróis. Mas os textos não oficiais, afinal, podem ser levados em conta? Sim, responde o frei Jacir de Freitas Farias, um franciscano de Belo Horizonte que estuda esses escritos. Desde que sejam tomados certos cuidados. Primeiro, explica ele, é preciso distinguir os tipos de relatos. Em sua opinião, os textos podem ser divididos em três categorias: os complementares (que trariam acréscimos às narrativas bíblicas, caso dos relativos a Maria), os alternativos (com episódios não aceitos pelo Vaticano, entre eles, os que colocam Maria Madalena como líder feminista) e os aberrantes. Nessa última classificação estão os livros que tratam do Jesus menino. Segundo o frei, eles exageram na explicação para mostrar o poder do filho de Deus. Por outro lado, representam o pensamento popular do período. “Os evangelhos canônicos não têm preocupação em mostrar a infância. E a humanidade ficou curiosa a esse respeito”, diz. Essa curiosidade perdura até hoje. Para atendê-la, frei Jacir, autor de quatro livros sobre os evangelhos não reconhecidos pela Igreja, está preparando material para o próximo título, A infância de Jesus nos apócrifos.

O teólogo Jorge Cláudio Ribeiro, de São Paulo, concorda com frei Jacir. Ainda que fantasiosas, as narrativas revelam um anseio que as pessoas têm de ver o divino de outra forma. “Os milagres eram mais sérios do que puro exibicionismo. Havia sempre algum ensinamento que Jesus queria enfatizar. O milagre é, sobretudo, uma relação – e não uma exibição”, sustenta. De qualquer modo, os evangelhos apócrifos merecem ser analisados por quem quiser se aprofundar nos estudos religiosos. “Esses textos têm valor documental para avaliar como se via o cristianismo. Eles seriam elaborações de grupos cristãos, alguns ligados à Gnose, uma vertente do pensamento herético”, afirma Francisco Moreno de Carvalho, historiador com especialização na disciplina pensamento judaico na Universidade Hebraica de Jerusalém. Outro especialista, o americano John Dominic Crossan, professor emérito da De- Paul University (EUA) e uma das maiores autoridades em ciências da religião, sustenta que os estudiosos devem ter olhos para os evangelhos canônicos e não-canônicos, analisando as relações entre eles. “A tradição mais antiga não é, em si, mais original ou autêntica do que os relatos mais recentes. O mais antigo é apenas o mais antigo”, declara.

Um ponto em comum entre os textos bíblicos e os apócrifos é a famosa passagem de Jesus pelo templo de Jerusalém, aos 12 anos. Naquele tempo, os judeus costumavam rumar para Jerusalém na Páscoa. No evangelho de Lucas, a família regressava para casa quando se nota a ausência de Jesus. A caravana de José retorna à cidade e o jovem é encontrado no templo, conversando com os sábios. Como toda mãe, Maria aplica uma bronca no filho por ter se perdido. E Jesus lhe responde que não estava perdido. Estava na casa de seu Pai. Nas escritas apócrifas, há um adendo a esse episódio. Os doutores do templo teriam elogiado Maria por ter um filho tão inteligente. O propósito das duas narrativas é ressaltar a sabedoria de Jesus.

O mistério do nascimento

Em relação aos textos bíblicos, também há um crescente interesse nos trechos que abordam a infância do Messias – assim como toda sua biografia. Uma das perguntas é por que há tão poucas informações a esse respeito. Segundo o padre Jesus Hortal, reitor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, doutor em direito canônico, isso se explica porque o interesse exclusivo dos que registraram o início do cristianismo era relatar a Paixão e Morte do Salvador, não a sua vida pessoal. “O objetivo era contar ao mundo que o Filho de Deus se encarnou e se entregou para a humanidade, que sua morte foi redentora e que a ressurreição foi o grande fato, mostrando o amor de Deus”, afirma. O pastor Valdemar Figueiredo, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, acrescenta que a escassez se deve ao fato de que os narradores não pretendiam revelar o homem, e sim anunciar o Messias. “Lucas se propôs a fazer uma pesquisa mais cronológica, mas ele não foi testemunha ocular, não conviveu com Jesus.”

Realmente, mesmo as passagens canônicas não podem ser consideradas fidedignas dentro do conceito de história. “Os relatos devem ser trabalhados no sentido simbólico. Não é seguro precisar nem mesmo o local de nascimento de Jesus”, comenta Valmor da Silva, doutor em ciências da religião e pesquisador da Bíblia na Universidade Católica de Goiás. Os textos bíblicos geram dúvidas se o filho de Maria nasceu em Belém ou Nazaré – ele é chamado o Nazareno. Também não são precisos quanto à fuga da família para o Egito, o que teria ocorrido para que Jesus escapasse à perseguição de Herodes.

Para investigar os episódios descritos pelos evangelhos à luz da história, está em alta uma linha de estudos do Jesus histórico, um campo que suscita paixões. Pesquisas já revelaram que o Nazareno teria vindo ao mundo entre quatro a sete anos antes do que foi calculado. Os estudos feitos sobre o período permitem supor que Jesus deve ter sido mesmo circuncidado aos oito dias de nascimento, como diz a Bíblia. Isso porque era praxe levar o bebê para a circuncisão nessa fase. Também é possível inferir que Jesus tenha ido à “escolinha” aos sete anos. Meninos judeus costumavam entrar para a “Casa do Livro” com essa idade. Como se vê, são aspectos interessantes da vida do menino. O próprio Vaticano incentiva estudos sobre a dimensão histórica do cristianismo. “Pode-se entender esse gesto como uma tentativa de a Igreja não perder o bonde e se aproximar de um discurso mais científico”, diz o sociólogo Eurico dos Santos, coordenador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade de Brasília.

No Brasil, as discussões de Jesus Histórico vão esquentar no final do mês. Acontecerá no Rio, o primeiro seminário internacional sobre o tema. O antropólogo André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos organizadores, prevê debates acalorados. “Precisamos quebrar o preconceito e mudar a forma de pensar a religião no País, que ainda oferece muitas resistências a novidades”, afirma. Segundo ele, as pessoas procuram contradições nos textos bíblicos e os escritores vêem nessa demanda uma oportunidade para vender mais livros. “O elemento religioso faz parte da vida cultural. E as leituras sempre são contemporâneas. Jesus, para mim, era um andarilho de origem camponesa”, crava.

Fonte: Revista ISTOÉ – Edição 1980 de 10 de outubro de 2007

Comentários