O ensino do Islã em língua alemã para os estudantes muçulmanos ajuda na integração e no desenvolvimento da linguagem. Agora os ministros da cultura dos Estados alemães querem introduzir o curso para todos os estudantes.
Lamya Kaddor não foi às aulas por duas semanas por motivo de saúde, mas quando retornou, os meninos e meninas de sua classe a receberam como se tivesse ficado fora por um ano. “Srta. Kaddor, você voltou!”, Umut, Ebru, Sibel e Gülçin disseram em uníssono. “Veja, srta. Kaddor, eu fui pegar um bronzeado e queimei o meu nariz”, “Srta. Kaddor, por favor, venha cá, Mario e Onur…”
Kaddor, 29 anos, poderia se passar pela irmã mais velha das garotas, que andam abraçadas com ela durante o recreio. Poucos professores na Escola Pública Glückauf, na cidade alemã ocidental de Dinslaken-Lohberg, perto de Essen, são tão populares entre os estudantes, mesmo entre os meninos que passam pela puberdade, com seus bonés cobrindo o rosto. “É porque ela é uma de nós”, um garoto chamado Hüseyin explicou orgulhosamente.
A mina de carvão local foi fechada em Dinslaken-Lohberg há dois anos e aqueles que tinham condições se mudaram. Os clientes do supermercado local agora são quase todos turcos. As três mesquitas na área também são bastante freqüentadas nos dias úteis. Muitos dos poucos alemães que vivem aqui vieram da Rússia. Os pais de Kaddor eram imigrantes sírios. “Nós chegamos em um gueto”, ela disse, “mas minha mãe cuidou para que saíssemos de lá”.
Kaddor é casada com outro professor, um alemão que se converteu ao Islã. Ela reza e jejua, assim como seus alunos, e ela fala alemão, árabe e turco. Ela também treina professores no ensino de estudos religiosos islâmicos na Universidade de Münster, o primeiro programa do gênero na Alemanha. As autoridades de integração da Alemanha sonham com cidadãos como Kaddor.
Na Escola Pública Glückauf, ela leciona “Estudos Islâmicos em Língua Alemã”, uma matéria que é oferecida em apenas algumas poucas escolas na Alemanha. Mas nestes poucos lugares, já é evidente quão benéfico o curso é para os filhos de imigrantes. Ele permite que estudantes muçulmanos sejam entendidos em um assunto, o que ajuda a promover sua autoconfiança. Além disso, discutir o pós-vida ou o propósito das almas em alemão ajuda os estudantes a praticarem sua capacidade de se expressarem.
Um estudo piloto conduzido nas escolas primárias no Estado do norte da Baixa Saxônia, mostrou que há menos brigas nos pátios entre árabes e turcos nas escolas onde são oferecidos os estudos islâmicos. Nestas escolas, as mães, e às vezes os pais, de alunos muçulmanos começam a participar das reuniões de pais e mestres, a trazer falafel para os eventos na escola e a trabalhar como acompanhantes em excursões escolares.
Para muitos pais muçulmanos em Lohberg, a nova professora de religião foi inicialmente um choque: uma mulher jovem que não usava lenço de cabeça e não era de origem turca. Todavia, nenhuma criança foi retirada da classe e Kaddor suspeita saber o motivo. “A religião geralmente é o único aspecto positivo da identidade deles aqui”, ela disse.
As mulheres têm direito à autoridade
Este é o motivo para quase todos os estudantes freqüentarem a escola corânica, onde são ensinados a apenas recitar sons árabes e onde às vezes são ameaçados de surra. Kaddor compara isto à liturgia em latim. “Ninguém a entendeu por séculos”, ela disse. Mas agora o ensino do Islã serve como um complemento à escola corânica. Mustafá coloca desta forma: “Nós aprendemos a ler o Alcorão na mesquita, mas nós aprendemos tudo mais com ela.”
A primeira lição é a de que mulheres têm direito à autoridade. É improvável que Kaddor se submeteria a ser subjugada por seu marido. Mas a maioria das crianças aprende a fazer perguntas, o que é inconcebível na maioria das escolas corânicas, perguntas como:
“Pintar as unhas é proibido no Alcorão?”
“Eu tenho que usar o lenço de cabeça se meu marido quiser que eu use?”
“É verdade que os infiéis vão para o inferno?”
“O que o Alcorão diz sobre honra?”
