No Brasil, desde o início da epidemia, mais de 820 mil pessoas foram contaminadas. Dessas, aproximadamente 370 mil desenvolveram a Aids Evangélicos ainda não abriram os olhos para a realidade da Aids, mas cada vez mais crentes descobrem que a fé é excelente aliada dos remédios no combate à doença.

Meire era uma jovem evangélica como tantas outras. Sonhava encontrar seu “príncipe encantado”: um rapaz belo, esforçado e, sobretudo, temente a Deus como ela. Por isso, quando conheceu Pedro, um recém-convertido que cantava com o conjunto jovem da igreja e se dedicava ativamente como evangelista, percebeu que ali poderia estar a pessoa que, de acordo com sua expectativa, Deus prepararia para ficar ao seu lado. Apaixonada, quando ele fez a proposta, não relutou – mesmo com a pouca idade, casaram-se. Logo vieram os filhos e a jovem família era um modelo na congregação. Porém, depois de poucos anos, Meire notou algo estranho. Tiago, seu caçula de dois anos, estava sempre doente. Márcia, a filhinha de três, também sofria com uma gripe que não passava. Não muito depois disto, a própria Meire percebeu que estava emagrecendo sem razão. Perdera dez quilos em poucas semanas, sem qualquer dieta. Enfraquecida, contraiu pneumonia e foi internada às pressas no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Desconfiados, os médicos pediram que a família toda fizesse o chamado teste Elisa, que identifica infecção pela temida síndrome da imunodeficiência adquirida. Só então Pedro revelou que, antes de se converter ao Evangelho, fora usuário de drogas e tivera relações sexuais com prostitutas.

O resultado era que ele estava contaminado com o vírus da Aids e passara a doença para a mulher e os filhos. Desesperados, foram à igreja onde eram membros pedir conselho ao pastor. Entristecido, mas cheio de esperança, o ministro disse que a igreja iria orar por sua saúde. De fato, a comunidade orou e jejuou – mas nada aconteceu. A saúde de Tiago e Meire piorava a cada dia. Cuidadoso de sua discutível reputação como líder religioso, o pastor acabou agindo sem misericórdia: excluiu a família toda da igreja. E como desculpa, ainda disse que para este tipo de pecado não havia perdão. Abatida pela enfermidade e ferida pela rejeição da própria igreja, Meire morreu poucos meses depois em intenso sofrimento. Em seguida, foi a vez de Tiago que, sem forças para chorar, deu seus últimos gemidos na cama do hospital.

Por mais incrível que pareça para uma época de tantos avanços, descobertas e informação, inclusive em relação às doenças, suas causas e formas de transmissão, a história acima e seus personagens são dolorosamente reais. E, tragicamente, não é única a engrossar estatísticas oficiais e pesar no coração dos voluntários que realizam o trabalho de capelania no prestigiado Emílio Ribas, unidade de referência em todo o país no tratamento de Aids. Há 26 anos, quando foram observados os primeiros casos entre os homossexuais nos Estados Unidos, a doença mais parecia uma obra de ficção. Chamada pejorativamente de “peste gay”, nos primeiros momentos a doença foi tratada pelos evangélicos como uma espécie de castigo divino contra o pecado. No entanto, a Aids logo ganhou contornos de epidemia, atingindo toda a sociedade, inclusive heterossexuais que nunca tiveram vida promíscua, como no caso de Meire. Já há remédios para controlar os efeitos provocados pelo HIV, o vírus da Aids, sobre o organismo humano. Assim, é possível dar mais qualidade e tempo de vida aos pacientes. Muitos infectados sobrevivem sem apresentar sintomas, como no caso do astro do basquete americano Magic Johnson, que revelou ao mundo sua condição de portador do vírus em 1992 e permanece vivo e em boa forma. Mas, apesar dos bilhões de dólares investidos em pesquisas e desenvolvimento de drogas, ainda não há cura no horizonte da doença.

