Cem anos atrás, no dia 8 de setembro, o papa Pio X divulgou uma encíclica papal, a “Pascendi Dominici Gregis” (“Sobre as Doutrinas Modernistas”), que teria um forte impacto sobre a Igreja Católica e, conseqüentemente, sobre o papel desempenhado por ela na história sangrenta da primeira metade do século 20.

Atualmente, poucos são os católicos, e muitos menos membros de outras religiões, capazes de identificar ou descrever a “Pascendi”. Mas, comparada às encíclicas amplamente conhecidas que dizem respeito a problemas sociais e morais, ela provavelmente teve um impacto mais profundo sobre as vidas religiosas desses indivíduos.

A “Pascendi” foi uma condenação vasta e veemente de um movimento informal de estudiosos da Bíblia, filósofos e teólogos, que foram rotulados de “modernistas”.

Esses pensadores acreditavam que a igreja não poderia ignorar as novas descobertas históricas sobre a Bíblia e as origens do cristianismo. Os modernistas procuraram fazer da intuição, da experiência humana e de impulsos internos as bases para a crença religiosa, em vez de utilizarem as idéias controversas que o neo-escolasticismo, a escola dominante do pensamento católico romano, ofereciam para provar a existência de Deus e a autoridade das Escrituras e da igreja. Eles enfatizaram as limitações de todas as formulações dogmáticas.

Mas além de tais tendências gerais, os modernistas não concordavam quanto a questões mais específicas. Eles foram influenciados pela filosofia secular e pela teologia protestante liberal. Mas estavam também tentando criar uma alternativa distintamente católica ao racionalismo secular ou ao protestantismo liberal.

Roma não via as coisas dessa forma. Segundo a visão de todos os papas desde a Revolução Francesa, a igreja estava sofrendo dois cercos. Um cerco intelectual por parte do racionalismo e do materialismo, e um cerco político por parte do liberalismo e do anticlericalismo. Portanto, qualquer proposta de mudança ou de crítica da estrutura neo-escolástica existente representava uma ameaça letal à fé.

Assim, a “Pascendi” não se limitou a repetir advertências papais anteriores quanto a erros modernistas específicos; ela descreveu os modernistas como uma quinta coluna na igreja, uma conspiração traiçoeira de indivíduos de pensamento semelhante que tinham um programa coerente e uma agenda secreta que destruiria o catolicismo.

A encíclica apontou motivos e intenções ocultas nas atuações dos intelectuais que atacou. Eles seriam motivados por curiosidade, orgulho e obstinação. Tais indivíduos seriam “os mais perniciosos de todos os adversários da igreja” porque trabalhavam dentro dela, empregando “mil artes nocivas” para “ardilosamente” disseminar as suas “doutrinas peçonhentas”. As teorias modernistas podiam parecer “dispersas e desconectadas”, mas na verdade formavam “um corpo perfeitamente organizado” que era nada mais nada menos do que “a síntese de todas as heresias”.

A “Pascendi” fez objeções legítimas a certas noções modernistas, mas em nenhum trecho a encíclica admitia que as propostas modernistas poderiam ser respostas a questões genuínas.

No fim das contas, o conteúdo intelectual da “Pascendi” teve menos importância do que o expurgo de pensadores católicos por ela motivado. Ela propôs que se avaliassem os seminaristas e que estes tivessem uma formação neo-escolástica, defendeu a censura das publicações católicas e a restrição de reuniões nas quais os padres pudessem discutir teologia.

Todas as dioceses deveriam estabelecer um “Conselho de Vigilância” que agiria secretamente no sentido de identificar “qualquer traço e sinal de modernismo” e “cortar o mal pela raiz”.

Em 1910, Pio X foi além, exigindo que todos os atuais e futuros clérigos católicos proferissem um longo juramento de oposição ao modernismo, ratificando detalhadamente as condenações expressas na “Pascendi”.

Em breve uma rede oculta de informantes internacionais começou a operar fora do Vaticano, denunciando secretamente todos os tipos de pensadores católicos que pudessem ter inclinações modernistas.

Em 1915, o recém-eleito papa Bento 15 pôs um fim ao que havia de pior nessa caça às bruxas, que dos assuntos teológicos alastrou-se para as questões políticas.

Mas havia sido criado um clima que não se dissiparia até o Conselho Vaticano Segundo, na década de 1960, e que até hoje afeta vários debates no seio do catolicismo (o juramento anti-modernista foi uma exigência até 1967).

Muitos dos grandes nomes da teologia católica romana da primeira metade do século 20 foram suspeitos de professar o modernismo, incluindo Angelo Roncalli, o futuro papa João 23, e Romano Guardini, um herói do atual pontífice. Os católicos que revelassem qualquer traço de raciocínio independente ou inovador, especialmente se tal raciocínio dissesse respeito a algo importante para o pensamento e a cultura modernos, corriam o risco de verem sabotadas as suas perspectivas de ascensão à liderança da igreja.

Documentos importantes aprovados solenemente pelo Conselho Vaticano Segundo – sobre a natureza da igreja, das Escrituras e da devoção – não se coadunam com certos aspectos da “Pascendi”. E isso também ocorre com relação a várias declarações do papa João Paulo 2°, ou ao mais recente livro sobre Jesus escrito pelo papa Bento 16.

Mas, apesar disso, a “Pascendi” tem os seus defensores. Alguns argumentam que, quaisquer que sejam as suas deficiências, a encíclica foi uma medida certa para a sua época. Para esses defensores, a encíclica e o expurgo que a ela se seguiu impediram que o catolicismo padecesse da perda de vigor interno e sofresse influências externas, algo que eles acreditavam ser o destino do protestantismo.

Eles também acreditavam que a repressão mostrou-se justificada quando alguns modernistas reagiram voltando-se contra a igreja, e uma figura exponencial do movimento admitiu que sempre teve dúvidas radicais quanto à fé.

Alguns defensores da encíclica vão ainda mais longe. Convencidos de que a igreja não está menos ameaçada hoje por hereges internos e inimigos externos, eles gostariam de ver a ressurreição da “Pascendi” e a restauração de um regime severo baseado em juramentos, censuras e denúncias.

Por outro lado, há muitos indivíduos, católicos ou não, que sentem que grande parte dos problemas enfrentados pelo catolicismo contemporâneo é resultado do congelamento que a campanha anti-modernista impôs durante décadas sobre a vida intelectual da igreja, e da conseqüente corrida para confrontar questões que foram reprimidas durante tanto tempo.

Em uma perspectiva histórica mais ampla, eles argumentariam que o anti-modernismo da “Pascendi” foi um renascimento atualizado da batalha contra o liberalismo que o papado e a igreja travaram no decorrer do século 19. Os expurgos motivados pela encíclica incapacitaram os elementos no catolicismo europeu que poderiam opor resistência à simpatia da igreja por regimes autoritários após a Primeira Guerra Mundial, quando governos parlamentares liberais foram dominados pelo totalitarismo.

No curto prazo, a “Pascendi” foi um sucesso: ela fulminou idéias novas e arriscadas. Mas no longo prazo ela fracassou estrondosamente. E o custo disso foi alto.

Fonte: The New York Times

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