Consolidação da presença feminina no pastorado leva à busca por novos modelos de liderança na igreja evangélica brasileira.
Desde os tempos em que cabia às mulheres a exclusiva tarefa de ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos, elas são maioria nas igrejas. Basta visitar um culto para se ter a impressão de que as mulheres são muito mais numerosas que os homens nas igrejas. Mas só há relativamente pouco tempo têm tido acesso ao local de mais destaque no templo: o púlpito. Ultimamente, o ministério feminino tem ganhado força, num mundo onde cada vez mais as mulheres se destacam. Em mais e mais igrejas evangélicas – tradicionais, pentecostais ou neopentecostais –, a figura das pastoras, diaconisas, presbíteras e até bispas já se tornou rotineira, situação bem diferente do que ocorria no passado, quando ao gênero feminino eram reservados cargos de menor visibilidade, como cuidar de crianças ou lecionar na Escola Dominical. A Igreja Evangélica brasileira chega à segunda década do século 21 com uma face mais feminina do que nunca.
Segundo as estatísticas da organização Servindo Pastores e Líderes (Sepal), quase 60% dos crentes brasileiros são mulheres. E, embora ninguém goste de assumir qualquer discriminação, é fato notório que a membresia feminina demorou bastante para sair das posições eclesiásticas periféricas e conseguir ascender à liderança. Mas que fique claro que não foi uma transformação consciente, planejada – como acontece com a maioria das mudanças de natureza social, a revolução feminina evangélica é parte de um todo. “A Igreja passou a responder às necessidades da sociedade e essa mudança de paradigma se deu na medida em que a sociedade abriu-se para a liderança feminina nas mais diversas áreas”, diz o missionário Luis André Bruneto, coordenador de pesquisas da organização Servindo Pastores e Líderes (Sepal).
O pesquisador situa tal metamorfose num passado recente. “Essa abertura à mulher ocorre nas décadas de 1970 e 80, e vai se refletir na Igreja principalmente nos anos 90, exatamente a época em que a Igreja brasileira mais se pulverizou e cresceu”, aponta. O surgimento de milhares de novas congregações evangélicas, fenômeno religioso contemporâneo no país, é uma explicação. “Isso se deu devido à necessidade de líderes que a própria Igreja possui”, acrescenta Bruneto. E as mulheres foram naturalmente pondo a mão no arado.
Agora, essa Igreja chega à segunda geração de líderes mulheres perguntando-se o que elas têm de melhor a oferecer. Embora, naturalmente, ainda haja muitas resistências à liderança de saias – e o Novo Testamento, de acordo com a ótica da interpretação, pode tanto legitimar como rejeitar o pastorado feminino –, diversas igrejas já se utilizam do trabalho das obreiras há bastante tempo. Denominações tradicionais como a Metodista e a Luterana adotam tradicionalmente o pastorado feminino, franqueando às mulheres até cargos de direção em suas organizações. Outras, como a Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) – esta, de linha avivada –, têm nas suas origens a marcante presença feminina. Foi a canadense Aimee Mcpherson que fundou a organização, em 1923, nos Estados Unidos. Hoje, a Quadrangular está em mais de uma centena de países, inclusive no Brasil, onde é uma das dez maiores denominações evangélicas.
“Essa participação da mulher é ativa, fluente e expressiva”, concorda a coordenadora nacional das Mulheres Quadrangulares, Mara de Barros Flores. “Já está provado que temos a capacidade, o amor e a unção necessários para o crescimento da Igreja”. Ela acredita que as denominações que rejeitam a participação feminina efetiva em cargos de liderança estão perdendo tempo. “A ajuda feminina que é ativa, fluente e expressiva”. Na IEQ, mulheres atuam em todas as funções eclesiásticas, chegando a ocupar 50% do ministério. E não basta ser simplesmente casada com um pastor – a candidata ao púlpito precisa seguir os trâmites estatutários e ter o mesmo estudo e preparo dos colegas de terno. “Além, claro, do chamado, da vocação e da liderança necessárias para estar à frente de uma igreja como pastora titular.”
Sonia do Nascimento Palmeira, presidente da Confederação de Mulheres da Igreja Metodista do Brasil, cita o exemplo de Marta Watts, primeira missionária da denominação a chegar ao Brasil, para destacar a importância do protagonismo feminino na obra de Deus. A obreira, vinculada à Sociedade de Missões Estrangeiras das Mulheres da Igreja Episcopal do Sul nos Estados Unidos veio com a tarefa de educar crianças e moças. No mesmo ano, fundou o Colégio Piracicabano, em Piracicaba (SP), que hoje é conhecido como Centro Cultural Marta Watts. Criou ainda um colégio em Petrópolis (RJ) e outro em Belo Horizonte (MG), colaborando sempre com as mulheres para que tivessem acesso à educação num tempo em que este direito lhes era constantemente negado. A ênfase nestes estabelecimentos era “ministrar uma educação liberal às moças para que seu horizonte intelectual e espiritual se ampliasse, preparando-as para agir com independência”, conforme o lema do Marta Watts.
