Num caso inédito e polêmico, a Justiça de Mato Grosso do Sul está indiciando, julgando e condenando 150 mulheres acusadas de praticarem aborto em uma clínica de Campo Grande – o número total de envolvidas no caso, e que devem passar por uma investigação, é de 1,5 mil.
De julho até o início deste mês, 150 já foram indiciadas, 37 foram julgadas e 26, condenadas a penas alternativas.
“A situação é muito constrangedora”, afirma uma das indiciadas, que prefere não se identificar. “Eles vão fundo nos interrogatórios”, diz ela. A declaração, motivo de revolta nos movimentos de mulheres, entidades de direitos humanos e alas mais progressistas do Direito, é confirmada pelo juiz Aluízio Pereira dos Santos, responsável pelas sentenças.
Ele afirma ser necessário invadir a privacidade nesses casos em busca de detalhes da vida sexual das mulheres suspeitas. Não raras vezes, o juiz afirma intimar maridos, ex-namorados e familiares e exigir exame de corpo de delito – apesar de ele não conseguir comprovar a prática, pois os casos suspeitos ocorreram entre seis e oito anos.
Entre as mulheres julgadas estava uma que comprovou ter desistido do aborto depois de fazer a ficha de internação. Ela apresentou o próprio filho à Justiça, cuja idade é compatível com a data que aparece em seu prontuário médico. Seu caso foi arquivado. A delegada que preside os inquéritos, Regina Márcia Rodrigues, afirma que, por medo, a maioria das mulheres confirma o delito e seus processos são enviados ao Judiciário.
O caso veio à tona em abril do ano passado, quando o Ministério Público Estadual denunciou 10 mil mulheres acusadas de terem feito aborto entre 2000 e 2002, sob os cuidados da médica anestesiologista Neide Motta Machado, proprietária do estabelecimento, na área central de Campo Grande. Até 1999, não existia fichário das clientes, sendo, portanto, incalculável o número de mulheres que passaram pelo local. O Ministério Público afirma que a clínica funcionou por 20 anos.
Indícios
A denúncia foi baseada nas análises de 7.215 prontuários médicos recolhidos no estabelecimento, mas a maioria não continha provas suficientes para condenações. Foram selecionadas quase mil, conforme explicou o magistrado, por causa da qualidade das provas, entre elas exames de ultra-som confirmando gravidez.
Ainda segundo o juiz, a médica responde ao processo criminal em liberdade e será levada a júri popular. Tratamento igual terá a psicóloga Simone Aparecida Cantalezzi de Souza, além das enfermeiras Libertina de Jesus Centurion, Maira Nelma de Souza e Rosângela de Almeida. Os advogados dessas cinco pessoas entraram com recurso no Tribunal de Justiça do Estado para livrá-las do júri popular e aguardam decisão.
Três homens também estão envolvidos nos abortos. Segundo o Ministério Público, eles induziram suas companheiras à prática, depois de engravidá-las. Neide Machado não confirma essa inclusão no rol de ex-clientes, e se defende na condição de médica, alegando o atendimento de mulheres com gravidez indesejada e vítimas de violência sexual.
A ação da Justiça de Mato Grosso do Sul tem sido elogiada por parlamentares e movimentos contrários ao aborto, mas desperta polêmica e acusações de abuso e desrespeito à própria legislação. Um dos fatos questionados é a quebra do sigilo dos prontuários médicos das mulheres. Logo que os papéis foram apreendidos, as fichas das 9.896 mulheres ficaram à disposição do público por cerca de sete dias úteis. A Justiça local, na ocasião, considerou a exposição normal, mas dias depois voltou atrás e decretou sigilo, restringindo o acesso.
Fonte: Estadão