Por pressão principalmente das igrejas, questões como o aborto e a união estável homossexual ganharam este ano relevância nunca vista em eleições anteriores
Por menos que tenham pesado nos resultados das eleições – um dado a ser ainda analisado – temas religiosos tumultuaram a campanha para a Presidência da República. A religião, que em outras ocasiões entrou no debate por iniciativa do episcopado católico, subiu ao palanque e invadiu a internet em 2010 por pressão de cristãos de várias igrejas, com a introdução de questões como o aborto e a união estável de homossexuais. Bispos e pastores encamparam a discussão, mas a sugestão partiu das bases, para forçar os principais candidatos, Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), a se definirem. Na quinta-feira, Bento XVI endossou indiretamente essa posição, falando a bispos brasileiros em Roma, aos quais aconselhou orientar os eleitores a rejeitar pelo voto candidatos e partidos favoráveis ao aborto e à eutanásia.
“Esse discurso do papa é uma ingerência direta nos negócios do Brasil, o presidente Lula deveria reclamar com o Vaticano”, reagiu Reginaldo Prandi, professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Ao analisar a introdução do tema religioso nas eleições, ele afirma que “as igrejas puseram o aborto na campanha e os marqueteiros caíram na esparrela, acolhendo uma questão que não é assunto para presidente da República, mas para deputados, em eleições proporcionais”. Para o sociólogo, “o catolicismo perdeu a noção de consciência social e apelou para temas morais, como o aborto e a união homossexual, porque não tem o que dizer”.
Prandi achou ridículo Dilma e Serra terem ido a Aparecida, por ocasião da festa da Padroeira do Brasil, “porque candidato não tem de pedir a bênção de bispo nem da Santa”. Para o sociólogo, “religião não é uma aliada confiável nessas circunstâncias e, como existem várias religiões, os presidenciáveis devem ter irritado os evangélicos, que baniram a devoção a Nossa Senhora de suas vidas”. Ao analisar os números do primeiro turno, Prandi chega à conclusão de que o debate em torno de temas religiosos não foi a causa, mas um elemento desestabilizador para Dilma não ter vencido em 3 de outubro. “A religião tumultuou a campanha, e isso foi interessante”, observou.
“A religião sempre teve importância nas eleições, sobretudo a Igreja Católica, mas este ano surgiu um fato novo, o ativismo religioso de grupos ou segmentos que, ao defender a vida e condenar o aborto, vetaram candidatos e partidos, recomendando aos fiéis que não votassem neles”, disse a socióloga Maria das Dores Campos Machado, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Chama a atenção, diz, a ênfase dada a um tema moral, em contraste com campanhas passadas, quando as preocupações eram a pobreza, a fome e a justiça social, plataformas dos militantes das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que estavam nas origens do PT.
O debate sobre aborto, na avaliação de Maria das Dores, levou a uma queda de braço que não se via nas últimas décadas, não só entre bispos da Igreja Católica, mas também entre líderes evangélicos. “Essa discussão é nociva, porque me parece marcada pelo fisiologismo e pela troca de favores”, adverte. “As igrejas se dividem e disputam espaço no plano regional, ao declarar apoio pragmático a um candidato.”
[b]Fundamentalismo[/b]
Outro sociólogo, Luiz Alberto Gomez de Souza, diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes, no Rio, acha que houve uma valorização excessiva do tema religioso e uma instrumentalização dessa questão por grupos fundamentalistas. “Nunca houve, em eleições anteriores, essa polarização que se viu agora, nem mesmo quando a Igreja Católica condenava candidatos favoráveis ao divórcio, como o senador Nelson Carneiro (autor e defensor do projeto)”, observou o sociólogo. Em sua avaliação, foi negativo cobrar dos candidatos uma definição pessoal em relação ao aborto, porque “no mundo moderno e leigo em que vivemos, isso é fazer confusão entre fé e política”.
É diferente a opinião do presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), d. Geraldo Lyrio Rocha. Ao falar sobre a polêmica criada pelo bispo de Guarulhos, d. Luiz Gonzaga Bergonzini, e outros bispos que recomendaram aos eleitores não votar em Dilma, ele declarou, em Brasília, que o aborto não poderia ter ficado fora do debate eleitoral. A CNBB não citou nomes de candidatos, preferindo aconselhar os católicos a escolher pessoas comprometidas com a defesa de valores éticos, entre eles a defesa da vida, mas reconheceu o direito de um bispo se pronunciar da maneira que quiser, em sua diocese.
“D. Geraldo Lyrio tomou uma posição equilibrada, de acordo com a tradição do episcopado de não apoiar ou vetar candidatos, mas de falar em princípios”, elogiou o padre José Oscar Beozzo, historiador e teólogo. Mesmo quando o cardeal Joaquim Arcoverde, arcebispo do Rio, tentou, sem sucesso, criar um partido em 1915, a Igreja limitou-se a dar orientação geral. Em 1933, a Liga Eleitoral Católica apoiou a instituição do voto feminino, então restrito às viúvas e às desquitadas, e fez campanha pelo alistamento de eleitores, arregimentados à porta dos templos. Em 1946, os bispos combateram comunistas e divorcistas, sem citar nomes.
A novidade da campanha de 2010, segundo Beozzo, foi ter entrado em cena um lobby contra o aborto, “fazendo dele a questão única por influência dos movimentos Pro Vida e Opus Dei, como se fosse essa a posição oficial da Igreja”. Esse equívoco provocou um racha no episcopado, como não se via desde 1968, “quando um grupo de bispos pediu ao presidente Costa e Silva que interviesse na CNBB para banir os comunistas do episcopado”. Em vez de vetar candidatos supostamente favoráveis ao aborto, sugere o teólogo, os bispos deveriam dar aos fiéis a liberdade de tomar posição de acordo com sua consciência.
[b]Fonte: Estadão[/b]