“Proveito”
Sonia considera lamentável que ainda existam igrejas dominadas apenas por homens. “Vejo isso como um equívoco muito grande, pois a Palavra de Deus ensina exatamente o contrário. Jesus valorizou as mulheres. Elas foram criadas da mesma forma que os homens, com todo o potencial que eles têm também”. Para ela, o direito de exercer papel de destaque é tanto dos homens como das mulheres. “Na nossa Confederação, estamos preocupadas como Marta Watts esteve um dia, em impulsionar as mulheres de hoje a buscarem cada vez mais o seu lugar na Igreja e no mundo”, explica.
Tal lugar, segundo a psicóloga Isabelle Ludovico, deve passar necessariamente por qualidades tipicamente femininas, como a doçura e a afetividade. Em seu novo livro, O resgate do feminino, ela diz que o ambiente competitivo acabou roubando das mulheres aqueles aspectos comportamentais que sempre as diferenciaram dos homens, com consequências na qualidade da vida afetiva e espiritual – e que isso precisa ser revisto. “As mulheres assumem muitas atividades na igreja, e isso é movido por sua paixão pelo Reino de Deus”, diz (veja Entrevista abaixo). “A participação da mulher em posições de liderança trouxe muito proveito para a Igreja”, endossa o pastor Carlos Barcelos, da Igreja Batista do Morumbi, em São Paulo. “Considero importante o olhar feminino, que contribui para a ampliação de percepções dos vários problemas que uma comunidade pode enfrentar”. Defensor do mérito, independentemente do gênero, Barcelos diz que o papel a ser exercido pela mulher na igreja depende de suas capacidades e habilidades. “Toda posição de liderança, seja preenchida por um homem ou mulher, demanda do líder o cultivo de uma vida cheia do Espírito, pois as decisões tomadas afetam a vida de muitas pessoas”, pondera. Por isso mesmo, acrescenta, a mulher não deve deixar de lado suas características para sentir-se aceita. “Quando a mulher pretende agir como homem, está no caminho da falha.”
O pastor sugere um reestudo hermenêutico do texto bíblico de I Timóteo 2.11, que comumente é usado para justificar uma suposta posição secundária da figura feminina no contexto da Igreja. Para ele, a expressão “ficar em silêncio” deve ser entendida num contexto de disputa por autoridade, inclusive sobre o homem. “Toda situação em que o homem se retrai e a mulher entra no espaço deixado por ele costuma trazer problemas sérios”, analisa. Às mulheres com destaque na igreja, Barcelos aconselha, sobretudo, que se submetam àquilo que o Espírito Santo lhes indicar. “Isso não pode ser contrário ao que a Bíblia ensina e nem uma bandeira reivindicando posições. Se determinada Irma tem convicção de um chamado, trabalhe com paciência até que surja a oportunidade de pô-lo em prática”.
Exercício dos dons
Blanche Bruno, pastora de missões e aconselhamento da Igreja Cristã Casa da Rocha, acha que o mais importante é o exercício dos dons para abençoar a congregação. “O Espírito é o mesmo que age em todos, mas Deus criou a mulher com sensibilidades particulares”, diz a obreira. “Nossos mecanismos de percepção são diferentes dos homens, e por isso o papel feminino, tão importante na família e no trabalho, também o é no âmbito da igreja”. Blanche, que juntamente com o marido, José Bruno, eram bispos na Igreja Renascer em Cristo até o ano passado, acredita que a igreja não funciona por causa dos cargos que as pessoas nela ocupam, mas pelo cumprimento do chamado de seus membros. “Quando isso acontece, cada um está no seu devido lugar, seja homem, seja mulher”.
A jovem Alyne Romeiro, assistente pedagógica e membro da Igreja Cristã da Trindade, avalia como seria uma igreja sem a participação de mulheres na liderança. Ela atua no ministério de louvor e organiza eventos para os jovens em sua igreja e acredita que Deus chama a cada um individualmente, independente do sexo. “Uma igreja sem mulheres à frente, seria uma igreja de poucas atividades, criatividade e talvez alguns detalhes passariam despercebidos. “Deus nos fez criativas, mais emocionais, preocupadas com detalhes, mais ouvintes, temos maior facilidade em abrir mão de nossas coisas.” Alyne não consegue se imaginar sentada, sem fazer nada. Não só pelo fato de ser filha de pastor, mas sim pelo fato de ser cristã. “É como se eu fosse devedora. Se quero que todos sejam alcançados por essa graça, preciso trabalhar para isso e trabalho por amor e gratidão ao Senhor”, declara.
A valorização que Cristo fez da figura feminina é lembrada por Lia Casanova, ligada ao Ministério Desperta Débora, como principal endosso a uma participação cada vez mais ativa da mulher na obra de Deus. . “Tenho firme convicção de que Deus nunca se agradou da forma como a mulher passou a ser tratada ao longo da história, por isso Jesus se deu ao trabalho constante de mostrar aos homens como devemos ser consideradas”, advoga. Ligada a um movimento nacional de oração integrado exclusivamente por mulheres, ela lembra o exemplo de grandes mulheres de fé na Bíblia, como Maria, a mãe de Jesus, e Madalena, que não negou seu Mestre nem nos momentos de maior perigo. “Nós somos feitas por Deus e devemos nos colocar nas suas mãos para que possa nos usar para seu serviço e sua glória quando, onde e como quiser.”