Agora, nesta primeira década do novo século, a Aids tem crescido e atingido vítimas de contornos sociais multifacetados. Agora, ela avança como nunca entre jovens e mulheres das classes mais humildes e entra nas igrejas sem pedir licença. E, pior – a grande maioria dos evangélicos não sabe como lidar com ela e ainda prefere ignorar o assunto. “Infelizmente, ainda temos a mentalidade de que isso nunca vai acontecer no nosso meio. É uma fantasia, pois está acontecendo. Já chegou a hora da Igreja superar a visão da doença maldita destinada aos pecadores, parar de discutir o primeiro capítulo de Romanos e partir para um trabalho não apenas interno, mas junto à sociedade”, defende a presbiteriana Eleny Vassão Aitken, dirigente da Capelania Evangélica no Emílio Ribas. É com muita paciência que ela e os outros voluntários do serviço trabalham para assistir aos pacientes e suas famílias e ainda superar a falta de apoio de muitas igrejas. Exemplo são os seminários dirigidos às lideranças. A Capelania já realizou três eventos do gênero, com audiências crescentes. Mas quando propôs reunir pastores e líderes para discutir o drama da Aids entre os crentes, veio a decepção. Apesar da presença de gente de todo o país, não veio ninguém de São Paulo, onde o seminário era realizado.

Horror – Se a doença já é terrível, quase tão ruim é perceber que, no segmento evangélico, ela gera tanto horror quanto fora da Igreja. “Já presenciei casos em que pessoas infectadas pelo HIV vieram participar do culto. Quando se sentaram no banco, quem estava perto se levantou e foi procurar outro lugar”, lamenta Eleny. Em suas costumeiras palestras nas igrejas, a própria capelã já sentiu o peso da discriminação. Houve casos em que os presentes, com medo, sentavam-se quatro bancos atrás ou se aglomeravam no fundo do templo. “Para que viessem à frente, precisei dizer que não estava contaminada”, lamenta. Segundo ela, para superar esse tipo de comportamento é preciso que a Igreja se revista da compaixão de Jesus e deixe de julgar o comportamento alheio. “Não podemos ficar apontando o dedo. Conheço a esposa de um pastor que foi contaminada em uma transfusão de sangue após sofrer um acidente. Sem saber, ela transmitiu o vírus para o marido e para o filho, que nasceu alguns meses depois. Será que tem cabimento falar que alguém mereceu isso?”, questiona.

Algumas vezes, o preconceito surge de forma muito mais discreta, mas igualmente arrasadora. A psicóloga Jenny de Andrade atuou durante seis anos como voluntária na Casa Filadélfia, uma instituição mantida por evangélicos que abriga crianças portadoras do HIV na Zona Leste da capital paulista. “Fazíamos parcerias com as igrejas da região para levar as crianças na escola bíblica e nos cultos. Mas muitas congregações não aceitavam, com medo de alguma criança se machucar e contaminar outras, o que é praticamente impossível”, conta. Foi nesse período que percebeu que quem mais apoiava os doentes não era necessariamente quem tinha mais recursos. “O essencial não é ter recursos ou espaço, mas um coração missionário. E amor, pois muitas igrejas até mantêm missionários que trabalham na assistência a doentes, mas nunca dão oportunidade para eles prestarem um relatório público sobre seu trabalho, com medo de chocar os presentes.”

Tudo isso torna ainda mais dramática a luta contra a Aids. Estima-se que 40 milhões de pessoas em todo o mundo travem diariamente essa guerra contra o HIV. Desde que foi descoberta, a doença já matou outros 25 milhões de pessoas. A esse exército, todos os anos somam-se mais 5 milhões de humanos que, em média, que contraem o vírus – 90% deles habitantes do Terceiro Mundo. Isso equivale a 14 mil novas infecções diariamente. Ou, para ficar mais claro: conte até seis rapidamente. Pronto!, em algum lugar do planeta, alguém acaba de contrair o HIV. Já no Brasil, desde o início da epidemia, mais de 820 mil pessoas foram contaminadas. Dessas, aproximadamente 370 mil desenvolveram a Aids, o estágio em que o vírus se multiplica a ponto de atacar o sistema imunológico, destruindo as células de defesa do organismo e permitindo que a pessoa fique vulnerável às chamadas doenças oportunistas, como pneumonia e tuberculose. Com o organismo debilitado, estas enfermidades, que em condições normais podem ser debeladas com antibióticos, costumam ser fatais. Aliás, estima-se que 170 mil doentes já morreram no Brasil. Mas todos esses números ainda podem estar bem aquém da realidade, já que não poucos especialistas garantem que muita gente não sabe que está infectada ou não procuram assistência adequada, mascarando as estatísticas oficiais do Ministério da Saúde.

