A publicação de um relatório oficial, que reúne depoimentos sobre abusos sexuais atribuídos a padres, vem desestabilizando a Igreja belga, acusada de querer abafar o caso, e abala o país.
De um lado, as palavras. “Nós queremos nos comprometer a uma disponibilidade máxima para as vítimas”, afirma Dom Andre-Joseph Leonard, arcebispo de Malines-Bruxelas e primaz da Bélgica. De outro, as imagens. Elas mostram Rik Devillé, um padre flamengo, diretor da associação Direitos Humanos na Igreja, expulso por um vigia da sala onde o chefe dos católicos belgas ia, na segunda-feira (13), em Bruxelas, manifestar sua compaixão e sua vontade de buscar – finalmente – o diálogo com aqueles que foram abusados por padres.
O grupo Direitos Humanos na Igreja conseguiu seu objetivo: mostrar que não se deve crer na promessa da hierarquia católica. Segundo seus coordenadores, Dom Léonard e seus colegas na verdade não querem esclarecer as bolinações, estupros e atos sádicos revelados por quase 500 queixosos. Desde que foram publicados, em um relatório oficial de 200 páginas, na sexta-feira (10), seus depoimentos vêm desestabilizando a Igreja e abalam um país que, de repente, tornou a mergulhar no clima do caso Marc Dutroux.
Nos anos 1990, os crimes, por muito tempo impunes, do assassino perverso e pedófilo, levaram o reino à beira de uma crise de regime, uma vez que tanto a polícia quanto a Justiça haviam fracassado em sua missão de proteger os mais frágeis. Hoje, é a instituição católica, um dos últimos pilares do país, que está tremendo nas bases. A Igreja havia criado uma comissão interna encarregada, durante anos, de ouvir as supostas vítimas dos abusadores. Essa instância presidida por uma magistrada, Godelieve Halsberghe, abriu cerca de trinta processos mas só conseguiu a condenação de um único padre.
Halsberghe afinal pediu demissão, certamente convencida de que a Igreja estava a usando para continuar a fazer reinar a lei do silêncio. O pedopsiquiatra Peter Adriaenssens a sucedeu e viu sua tarefa ser simplificada pelas revelações sobre o bispo de Brugges, Dom Roger Vangheluwe: este teve de renunciar em junho, após confessar ter abusado de seu sobrinho durante oito anos. Esse episódio encorajou as vítimas a se manifestarem, revelando aquilo que a Igreja quis por muito tempo ocultar. O professor Adriaenssens pôde então dar início, na sexta-feira (10), a um processo de dimensão inédita.
Ao publicar por extenso dezenas de depoimentos sem edição, insistindo no fato de que não se tratava, usando sua expressão, de “carícias”, mas sim de “fatos horríveis”, esse homem circunspecto surpreendeu, consternou e abalou. “Trabalho nesse setor há 23 anos, mas mesmo para mim esses depoimentos foram como um soco no estômago”, confessou.
Recolhidos no espaço de alguns meses, os depoimentos poderiam se resumir a algumas palavras e números-chave: idade média das vítimas, 12 anos; vítima mais jovem, 2 anos; testemunha mais velha, 90 anos; número de predadores identificados e ainda em vida, 91; suicídios, 13; tentativas de suicídio, 6… Ao ler com detalhes essa terrível litania de sofrimentos – todas as grandes mídias reproduziram o relatório, disponível na internet – o público “descobriu que o inferno existe”, acredita o cronista Walter Pauli no diário “De Morgen”.
Os depoimentos são anônimos e a identidade dos predadores não foi revelada. Assim como os lugares onde agiram – e, às vezes, ainda agem. No entanto, observa-se que os fatos aconteceram – dos anos 1950 aos anos 1990 – tanto em internatos quanto em escolas, tanto em paróquias quanto em grupos de jovens.
Uma das testemunhas, doente, diz “reunir suas últimas forças” para descrever o calvário que ainda a faz sofrer, 39 anos depois. Ela tinha 6 anos e tinha de sofrer o “zim-boum-pan-pan, uma punição da qual não podia falar: era entre Jesus e nós, para entrar em comunhão com ele”.
Na verdade, oito longos anos de estupros, bolinações e exibicionismo camuflados por um homem que aos domingos brincava com os pais da vítima, confessando-lhes que seu único pecado era fumar charuto… “Era sua maneira de cativá-los e sobretudo de nos calar ainda mais: como ele parecia ter sua confiança, de que adiantaria contar para eles e fazer todos sofrerem?” Aluno em um outro internato flamengo onde também estudavam dois de seus irmãos, uma outra testemunha conta as diversas e incessantes humilhações que um professor lhe infligia: centenas de punições, de páginas a copiar, proibições de sair, e finalmente, “a revelação”: forçado a se colocar de joelhos pelo enésimo castigo no quarto do interessado. E, ali, a descoberta horrorizada do deleite sexual que esse terrível assédio causava nesse religioso.
