Teólogo diz que excessiva concentração de poder nas mãos do papa impede as mudanças necessárias para conter fuga de fiéis.

Crítico do papa Bento XVI e de seu antecessor, João Paulo II, o teólogo Hans Küng, de 83 anos, afirma que a Igreja Católica só vai recuperar os fiéis que perdeu nos últimos anos se abandonar o sistema centralizador na figura do papa – que ele compara a um monarca absoluto – e retomar o legado de reformas democráticas do Concílio Vaticano 2.º. “O momento é de mudança, e o papa e os bispos estão cegos, como há 500 anos, na época da Reforma.”

Muitos católicos acham que o acobertamento dos abusos sexuais de crianças por padres afastou fiéis da Igreja. O que está errado na Igreja?

Se você encara a questão em palavras tão simples, darei uma resposta igualmente simples. O antecessor de Joseph Ratzinger (atual papa Bento XVI), João Paulo II, lançou um programa de restauração política e eclesiástica que contestava as intenções do Concílio Vaticano 2.º. Ele queria uma recristianização da Europa. E Ratzinger era o seu mais leal assistente, desde o início. Poderíamos chamar aquela época como um período de restauração do regime romano anterior ao concílio.

Como foi possível que esses problemas começassem a surgir de repente, 50 anos depois do Concílio Vaticano 2º (1962-1965)?

Os problemas surgiram há algum tempo na Igreja, como revela o acobertamento dos escândalos de abusos sexuais que duraram décadas. A certa altura, o problema mundial dos abusos não pôde mais ser negado. Mas este não é o único acobertamento da hierarquia católica.

O que o sr. quer dizer com isso?

Quero dizer que a vida da Igreja no plano das paróquias praticamente se desintegrou em muitos países. Em 2010, pela primeira vez, o número de pessoas que deixaram a Igreja superou o número das que foram batizadas na Alemanha. Desde o concílio, perdemos dezenas de milhares de sacerdotes. Centenas de presbitérios estão sem pastores e a ordenação de homens está desaparecendo porque não se consegue mais recrutar sangue novo. Mas a hierarquia da Igreja não tem a coragem de admitir, honesta e francamente, a verdadeira situação.

É tarde demais para salvar a Igreja?

A Igreja Católica como comunidade de fé poderá se manter, mas somente se abandonar o sistema de governo romano. Nós conseguimos sobreviver sem esse sistema absolutista por mil anos. Os problemas começaram no século 11, quando os papas afirmaram sua reivindicação do controle absoluto sobre a Igreja, aplicando uma forma de clericalismo que privou o laicato de todo poder. A regra do celibato também vem daquela época.

Recentemente, o sr. criticou o papa Bento XVI, afirmando que nem mesmo o rei Luis XIV foi tão autocrático. Bento XVI poderia realmente mudar o sistema romano se assim quisesse?

Na verdade esse absolutismo é um elemento essencial do sistema romano. Mas nunca foi um elemento essencial da Igreja Católica. O Concílio Vaticano 2.º fez de tudo para se afastar dele, mas infelizmente não foi até o fim. Ninguém ousou criticar o papa diretamente, mas houve uma ênfase na relação colegial do papa com os bispos, que se destinava a integrá-lo novamente na comunidade.

O sr. pede também o fim do celibato, que as mulheres sejam ordenadas sacerdotes e a Igreja levante a proibição do controle da natalidade – valores considerados fundamentais da Igreja Católica. O que restaria da Igreja?

O que restará será a mesma Igreja Católica que existia antigamente – e era melhor. Não estou dizendo que o papado deva ser abolido. Mas nós precisamos de agências que sirvam às congregações, do tipo de papado exercido por João XXIII. Ele não procurava dominar. Ao contrário, ele simplesmente demonstrou que estava ali para todos, inclusive para as outras igrejas. Ele estabeleceu as bases para o concílio e o novo amanhecer do cristianismo ecumênico.

Muitos afirmam que, se todas as reformas que o sr. defende fossem implementadas, a Igreja se tornaria mais protestante e abandonaria seu caráter católico. A Igreja indubitavelmente se tornará um pouco mais protestante. Mas nós sempre preservaremos o nosso caráter distinto. Nossa maneira de pensar global, nossa universalidade, diferencia-nos de uma certa visão estreita das igrejas regionais protestantes. E assim teria de permanecer, assim como deveria ser mantido o cargo do papa. Mas se tudo se concentrar no cargo, acabaremos com um vigário medieval, um papa como monarca absoluto, que personifica simultaneamente o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – contradizendo a moderna democracia e o Evangelho.

Pelo visto, o sr. quer reformar a Igreja para permitir que ela continue existindo. E o papa tenta fechar a Igreja para o mundo exterior e restringi-la cada vez mais a um núcleo conservador, que poderá até sobreviver.

De fato. No passado, o sistema romano foi comparado ao sistema comunista, no qual uma única pessoa podia se manifestar. Hoje, eu me pergunto se por acaso não nos encontramos em uma fase de “putinização” da Igreja Católica. Evidentemente não quero comparar o Santo Padre, como pessoa, ao ímpio estadista russo Vladimir Putin. Mas há muitas semelhanças estruturais e políticas entre os dois. Putin herdou um legado de reformas democráticas, mas ele fez tudo o que podia para anulá-las. Na Igreja, tivemos o concílio, que iniciou a renovação e o entendimento ecumênico. A política de restauração do papa polonês, a começar dos anos 1980, tornou possível que cabeças de mentalidade parecida, integrantes da Congregação para a Doutrina da Fé, que trabalha de maneira totalmente sigilosa, outrora conhecida como Congregação da Inquisição Romana e Universal – que continua sendo uma inquisição, apesar do seu novo nome -, fossem eleitas papa.

No ano passado, o sr. escreveu uma carta aberta a todos os bispos do mundo, em que apresentou uma explicação detalhada da sua crítica ao papa e ao sistema romano. Qual foi a resposta?

Há cerca de 5 mil bispos no mundo, mas nenhum deles ousou comentá-la publicamente. Isso mostra claramente que alguma coisa não funciona. Mas se você fala aos bispos individualmente, ouve muitas vezes: “O que o sr. descreve está fundamentalmente correto, mas não há nada que se possa fazer a respeito”. Seria maravilhoso se um bispo importante dissesse apenas: “Isso não pode continuar”. Mas, até agora, ninguém teve a coragem de fazê-lo. A situação ideal, na minha opinião, seria uma coalizão de teólogos reformistas, leigos e pastores abertos à reforma e bispos dispostos a apoiá-la. Evidentemente, eles poderiam entrar em conflito com Roma, mas teriam de encarar essa possibilidade num espírito de lealdade crucial.

Isso levou à Reforma, há 500 anos. Mas, na época, o Vaticano era incapaz de compreender as críticas vindas de suas bases.

Depois de 500 anos, surpreendemo-nos com o fato de que o papa e os bispos de então não terem percebido que a reforma era necessária. Lutero não queria dividir a Igreja, mas o papa e os bispos estavam cegos. Aparentemente, uma situação semelhante persiste ainda hoje.

[b]Fonte: Estadão[/b]

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