Desde que os primeiros casos de Aids foram descritos nos Estados Unidos, a doença atravessou três fases distintas. Na primeira, as reações eram de indiferença e até hostilidade. As vítimas, em sua maioria homossexuais de Nova York e Los Angeles, costumavam ser expulsas de casa, demitidas do trabalho e tinham cuidados médicos negados. Com o organismo profundamente debilitado, apresentavam uma estranha associação de pneumonia e um câncer de pele chamado sarcoma de Kaposi. Em 1983, um artigo escrito por Pat Buchanan, então conselheiro do presidente dos EUA, Ronald Reagan, retratou bem o clima: “Pobres homossexuais; declararam guerra à natureza e agora a natureza lhes dá o troco”. O próprio Reagan, confessadamente protestante, só falaria à nação sobre o assunto em 1985, após a doença já ter saído do gueto e matado 12 mil cidadãos americanos. A morte de celebridades vítimas de Aids, como o ator de Hollywood Rock Hudson e o roqueiro inglês Freddie Mercury lançaram a doença definitivamente ao conhecimento público.

“Vontade de Deus”

Bem longe dos holofotes da fama, contudo, milhões de pessoas são vítimas silenciosas da Aids. E as mulheres já constituem quase a metade dos infectados – muitas delas, casadas e fiéis, surpreendidas pelo HIV como prova cruel da traição dos maridos. Atualmente, há quase tantos soropositivos femininos quanto masculinos em todo o globo. Há uma explicação lógica: nas relações sexuais com parceiro contaminado e sem uso de preservativo, o contato com o sêmen, um dos principais vetores da doença, é inevitável. No Brasil, os homens ainda são maioria, mas o vírus avança sobre o público feminino vorazmente. Entre 1994 e 2004, houve um crescimento de novos casos de 175% entre as brasileiras. Entre o público masculino, o mesmo índice não passou de 28%. Já são 240 mil as mulheres brasileiras portadoras do HIV.

Uma delas é Solange F., 35 anos. Ela confessa que tem medo – só não sabe o que mais a assusta: morrer e deixar os três filhos ou sofrer preconceito. Em 1992, foi contaminada por um rapaz em uma relação sexual sem proteção. Só o soube em 1995, quando ficou grávida. “Foi um choque. Fiquei desesperada e sem rumo”, conta. Enveredou pelo caminho das drogas e teve duas overdoses. Mas, graças à irmã, que não parava de orar por ela e de lhe pregar, entregou a vida a Jesus. Passou literalmente a ter uma nova vida. Conheceu o marido – que não tem o HIV – quando ele acompanhava sua irmã, soropositiva, para tratamento no Emílio Ribas. Membro da Assembléia de Deus, sua vida passou a ser marcada pela esperança de conseguir um emprego e, “se for da vontade de Deus”, como ela mesma diz, ser curada.

O que não significa que a vida tem sido fácil. Em 2005, por exemplo, perdeu o filho de 13 anos, vítima da Aids. Ele havia contraído o vírus em uma transfusão de sangue quando nasceu. Tomava medicamentos, mas o organismo nunca se adaptou. Porém, o mais duro para Solange foi a decepção. Na igreja, as pessoas lhe entregaram inúmeras profecias acerca da cura do menino. “Deus está trocando o sangue dele”, dizia um crente. “Essa doença não é para a morte, mas para a glória do nome do Senhor”, garantia outro. Cheia de esperança, gravou as supostas revelações na mente. “Quando meu filho morreu, fiquei revoltada”, lembra. “Se alguém vinha me contar que Deus havia mandado falar isso ou aquilo, nem ouvia. Dava as costas e não escutava.” Aos poucos, Solange tem superado as amargas lembranças. Separando o divino do humano, começa a aprender a discernir a voz de Deus e recupera a confiança. Mas a cada momento precisa lutar, especialmente quando dúvidas invadem seus pensamentos e o coração aperta. “A vida não é mais a mesma. Há dias em que estou bem, alegre; outros, não. Mas sei que só tenho vencido por causa da presença do Senhor no meu viver”, sorri ela ao lado do irmão, que costuma acompanhá-la quando vai ao hospital. Doses constantes de AZT – coquetel que mistura 17 drogas diferentes e é capaz de combater o vírus –, ao lado da fé, a têm mantido viva.