Inúmeros depoimentos – com exceção daqueles marcados pela raiva e, às vezes, por uma rejeição completa da Igreja e das religiões – ainda mostram o sentimento de culpa das vítimas. Elas não queriam desagradar, manchar a reputação de homens vistos como intocáveis, envergonhar seus pais. Muitos foram criticados por terem escondido a verdade quando decidiram falar. Vindo de um meio pobre e sofrendo de graves carências afetivas, um jovem, estuprado por um vigário, decidiu em 1991 denunciar este último junto a um futuro bispo. Ele foi acusado de ter mentido, simplesmente porque o vigário “negava os fatos”. Estuprada por um padre aos 17 anos, uma outra vítima quis encontrar o responsável pela sua diocese. Ela voltou de lá chocada, “sobretudo religiosamente, porque não encontrei nenhuma preocupação pastoral, nenhuma consciência religiosa do drama que eu enfrentava”.
Outra descoberta importante: algumas vítimas reproduziram aquilo que sofreram. Uma testemunha, estuprado dos 7 aos 12 anos de idade, abusou de adolescentes posteriormente e foi condenado à prisão. “Ao mesmo tempo em que negava minha responsabilidade nos fatos cometidos, e sabendo que as causas de meus atos certamente vinham de causas multifatoriais, ficava claro que os atos do abade A. tiveram um papel determinante em minha identidade sexual e minha maturidade”, afirma em seu depoimento. O homem perdoou seu estuprador, que lhe enviou 200 euros para pagar uma conta de aquecimento. Alguns padres pagaram os estudos de suas vítimas ou facilitaram sua aprovação escolar.
Houve crianças, em compensação, que foram duplamente punidas. Por terem decidido falar do acontecido com seus pais ou com uma pessoa de confiança, sem nenhuma providência tomada após relatarem seus infortúnios. “A lei do silêncio reina em toda parte na sociedade”, afirma o Dr. Adriaenssens. Ele se recusa a falar de uma operação sistemática de abafamento por parte da Igreja, e sim de uma “recusa incestuosa em agir”. Em cerca de 90 dos 500 casos, algum eclesiástico foi informado, mas decidiu “proteger sua família, a Igreja”, diz o pedopsiquiatra.
Um último exemplo dessa tendência é ilustrado pela atitude dos monges da abadia de Blanden, em Flandres. Eles acolheram Eric Dejaeger, 63, um missionário procurado desde 2006 no Canadá, onde é alvo de nove queixas por estupro de crianças, depois de já ter cumprido ali uma pena de prisão por casos similares. Acaso? O padre Dejaeger prometia, na segunda-feira (13), it ao Palácio da Justiça de Louvain para se “colocar à disposição das autoridades”.
De forma mais geral, é mesmo entre a Justiça e a Igreja que se dará a sequência desses casos. Somente quatorze deles estão nas mãos do procurador federal. Um juiz de instrução de Bruxelas, Wim De Troy, deu início em junho a uma vasta operação de investigações no quartel-general do episcopado e na casa de Dom Godfried Danneels, ex-primaz da Bélgica. Ele também se apropriou de todos os dossiês da comissão Adriaenssens, levando à dissolução desta. Mas uma guerra surda dentro da magistratura desmantelou essa operação judicial e ordenou a restituição de todos os dossiês, hoje bloqueados. Em teoria, a investigação de De Troy prossegue, mas parece reduzida a nada, o que leva à raiva das vítimas, que exigem um encontro com Dom Léonard e acesso a todas as informações que o juiz possuía.
Na segunda-feira (13), o episcopado prometeu criar um novo centro, onde as vítimas serão recebidas e ouvidas. Ele também considera “uma nova estrutura de colaboração” com a Justiça e um envolvimento das vítimas em iniciativas destinadas a facilitar sua recuperação. Contudo, a Igreja não se tornou “disfuncional”, afirma Dom Léonard, retomando um termo que foi popular na época do caso Dutroux…
Gabriel Ringlet, padre, escritor e vice-reitor da Universidade Católica de Louvain, acredita que isso que está acontecendo hoje, na verdade é ainda mais grave do que aquilo que foi exposto pelo caso do assassino pedófilo. E diz ainda que a Igreja não voltará a ser aceita pela sociedade se não abandonar seu “silêncio culpado” sobre a sexualidade de seus membros, “terreno no qual essa pedofilia pôde se desenvolver”.
Mais categórico ainda, Walter Pauli escreveu no sábado: “Que Roma e Malines-Bruxelas não se iludam: a Igreja da Bélgica perdeu toda sua autoridade”. O analista disse ainda: “Nem o Marquês de Sade poderia, ou ousaria, publicar um catálogo como esse de perversões sexuais, sendo que o mais grave é que tudo isso acontece dentro de uma relação de poder. E que nunca são questões de ‘parceiros’, mas sim de vítimas”.
[b]Fonte: Le Monde[/b]