Milhões de pessoas na África subsaariana estão infectadas com o HIV. Mas os esforços para conter a doença continuam fracassando devido à desinformação e às políticas ruins. O que pode ser feito?
Esta é uma história que se passa na pequena nação de Gâmbia, no oeste da África, e que seria quase engraçada – não fosse tão chocante e trágica.
O país, que segue o contorno do Rio Gâmbia no seu fluxo em direção à costa, é governado por Yahya Jammeh, 41, um autocrata que tem uma queda por roupas brancas. E as suas metas são ambiciosas. Jammeh resolveu transformar o seu país em uma versão africana da rica cidade-Estado de Cingapura até 2020. Uma meta tremenda para um país de 1,6 milhão de habitantes com um índice de elevado de analfabetismo e no qual 75% da população vive das atividades agrárias. Mas segundo a mais recente versão do país divulgada por Jammeh, a reinvenção de Gâmbia como um centro comercial e financeiro parece ser algo quase plausível.
Jammeh – um oficial militar que deu um golpe de Estado bem-sucedido em 1994 – não é apenas um presidente. Ele também é um curandeiro em missão divina. Em janeiro deste ano, Jammeh reuniu vários de seus acólitos, juntamente com diplomatas estrangeiros, e revelou a eles que fizera uma descoberta extraordinária. O ditador anunciou que, além da asma, ele agora era capaz de curar a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) – a epidemia que devasta a África subsaariana mais do que qualquer outra região do planeta. Mais de 15 milhões de africanos já morreram de Aids, e outros 25 milhões estão infectados com o vírus HIV, que causa a doença.
Às quintas-feiras – segundo Jammeh, ele só conta com os seus poderes curativos nesse dia da semana – o presidente muitas vezes permite que a televisão gambiana o filme enquanto ele derrota a Aids. Os pacientes deitam-se de costas enquanto o presidente circula entre eles murmurando versos do Alcorão. Ele lança um lodo verde sobre a pele dos doentes, borrifa água mineral Evian sobre eles e faz com que bebam um caldo marrom. Um rápido lanche a base de bananas completa a terapia.
Isso é tudo. Graças ao poder do Alcorão e a sete ervas secretas, este tratamento, repetido no decorrer de várias semanas, faz com que o paciente fique curado do vírus letal, “com certeza absoluta”, segundo Jammeh. Mas duas condições precisam ser atendidas para que a terapia funcione. Primeiro: os seus pacientes precisam renunciar ao álcool, ao chá, ao café e ao sexo durante o tratamento – e também ao roubo. E segundo: quem quer que esteja usando medicamentos antivirais tem que parar de tomá-los imediatamente, de acordo com Jammeh.
E ainda mais perturbador é o fato de o ministro da Saúde de Gâmbia apoiar o seu presidente – apesar de ser um ginecologista que estudou medicina na Ucrânia e na Irlanda. As outras instituições do país, incluindo o parlamento, estão fazendo o mesmo. E nas ruas de Gâmbia há manifestações – não contrárias a Jammeh, mas de apoio ao presidente.
“Curando” a Aids com ervas e bananas
Até o momento, uma das poucas pessoas em Gâmbia a fazer críticas foi a porta-voz da Organização das Nações Unidas (ONU) no país, Fadzai Gwaradzimba. Ela explicou que, tendo em vista a mania de curandeiro de Jammeh, é impossível educar a população gambiana a respeito dos perigos do HIV e da Aids, Enquanto isso, Jammeh continua fazendo o seu jogo. No início de abril ele anunciou que acabara de adquirir a capacidade de curar o diabetes, e que – assim como no caso da asma – necessitava de apenas cinco minutos para acabar com aquela doença. Nem todos os cidadãos crêem nele – mas são muitos os que acreditam.
Péssimos governos e déspotas sinistros: eis apenas duas das várias razões pelas quais o HIV avança praticamente sem obstáculos ao sul do Saara. Apenas um punhado de Estados africanos adotou uma abordagem racional em relação ao problema da Aids. Senegal, Gana e especificamente Uganda conseguiram resultados impressionantes na sua luta contra a disseminação do vírus. Mas em outras sociedades africanas muitas vezes prevalecem condições que na verdade ajudam a disseminar o HIV – mesmo agora, 25 anos após a descoberta da doença letal.