Rinaldo da Silva, ex-travesti e ex-usuário de drogas, descobriu ter Aids quando já estava em estado terminal. Na cama do hospital, contraditoriamente, sua vida começou. “Uma senhora veio até mim e fez uma oração, dizendo que a partir daquele momento eu pertenceria ao Senhor. De fato, fiquei encorajado – deixei a bruxaria e do espiritismo, que praticava desde criança, e segui os caminhos de Deus”, relata. Silva teve todo tipo de doenças oportunistas e chegou a ser desenganado pelos médicos, mas perseverou no tratamento e em sua fé. Não só recuperou-se, como passou a freqüentar a Assembléia de Deus, tornando-se um ativo evangelista. Lá, conheceu uma mulher e se casou. Após oito anos de casamento, tem dois filhos, e tanto a mulher quanto as crianças são perfeitamente saudáveis. “Creio que isso é um milagre de Deus. Eles fazem exames periódicos que dão negativo. Quando olho para eles vejo a glória do Senhor”, alegra-se.

Porém, há pouco tempo, Silva passou por uma situação bastante delicada. Durante cinco anos, o evangelista tomou cuidadosamente o coquetel anti-Aids. Mas, depois de receber uma suposta revelação divina, parou completamente de consumir os medicamentos durante dois longos anos. No começo, tudo parecia bem. Como acontece com muitos pacientes que se submetem ao tratamento, sua carga viral ficou tão reduzida que se tornou indetectável. Ao parar com os remédios, os efeitos colaterais cessaram e, de fato, Silva parecia curado. Mas, sem combate, o HIV voltou a se proliferar e a infecção a crescer em seu organismo, atingindo níveis perigosos e colocando em risco sua vida. Por incentivo de sua médica, também evangélica, retomou o tratamento. Apesar de creditar a boa saúde à providência de Deus e não aos remédios, ele aprendeu que prudência é também uma recomendação bíblica.

“Infelizmente, nem todos têm oportunidades assim”, adverte o pastor congregacional João Batista Garcia, que presta acompanhamento espiritual a doentes de Aids. Conheceu um paciente que tinha o HIV havia mais de dez anos e submetia-se regularmente ao tratamento, até ter sua cura “determinada” irresponsavelmente por seu pastor. Entusiasmado, o rapaz jogou fora os remédios. “Mas, após um tempo, seu quadro clínico se agravou a tal ponto que precisou ser internado. Os médicos tentaram retomar o tratamento, mas o tempo em que parou com o coquetel fez com que o vírus se tornasse resistente e o próprio organismo já não aceitava mais as drogas”, lembra o religioso. Após pouco mais de um mês, ele faleceu. “Tentei falar com ele muitas vezes sobre a fé, mas não adiantou. Não queria nem saber do Evangelho, pois achava que Cristo tinha falhado e mentido a ele”, lamenta Garcia. “Se a pessoa tem realmente fé, ela vem e faz o teste para comprovar sua cura e testemunhar comprovadamente o que Deus fez por ela. E não pára simplesmente de tomar os medicamentos”, aconselha a capelã Eleny Vassão.

Compreensão

O problema é que tomar o coquetel é muito penoso. Os efeitos colaterais prejudicam a saúde, mexem com a auto-estima e roubam qualidade de vida. Grande parte dos pacientes sofre de um desarranjo na distribuição de gordura no corpo, conhecido como lipodistrofia. O rosto, as pernas e os braços afinam; os vasos sanguíneos ficam aparentes e a gordura migra para a barriga e para o tórax. Alguns conseguem se adaptar, mas outros sentem-se estigmatizados e não tiram a roupa nem para tomar banho. Por causa disso, o Ministério da Saúde passou a oferecer também procedimentos estéticos como preenchimento facial e cirurgia plástica. Mas não há como atender todos os pedidos. E estes são apenas os efeitos mais visíveis. Altamente tóxicas, as drogas ainda podem elevar os níveis de colesterol, de triglicérides e provocar diabetes. Isso, quando não comprometem o funcionamento do fígado. O teólogo e professor de inglês Gerson Alves Gomes, 43 anos, membro da Comunidade Cristã Tempo da Graça, enfrenta vários desses efeitos. Além de altas taxas de colesterol, tem problemas renais e de fígado. Como outros pacientes de Aids, não sabe se os transtornos são causados pelos medicamentos ou pela sua ação conjunta com o vírus. Para contorná-los, faz uma dieta rigorosa, sem gorduras nem carboidratos, e costuma andar muito. “É ruim, mas se comparado à forma como eu estava antes, em estado terminal, vivo muito bem”, resigna-se.

