O que leva um especialista a dizer que um dito ou um ato presente nos Evangelhos realmente foi proferido ou realizado pelo personagem histórico Jesus de Nazaré? Para muita gente, decisões sobre “historicidade” ou “não-historicidade” podem parecer arbitrárias ou simples chutes, mas as últimas décadas têm alcançado um refinamento e uma maior objetividade nos critérios da busca pelo Jesus histórico.
Na série de livros “Um Judeu Marginal” (ainda em andamento), o historiador e padre americano John P. Meier enumera as principais ferramentas dessa busca. Conheça-as abaixo.
1)O critério do constrangimento
Também conhecido como “critério da contradição”, ele se refere aos atos e ditos de Jesus potencialmente constrangedores para Jesus e/ou seus discípulos. O raciocínio é simples: a criatividade dos evangelistas, que elaboraram e ampliaram a tradição oral sobre a vida de Cristo, dificilmente dar-se-ia ao trabalho de inventar histórias embaraçosas sobre seu Mestre ressuscitado.
Para Meier, isso mostra que a composição dos Evangelhos não foi um vale-tudo: graças à presença de uma tradição oral oriunda de testemunhas oculares da vida de Jesus, ainda viva no tempo em que o Novo Testamento estava sendo escrito, os autores cristãos não se sentiam à vontade para simplesmente varrer os eventos constrangedores para debaixo do tapete. O máximo que faziam era dar uma interpretação teológica aceitável a essas circunstâncias que poderiam lançar dúvida sobre o papel de Jesus como Messias.
Exemplos de fatos aparentemente confirmados pelo critério do constrangimento são o batismo de Jesus pelas mãos de João Batista (se Cristo não tinha pecado, por que precisaria ser batizado?), a traição de Judas Iscariotes e frases de Jesus afirmando que “somente o Pai” sabia o momento do fim dos tempos (em ambos os casos, cria-se a dúvida sobre a onisciência do profeta galileu).
2)O critério da descontinuidade
Se um ensinamento ou ação de Jesus não casa com o que ensinava o antigo judaísmo nem com a pregação da Igreja primitiva, crescem as chances de que ele venha mesmo do Jesus histórico, argumentam os defensores desse critério.
Por meio dele, seria possível descobrir o que era “descontínuo” no ministério de Jesus, ou seja, onde ele rompia com seus predecessores judeus ou até entrava em conflito com seus seguidores cristãos. Alguns exemplos citados por Meier são a proibição de qualquer tipo de juramento, a defesa de que, uma vez casados, homem e mulher não podem se divorciar em hipótese nenhuma e a proibição do jejum (Cristo era criticado por judeus mais rigoristas por causa disso, sendo acusado de “comilão e beberrão”).
Meier alerta que esse critério, se mal utilizado, corre o risco de trazer à tona apenas os ensinamentos periféricos de Jesus, e não necessariamente os mais importantes e essenciais.
3)O critério da múltipla confirmação de fontes
Sempre é bom lembrar que Jesus não tinha assessoria de imprensa nem porta-voz oficial. Sua vida e sua pregação foram registradas e relembradas por vários tipos de seguidores, com formação cultural, personalidade e até opiniões teológicas diferentes. Isso explica porque os Evangelhos canônicos (os “oficiais” do Novo Testamento) apresentam diferenças entre si, algumas de detalhe, outras mais marcantes. Se várias dessas fontes diferentes registram o mesmo dito ou ato, isso indica uma probabilidade maior de eles remontarem ao que o próprio Jesus fez e ensinou.
Para Meier, as principais fontes nos Evangelhos são o texto de Marcos (mais antigo e mais importante evangelista, para os especialistas), a tradição Q (fonte hipotética que parece estar por trás de relatos que coincidem em Mateus e Lucas, mas não em Marcos), tradições especiais M e L (exclusivas de Mateus e Lucas) e tradição joanina (do Evangelho de João).
É importante notar que o fato de uma mesma narrativa ocorrer em mais de um Evangelho não é garantia de satisfazer o critério da múltipla confirmação de fontes. As narrativas da paixão de Jesus em Mateus e Lucas, por exemplo, parecem ser basicamente uma expansão e reformulação da mesma fonte original, o Evangelho de Marcos. Um exemplo melhor é a proclamação do “Reino de Deus” por parte de Jesus — presente em Marcos, Q, M, L, João e até nas cartas de São Paulo.
4)O critério da coerência
Trata-se de um critério importante, mas que só pode ser usado depois que uma quantidade razoável de dados sobre o Jesus histórico já foi estabelecida. Nesse caso, novas informações que parecem se adequar de forma coerente com o que se sabe têm alta probabilidade de serem verdadeiras.
5)O critério da Cruz
O Evangelho de Lucas, pela boca do profeta Simeão, chama Jesus de “um sinal que provocará contradição”. Para Meier, o evangelista está certíssimo nesse ponto. “Um Jesus cujos atos e palavras não tivessem provocado antagonismo entre as pessoas, especialmente entre os poderosos, não é o Jesus histórico”, escreve ele.
Segundo o especialista americano, um Jesus completamente inofensivo, que não criticasse o que via de errado na Judéia do século 1 a.C. nem propusesse algum tipo de mudança radical, jamais teria sido crucificado. Por isso, o critério da rejeição e e execução, ou o critério da Cruz, como é chamado, tende a aceitar como autênticos os fatos e ditos de Cristo que o tornariam malquisto pela elite da sociedade judaica e romana de seu tempo. Ao mesmo tempo, Meier alerta para o perigo de retratar o profeta como um revolucionário violento, coisa que ele não era.
Fonte: G1