Tudo está conectado: superstição, analfabetismo, pobreza, desinformação, isolamento, corrupção, migração, prostituição, promiscuidade, poligamia – e, é claro, o silêncio. Ainda que a Aids represente uma catástrofe da mais alta magnitude em várias partes da África subsaariana, a questão continua sendo um tabu. Ninguém fala sobre ela, ninguém confessa ter sido afetado pela doença – nem os infectados, nem os parentes, nem os líderes religiosos, nem os políticos.
Aqueles que sabem estar infectados preferem alegar que não estão padecendo de Aids, mas apenas de um conjunto de doenças que os aflige devido à debilitação do sistema imunológico – por exemplo, tumores, tuberculose e pneumonia. Alguns chegam a afirmar que foram vítimas de feitiços. Tudo é melhor do que a Aids, já que a Aids é considerada uma doença vergonhosa.
O filho mais velho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela morreu vitimado pelos efeitos da Aids aos 54 anos de idade, no início de 2005. O seu pai anunciou publicamente o fato e pediu aos seus compatriotas que finalmente falassem abertamente sobre a epidemia – sem sucesso. Em várias partes da África, aqueles que admitem ser HIV positivos podem temer que eles e as suas famílias sejam vítimas de ostracismo. Alguns chegaram até a ser mortos por vizinhos furiosos após terem divulgado publicamente a sua condição de HIV positivos.
Desinformação, corrupção – e silêncio
É bizarro como tantos países conseguem negar uma epidemia que envia multidões de jovens para a sepultura e cria vazios dentro das sociedades. Os agricultores vitimados pela Aids ficam muito fracos para trabalhar no campo. Os professores não ensinam mais. Os soldados morrem. Motoristas de caminhão, engenheiros, médicos e ministros, suas mulheres e filhos – todos são afetados. A Aids está custando a vários países todo o progresso econômico feito durante os últimos 25 anos.
Algumas companhias contratam rotineiramente dois candidatos para uma vaga porque sabem muito bem que logo só restará um deles. Os sepultamentos se tornaram as cerimônias familiares mais freqüentes em muitas regiões. Há 25 anos, a expectativa de vida em Botsuana era superior a 60 anos. Agora ela despencou para pouco mais de 40 anos. Naquele país 12 milhões de crianças se tornaram órfãs devido à Aids. Várias delas foram infectadas pelo vírus antes de nascerem ou pelo leite materno.
É muito difícil que quaisquer desses países contem com um sistema de saúde semifuncional. Os profissionais cientificamente treinados da área médica são raros e a maioria dos doentes dificilmente entra em contato com eles. Os médicos só conseguem estimar o índice geral de infecção ao submeterem a exames aqueles com quem entram em contato – mulheres grávidas, por exemplo. E aquilo que eles descobriram é desalentador até mesmo para os especialistas pessimistas. Uma em cada cinco pessoas em Zâmbia, uma em cada quatro na Namíbia e um recém-nascido em cada três no Zimbábue e em Botsuana são HIV positivos. Com a exceção da Índia, o maior número absoluto de pessoas infectadas pelo HIV está na África do Sul. O número de infectados é superior a seis milhões. Mais de mil sul-africanos morrem diariamente devido à Aids.
Os africanos ainda procuram os seus altamente respeitados curandeiros tradicionais em busca de auxílio médico, curandeiros que seguem as tradições dos seus ancestrais ao tratarem todas as enfermidades com ervas e magia. No melhor cenário possível, tais curandeiros poderiam ajudar a resolver o problema da Aids, e em vários países as organizações de auxílio humanitário estão tentando recrutá-los para que eles promovam o necessário trabalho educacional. Mas muitas vezes as mensagens disseminadas por esses curandeiros são parte do problema. No sul da África, por exemplo, milhões de homens estão convencidos de que a infecção pelo HIV pode ser facilmente curada: basta manter relações sexuais com uma virgem.
Lendas persistentes
O fato de a camisinha conferir proteção contra a doença está longe de ser conhecido pela maior parte da população, e muitos que são informados sobre isso simplesmente não acreditam no que escutam. Alguns crêem que a camisinha é irreconciliável com a masculinidade ou até que se trata de um artefato trazido à África como parte de uma conspiração dos homens brancos para reduzir o índice de natalidade africano. Muitos acreditam também que as camisinhas foram contaminadas com o HIV pelos países ocidentais com o objetivo de reduzir a população africana. Vários líderes tribais e curandeiros tradicionais são contra o uso da camisinha – da mesma forma que a Igreja Católica. Sob tais circunstâncias, as mensagens preconizando a prevenção são, com freqüência, ignoradas.