Quando descobriu que era portador do HIV em 1992, Gomes entrou em depressão e só esperava a morte. Nascido em berço evangélico, ele sempre fora muito questionador e, sem encontrar respostas, saiu da igreja com 13 anos. Envolveu-se com o homossexualismo e acabou contaminado. Um dia, em meio à crise, lembrou-se de quando era menor e resolveu tirar uma palavra na caixinha de promessas, um costume de evangélicos que gostam de estimular a própria fé por meio de uma coleção de versículos impressos em cartões. “Saiu o texto de Jeremias 30.17, que fala sobre cura e restauração e também que Deus não se esqueceu dos seus. Eu sabia que não era coincidência”, recorda.

A partir de então, Gomes percorreu o longo e árduo caminho para abandonar a homossexualidade. O total apoio da igreja em que congregava na época foi decisivo para isso. Ainda assim, temeroso da reação dos irmãos de fé, ele não revelou que era soropositivo. “Tive medo do possível preconceito”, confessa. Pouco tempo depois, procurou tratamento. “Como minha carga viral estava muito alta, comecei tomando 22 comprimidos diariamente. Também contei à Igreja e, para a minha surpresa, fui muito bem aceito”, alegra-se. Apesar disso, o teólogo sabe que poucas igrejas têm semelhante mentalidade – por isso mesmo, passou a dar testemunhos e palestras estimulando este tipo de comportamento “Precisamos despertar para o drama da Aids. E como urgência”, pede à comunidade evangélica.

Santos remédios

Foi sobre este tipo de trabalho que o sociólogo Gedeon de Alencar, presbítero da Assembléia de Deus Betesda e Diretor do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos (ICEC), ambos em São Paulo, falou em sua exposição no Simpósio Aids e Religião, realizado pelo Ministério da Saúde no ano passado em Brasília e que reuniu centenas de representantes de diversas religiões. Ali, ele defendeu que a Igreja Evangélica deve acolher os doentes com responsabilidade e amor. “Muitos ficaram chocados, pois estavam recebendo informações de que os evangélicos eram contra tratamentos e campanhas de conscientização e que pregavam curas irresponsavelmente”, explica ele. Gedeon sabe bem do que fala. Filho de crentes devotos, ficou órfão devido a um acidente de carro quando tinha 19 anos. Sem a influência espiritual dentro de casa, caiu no mundo, como se diz no jargão evangélico. Passou alguns anos de uma vida desregrada, envolveu-se com mulheres e não se cuidou. Um tempo depois, reconciliou-se com a igreja. Mas era tarde demais – em 1997, já casado, teve uma forte infecção intestinal e um exame revelou a verdade: Gedeon estava com o HIV. “Foi um milagre minha mulher não ter se contaminado. Mas para mim, parecia o fim. Achei que ia viver pouco”, conta.

Só que passaram-se dias, meses e anos e ele não morreu. Ao contrário, tem boa qualidade de vida e sua aparência não sugere, nem de longe, que seja soropositivo. Pesa para o seu bem estar, além do rigoroso tratamento a que se submete, a fé e a aceitação dos irmãos da igreja onde congrega. “Algumas pessoas não conseguiam acreditar quando souberam de minha doença, mas recebi carinho e força de todos, o que foi um verdadeiro bálsamo em minha vida”, alegra-se. “E também pude ver que havia muita gente como eu – portadores do HIV que não tinham coragem de vir a público. Muitos até hoje continuam em silêncio diante da maioria, mas puderam ser aconselhados e tiveram forças para retomar a vida.”. Para pessoas como Gedeon Alencar, amor e compreensão continuam sendo os melhores e mais eficazes ingredientes, verdadeiros santos remédios, na luta contra a Aids.

Quadro 1: Prevenção ou irresponsabilidade?

Se por um lado, a Igreja trata a questão da prevenção à Aids como um tabu, as campanhas preventivas promovidas pelos ministérios da Saúde e Educação fazem totalmente o inverso. Apesar da laicidade do Estado brasileiro, diversos setores, tanto evangélicos quanto católicos, criticam o que consideram exageros do governo. Algumas ações, de fato, mais parecem promoção do sexo irresponsável. Um exemplo disso é o projeto para a instalação de máquinas que forneçam camisinhas – semelhantes as de refrigerantes – nas escolas. Para isso, os ministérios da Saúde e da Educação promoveram um concurso entre os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets) para escolher um protótipo da engenhoca, que forneceria o preservativo na embalagem unitária. A intenção é apresentar projeto vencedor no fim deste ano.