Afetividade e dependência de Deus
Autora do livro O resgate do feminino, a psicóloga Isabelle Ludovico conversou com CRISTIANISMO HOJE sobre os novos papéis sociais da mulher e sua aplicação na esfera religiosa:
CRISTIANISMO HOJE – Qual a importância da participação feminina na liderança cristã?
ISABELLE LUDOVICO – A contribuição das mulheres na liderança da igreja é legítima, já que o Espírito distribui os dons conforme lhe apraz e não conforme o sexo. Mas esta participação precisa levar a uma transformação do modelo de liderança, de um modelo hierárquico – com um líder solitário à frente da igreja –, para um modelo de corpo, com um colegiado de pastores e líderes, homens e mulheres, numa igreja onde todos são chamados a contribuir conforme os dons que receberam. As mulheres podem ser chamadas a exercer estas funções a serviço de Deus, em prol do Corpo de Cristo.
A modernidade concedeu espaços antes inimagináveis às mulheres. Em contrapartida, qual foi o preço disso?
Com as conquistas profissionais, as mulheres acabaram assumindo uma dupla jornada de trabalho, pois ainda não conseguiram dividir as responsabilidades com a casa e as crianças. Assim, elas ficam estressadas e sua relação amorosa é tensionada por tantas cobranças. Elas, muitas vezes, acabam sozinhas, pois o homem se ressente e tende a se retrair e se fechar. As mulheres estão em crise com o modelo da “amélia” que era dependente do marido e não tinha projeto de vida pessoal. Elas têm medo de perder as conquistas que lhes garantiram certa autonomia e poder. Mas resgatar o feminino não significa abrir mão de sua dignidade, de sua capacidade. Significa dar prioridade à sua capacidade relacional, à qualidade de suas relações, inclusive como esposa, mãe e profissional.
No livro, a senhora fala no resgate do princípio feminino. Em quê isso se aplica ao contexto eclesiástico?
O resgate do principio feminino, tanto por homens como por mulheres, tem consequências na qualidade da vida afetiva, inclusive com Deus. Ele desperta a capacidade de escuta e valores como a entrega, a paixão, a dependência, a humildade, o discernimento, a compaixão. As mulheres assumem atividades na igreja movidas por paixão pelo Reino de Deus. O ativismo de homens e mulheres empobrece a vida espiritual e seria importante dar novamente prioridade à intimidade com Deus, para que as ações sejam fruto desta intimidade, e não, substituto dela.
Avanço ou regresso?
O pastor Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, reitor e professor de exegese e teologia bíblica do Seminário Bíblico Palavra da Vida (SBPV), reconhece a essencialidade da atuação da mulher na obra de Deus, mas é cauteloso na sua análise do ministério pastoral feminino:
CRISTIANISMO HOJE – Como o senhor enxerga o avanço feminino na Igreja brasileira?
CARLOS OSVALDO – “Avanço” é um termo que a Igreja, acriticamente, tomou de empréstimo da sociedade secular que a cerca. Creio que ainda serão necessárias duas ou três gerações para que possamos avaliar se houve ou não progresso nessa questão. Deveríamos olhar para outras latitudes onde esse suposto avanço ocorreu há cerca de duas décadas e perguntar se as denominações que adotaram posturas “progressistas” estão mais santas, mais evangelísticas, mais missionárias e mais bíblicas. Percebemos que as mulheres têm mais oportunidades de preparo e horizontes mais amplos (particularmente na área missionária), mas cremos que também houve perdas qualitativas importantes.
No SBPV, as alunas são treinadas para seremm entre outras funções, missionárias e educadoras cristãs. Elas também são treinadas para serem pastoras?
Não treinamos nossas alunas para o pastorado, mas para o pastoreio. Creio que há uma ênfase indevida no pastorado como função, em detrimento do pastoreio como ministério. O Novo Testamento indica com razoável clareza que a mulher, particularmente a mulher mais experiente, com uma história familiar de sucesso como esposa e mãe, tem enormes oportunidades de pastoreio e mentoria, oportunidades essas que terão que ceder espaço às intensas atividades administrativas, legais e às vezes burocráticas do pastorado. Entendo que uma visão neotestamentária do ministério da mulher não inclui o pastorado, embora privilegie o pastoreio.
Qual o posicionamento do seminário sobre as mulheres exercerem posições de pastoras, líderes e até bispas em algumas denominações?
É nossa convicção que em termos da igreja local a liderança deve seguir o que é proposto, por evidência e por inferência, no Novo Testamento. Questões de liderança denominacional e de instituições paradenominacionais devem ser avaliadas individualmente, pois não são objeto de mandamento ou orientação apostólica. Uma função executiva numa junta educacional, por exemplo, é, em nosso entender, muito diferente de um presbiterato ou pastorado.
Fonte: Cristianismo Hoje