Tragicamente, o vírus HIV atinge as pessoas que estão especialmente predispostas a contraí-lo na África. Outras doenças venéreas, como a sífilis, a herpes e a gonorréia também estão ainda disseminadas na região – e elas tendem a fazer com que aqueles que as contraíram tornem-se mais vulneráveis ao vírus da Aids.
Além disso, muitas mulheres na África subsaariana se engajam há incontáveis gerações em práticas sexuais que aumentam drasticamente o risco de infecção. Antes de manter relações sexuais, elas usam ervas, pós e tecidos para remover toda a umidade de suas vaginas. Os homens supostamente apreciam esta prática porque ela faz com que a vagina fique seca, quente e apertada. Mas o chamado “sexo seco” freqüentemente provoca pequenas lesões na membrana mucosa, o que facilita a infecção pelo HIV. Os educadores engajados na luta contra a Aids estão tentando encorajar as mulheres a abandonar esse costume, mas até o momento o sucesso desta iniciativa tem sido bastante limitado.
Em tese, a África do Sul é o país que deveria estar mais bem equipado, em termos de poder econômico e infraestrutura, para combater a epidemia. Mas os políticos sul-africanos parecem estar fazendo tudo o que podem para ajudar a disseminar o vírus. Eles podem não ser tão exibicionistas quanto o caçador presidencial gambiano de vírus, mas são quase tão perigosos. Thabo Mbeki, o sucessor do presidente Mandela, já demonstrou várias vezes ser adepto das idéias há muito desacreditadas dos “dissidentes da Aids”, segundo os quais esta doença não é causada por um vírus, mas sim pela pobreza e a desnutrição.
O método do chuveiro
O ex-vice-presidente de Mbeki, Jacob Zuma, manteve relações sexuais sem proteção com uma mulher que era HIV positiva. Zuma afirmou publicamente que praticamente não havia risco de que fosse infectado, já que tomava um banho de chuveiro imediatamente após as relações sexuais. É impressionante que Zuma não saiba mais a respeito da disseminação do HIV. Afinal, ele foi diretor da organização nacional da Aids do seu país.
E a ministra da saúde sul-africana, formada em medicina, recomenda que os infectados não tomem medicamentos antivirais, e sim uma mistura de alho, limão, batata e beterraba. Segundo ela isso é melhor, já que os efeitos colaterais são menos severos. A “Doutora Beterraba”, como ela foi ironicamente apelidada, também simpatiza com o curandeiro alemão Matthias Rath, que vende bebidas a base de vitaminas na África do Sul como supostas alternativas aos medicamentos tradicionais de combate ao HIV.
Nas nações mais ricas, faz tempo que a Aids deixou de ser uma doença que leva inevitavelmente à morte. A doença pode não ser curável, mas os medicamentos modernos podem combater o vírus com tanta eficácia que ele não chega mais a ser detectado no sangue. Porém, por muito tempo a terapia era tão cara que somente cerca de 100 mil africanos dela se beneficiaram em 2003.
Mas as coisas mudaram – e esta é a única notícia positiva a respeito da Aids na África. Vários países e organizações fornecem bilhões de dólares para a compra de medicamentos a preços drasticamente reduzidos. No ano passado, cerca de 1,3 milhão de vítimas da Aids na África subsaariana tiveram pela primeira vez acesso ao medicamento do qual necessitam para sobreviver.
Em outras palavras, quase um terço daqueles que necessitam de ajuda já recebem auxílio. A ONU quer garantir que até 2010 toda pessoa infectada receba tratamento.
O fim da epidemia poderia estar próximo para os pacientes africanos infectados pelo HIV. Mas os obstáculos ainda são muitos. Para que os pacientes sejam curados, o sangue deles precisa primeiramente ser examinado por pessoal qualificado – do qual existe uma carência considerável. Não chega a 10% a percentagem da população que fez um exame de Aids nos países africanos mais severamente afetados pela epidemia.
E quanto aos outros, eles sequer sabem que tal exame existe.
Fonte: Der Spiegel