Outra iniciativa que gerou bastante controvérsia foi a distribuição do Caderno das coisas importantes, uma espécie de diário com espaço para os adolescentes registrarem suas experiências amorosas, inclusive os eventuais relacionamentos sexuais. Foram confeccionados 400 mil exemplares para serem distribuídos a alunos na faixa etária dos 13 aos 19 anos. Mas de acordo com Mariângela Simões, diretora do Programa Nacional DST/Aids, a crítica de que o material promove a estimulação precoce da sexualidade é inválida. “O Estado não pode basear uma política de saúde pública em princípios morais e religiosos”, pondera

Mesmo sem enveredar pela linha moralista ou religiosa, o médico Vicente Amato Neto, especialista em doenças infecciosas e parasitárias e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a premissa de tais campanhas está correta – mas, muitas vezes, argumenta, elas levantam bandeiras equivocadas. “A campanha pelo uso do preservativo é eficaz para pessoas contaminadas ou saudáveis, mas já conscientes do parceiro com quem se envolvem. Mas, para os jovens, ela é inconsistente. E é nesta faixa etária, que não conhece a crueldade da doença, que a infecção mais cresce”, sustenta, com a autoridade de ter sido aquele que diagnosticou o primeiro caso de Aids adquirida no Brasil, há exatos 25 anos. Uma pesquisa recente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) aponta que 62% dos jovens entre 20 e 24 anos com vida sexual ativa não costuma usar a camisinha em seus relacionamentos sexuais depois da primeira transa.

“Para um combate eficaz à epidemia da Aids é necessária mais que a intervenção do governo – é fundamental o envolvimento de todos”, argumenta, por sua vez, Karina Lira, que atua na coordenação do Programa Iniciativa Esperança, mantido pela Visão Mundial. A entidade, de orientação evangélica, acredita que seja necessária a afinação entre o governo, a família e a Igreja. Para ela, a indiferença do poder público em relação às questões morais, como a abstinência sexual, e a intolerância da Igreja – no caso, a Católica – em questões como o uso de preservativos têm sido alguns ds principais obstáculos para esse diálogo e, conseqüentemente, para o enfrentamento da Aids. “Certamente, há que se melhorar as campanhas publicitárias existentes, e a sociedade civil já tem feito esses questionamentos. Diante da atual realidade, entendemos que o preservativo é um meio eficaz de prevenção; todavia é necessária também uma reflexão sobre sua associação com a promiscuidade e infidelidade. Enfim, precisamos refletir sobre o seu caráter essencial que é preservar”.(Marcelo Brasileiro e Marcos Stefano)

Quadro 2: Pragmatismo surpreendente

A Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que acaba de completar 30 anos de fundação, meteu-se em mais uma das muitas polêmicas que marcam sua trajetória. A inauguração de um megatemplo da denominação em Joanesburgo, na África do Sul, foi marcada, além da fé e das orações, pela distribuição de 150 mil camisinhas ao público. O fato aconteceu em maio deste ano e chamou a atenção da imprensa internacional, já que os evangélicos, tradicionalmente, são bastante reservados em questões relativas à conduta sexual.

A polêmica esquentou ainda mais quando circulou a notícia de que a Universal pretenderia fazer o mesmo em alguns de seus templos no Brasil. A celeuma foi tão grande que até o líder máximo da Iurd, bispo Edir Macedo, veio a público desmentir a intenção de distribuir preservativos por aqui – e deu uma aula de um pragmatismo surpreendente para um pastor evangélico. “Continuamos defendendo que o relacionamento sexual dentro do casamento é o único meio seguro de evitar a doença, mas não podemos evitar que pessoas que ainda não têm compromisso com Deus se relacionem sexualmente”, declarou, em programa veiculado pela Rede Record de Televisão, ligada à Universal. “Temos que pensar que na África o povo não teve a mesma conscientização e formação dos brasileiros. Distribuindo camisinhas, estamos fazendo um trabalho social como costumamos realizar na igreja, e ainda faremos as pessoas pensarem em nossa mensagem”, enfatizou Macedo.

