Cantora de Axé Claudia Leitte (Foto: reprodução)
Cantora de Axé Claudia Leitte (Foto: reprodução)

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) ingressou com uma ação civil pública contra a cantora Claudia Leitte, acusando a artista de discriminação religiosa e solicitando sua condenação ao pagamento de R$ 2 milhões por dano moral coletivo. O processo foi protocolado no início de dezembro e conta com a participação do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro).

A iniciativa judicial é resultado de um inquérito civil aberto após representações feitas por lideranças religiosas de matriz africana e organizações voltadas à defesa da liberdade religiosa. O foco da apuração é a alteração recorrente da letra da música “Caranguejo”, associada à cultura afro-baiana. Segundo o MP-BA, Claudia Leitte teria substituído um verso que fazia referência à orixá Iemanjá por uma menção a Yeshua, termo hebraico utilizado para se referir a Jesus Cristo.

De acordo com o Ministério Público, embora a artista tenha o direito constitucional de professar sua fé pessoal, a modificação reiterada de uma obra ligada ao patrimônio cultural afro-brasileiro extrapola os limites da liberdade artística e religiosa, especialmente em razão da grande visibilidade pública da cantora. Para a promotoria, a prática resulta em apagamento simbólico de referências religiosas historicamente marginalizadas.

O caso ganhou maior repercussão após a circulação de vídeos nas redes sociais mostrando a alteração da letra durante apresentações públicas. Conforme apontado pelo MP-BA, existem registros dessa prática desde 2014, mas a continuidade da conduta, mesmo após a abertura do procedimento investigatório e ampla repercussão negativa, teria agravado a situação.

Durante o inquérito, o Ministério Público promoveu uma audiência pública com a participação de juristas, especialistas, representantes da sociedade civil e lideranças religiosas. Segundo o órgão, os relatos reforçaram o caráter coletivo do dano e os impactos simbólicos causados pela retirada de elementos centrais das religiões de matriz africana em manifestações culturais populares, como o axé music.

Além do pedido de indenização, o MP-BA e o Idafro solicitam que a Justiça reconheça a prática de dano moral coletivo, determine retratação pública da artista, proíba novas alterações em músicas consideradas parte do patrimônio cultural afro-brasileiro e imponha à cantora a obrigação de se abster de qualquer ato classificado como discriminação religiosa, direta ou indireta, em apresentações, entrevistas, produções artísticas ou publicações em redes sociais. Também foi requerido pedido de tutela antecipada, diante da alegada reincidência.

Na petição, o Idafro sustenta que o axé music está profundamente ligado às religiões de matriz africana, à ancestralidade e à identidade cultural baiana, contexto no qual Claudia Leitte construiu sua carreira artística, sem migração formal para o segmento gospel. O processo também destaca decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhecem as religiões afro-brasileiras como patrimônio cultural imaterial, o que, segundo o MP, exige proteção especial do Estado.

A ação é assinada pela promotora Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz, da Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, e por Alan Cedraz Carneiro Santiago, coordenador do Nudephac. Em declaração pública durante o Festival Virada Salvador, Claudia Leitte afirmou que o racismo é uma “pauta séria” e criticou julgamentos feitos pelo que chamou de “tribunal da internet”.

Debate sobre intolerância religiosa

O tema voltou a ganhar destaque recentemente após a divulgação de uma pesquisa apresentada no Seminário Nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). O levantamento apontou que 59% das agressões de cunho religioso contra religiões de matriz africana teriam sido cometidas por evangélicos.

A pesquisa ouviu lideranças de 511 terreiros em diferentes regiões do país, que relataram ataques físicos, emocionais e simbólicos. Segundo os dados, 77% dos terreiros afirmaram ter sofrido algum tipo de racismo religioso, enquanto 74% relataram ameaças ou destruição de espaços sagrados. Apenas cerca de 26% das vítimas conseguiram registrar boletins de ocorrência.

Diante dos números, líderes cristãos também se manifestaram. O pastor Helio Carnassale, palestrante e consultor internacional em Liberdade Religiosa, destacou a importância do respeito mútuo entre crenças.

“Eu posso discordar completamente dos motivos religiosos de quem quer que seja, mas isso não me dá o direito de partir para agressão ou violência. O mesmo direito que tenho de escolher a minha fé e praticar a minha religião, o outro também tem. Esse princípio está garantido na nossa Constituição Federal e é um princípio importantíssimo que dá dignidade ao ser humano”, afirmou.

Já o pastor Amauri Oliveira, presidente da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais (APMT), explicou que há diferenças teológicas profundas na forma como evangélicos enxergam práticas religiosas afro-brasileiras, mas alertou contra generalizações.

“Na visão dos evangélicos, os demônios são inimigos; assim, seus ‘adoradores’, em associação a essas entidades, também acabam sendo vistos equivocadamente como ‘inimigos’. Dessa percepção surge a agressividade errônea de alguns evangélicos em relação a esses locais e estilos de culto. Entendo que isso não se relaciona ao racismo; o que incomoda os evangélicos não é a cor dos seguidores desses cultos, mas sim as entidades invocadas neles, ou seja, a própria natureza dessas práticas”, pontuou.

O caso envolvendo Claudia Leitte segue em tramitação na Justiça e deve continuar alimentando debates sobre liberdade religiosa, convivência entre crenças e os limites entre fé pessoal, expressão artística e patrimônio cultural no Brasil.

folha Gospel com informações de Comunhão e G1

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