De fato, a África tem sido um trágico celeiro da Aids. Relatório epidemiológico do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), apresentado no final de 2006, revela que a África possui 25 milhões de infectados, ou dois terços dos portadores do HIV em todo mundo – embora o continente abrigue apenas 10% da humanidade. Estima-se que três quartos daqueles que já morreram de Aids desde a década de 1980 sejam africanos. Um quadro de guerra, mas que muitos ainda apostam estar aquém da realidade. Mesmo assim, organizações cristãs internacionais preferem fazer a diferença usando o discurso evangélico tradicional. Em Mutare, Zimbábue, por exemplo, a Family Aids Caring Trust (Fact), que em português significa Associação para o Cuidado às Famílias com Aids, mobliza e treina igrejas para oferecer aconselhamento às famílias e cuidados aos doentes de seus bairros. “Pelas equipes de voluntários e baixo custo, um número maior de pessoas recebe ajuda. Há também necessidades emocionais, pois muitos estão vivendo a realidade da morte. E aí, a mensagem de esperança cristã pode ser eficazmente ministrada”, diz o pediatra Geoff Foster, fundador da Fact. (Marcos Stefano)

Quadro 3: Unidade na luta contra a Aids

Nem todos os evangélicos fecham os olhos para o drama da Aids. Ciente de que a doença é uma realidade dentro e fora da Igreja, a entidade ecumênica Koinonia lançou o projeto Aids e Igreja, para mobilizar e traçar estratégias junto às igrejas cristãs no sentido de prevenir a doença e oferecer acolhimento espiritual às pessoas contaminadas. Para isso, realizam por todo o país seminários de que visam a sensibilizar e treinar lideranças para lidar com o problema. “Oferecemos um curso de formação específico e damos acompanhamento ao trabalho desenvolvido, através de oficinas e troca de experiências”, explica o metodista Anivaldo, secretário de Planejamento e Cooperação da Koinonia.

Em quase duas décadas de trabalho, mais de 18 denominações participaram do treinamento. Como resultado, igrejas tradicionais como Metodista, Luterana, Presbiteriana Independente e Anglicana já têm programas específicos. O sonho de Padilha é unir os evangélicos na luta contra a Aids, independentemente da confissão de cada um. “Agora, estamos trabalhando junto aos pentecostais e às comunidades”, diz o secretário. “É um desafio, pois muitas igrejas são mais isoladas. Porém, tenho visto diversas mudanças e o surgimento de uma nova mentalidade diante da Aids: não a de acusar, mas de acolher e educar”, comemora. (Marcos Stefano)

Quadro 4: Soropositivo e missionário

“Se não soubermos auxiliar nossos jovens com orientações e os que nos procuram com apoio, como faremos diferença entre os excluídos?”, questiona o pastor José Ramos Neto, 38 anos, da Igreja Cristã da Redenção. Soropositivo, ele considera que o fato de estar vivo já é um milagre. Contraiu o vírus em 1993, devido à vida promíscua que levava como homossexual. Convertido ao Evangelho, atuou como capelão no Hospital Emílio Ribas e ali conheceu outra portadora do HIV, Lucinéia, com quem se casou. Eles têm um filho, Lucas, que é saudável graças a um processo que a ciência chama de “soroconversão” – mas os pais preferem atribuir à mão de Deus. Ramos já passou por dissabores, como ouvir de um colega de ministério que “evangélicos não podem ser aidéticos” – aliás, uma expressão de cunho pejorativo e incorreta, segundo quem lida com o assunto. Contudo, Ramos tem feito de sua condição uma plataforma para levar muitos soropositivos a Cristo. Um deles é Sebastião de Freitas, 39 anos. Ex-presidiário, ele pegou o HIV da mulher, já falecida. Como não conseguia emprego, passava noites se drogando, enquanto os filhos choravam famintos no barraco improvisado em que moravam na Favela Bonança, em São Paulo. O pastor aceitou o desafio e, juntamente com os irmãos da igreja, tirou a família de lá, deu a eles uma casa, providenciou tratamento para o pai e cuidou das crianças. Há três meses, Freitas entregou a vida a Jesus e agora arrumou emprego. “Nem eu estou acreditando nessa mudança. Eles me trataram como ser humano. Ninguém teve tanto carinho assim comigo, nem mesmo minha família. É realmente um grande privilégio conhecer a Deus”, comemora.

Fonte: Revista Eclésia

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