Kaddor também tenta deixar claro que é importante saber algo sobre a época em que o livro sagrado foi escrito, e que, na condição de muçulmano moderno, é possível interpretar as coisas no Alcorão de forma diferente hoje, como o verso sobre os infiéis que diz: “Mate-os onde quer que os encontre”. Kaddor explicou que nesta sentença, Alá está se referindo aos moradores de uma aldeia inimiga específica na época de Maomé. Não foi uma declaração de guerra contra todos os não-muçulmanos, como os pregadores do ódio fazem suas congregações acreditarem.
‘É dever de todo muçulmano matar judeus?’
Ás vezes até mesmo Kaddor atinge seus próprios limites. Quando ela e seus alunos estavam discutindo o assassinato do cineasta holandês Theo van Gogh, que fez um filme que muitos muçulmanos consideram blasfemo, alguns sentiram que a morte do “porco” foi merecida. Recentemente, um menino quis saber se o Alcorão dizia que era dever de todo muçulmano matar judeus. “Boa pergunta”, respondeu Kaddor, “mas você acha que Alá não tem nada melhor para fazer do que instigar um povo contra outro?”
Hans-Jakob Herpers, o diretor da escola de Kaddor, quer saber por que ninguém ensinou a matéria antes, especialmente considerando que o primeiro pedido para ensino religioso islâmico data de 1978. Provavelmente teve algo a ver com o fato dos alemães há muito acreditarem que seu país não era uma terra de imigrantes -apesar de mais de 3 milhões de muçulmanos, com 800 mil crianças em idade escolar, atualmente viverem no país.
Mas as autoridades do governo preferem culpar os muçulmanos. Elas argumentam que apesar das pessoas que imigraram para a Alemanha terem trazido suas religiões com elas, suas comunidades religiosas não eram tão organizadas quanto as congregações católicas e protestantes. Dentro da comunidade muçulmana, há xiitas, sunitas e alevitas, que formam organizações locais e regionais que freqüentemente não se misturam. Algumas são consideradas grupos islâmicos radicais. Mas a grande maioria dos muçulmanos na Alemanha não é organizada, porque hierarquias não são uma parte tradicional do Islã, que não tem papa, bispo ou sínodo.
Uma escassez de professores
Mas se todo imã pode ensinar o que bem entende em sua escola corânica, para quem as autoridades do Ministério da Educação deveriam se voltar para ajudar a desenvolver o planejamento das aulas para os cursos de religião, ou mesmo um currículo universitário para os professores de religião?
Mas agora há um movimento em ambos os lados. O Conselho de Coordenação dos Muçulmanos na Alemanha foi formado em março de 2007. E os ministros da educação de vários Estados alemães agora estão anunciando planos para expandir o ensino do Islã, visando torná-lo disponível a todos estudantes como matéria regular.
Todavia, os políticos envolvidos na política de educação, que não querem mais deixar o campo aberto para as mesquitas, enfrentam um problema doméstico: de onde virão os professores, se apenas 2,3% de todos os estudantes colegiais muçulmanos concluem a escola, e as notas dos poucos que se formam nos colégios não são boas o bastante para permitir que ingressem nas universidades?
Atualmente há apenas cerca de 120 professores de Islã que lecionam na Alemanha, e 80 deles se encontram apenas no Estado ocidental de Renânia do Norte-Vestfália. Mesmo lá, seriam necessárias oito vezes mais professores. E apesar de poucas dezenas de estudantes universitários terem se registrado para os programas de estudos religiosos islâmicos em Münster, Erlangen e Osnabrück, serão necessários anos até que se formem e estejam prontos para lecionar.
Medidas provisórias
Como uma medida interina, Kaddor desenvolveu um guia para interação com estudantes muçulmanos. Nas diretrizes ela escreve, por exemplo, que do ponto de vista islâmico, uma garota pode participar de aulas de natação -vestindo um traje de banho de corpo inteiro, se necessário. Ela também escreve que mesmo pais religiosamente rígidos podem ser convencidos a permitir que seus filhos participem das excursões escolares, desde que lhes seja assegurado que as crianças serão autorizadas a rezar e que não serão forçadas a comer carne de porco ou beber álcool. É claro, não faz mal algum tranqüilizá-los que pais alemães são tão contrários a relações sexuais entre meninos e meninas quanto os muçulmanos.
Na teoria, os professores que dão “instrução complementar em língua de origem” para as crianças imigrantes nas escolas alemãs há décadas podem ajudar. Mas a Turquia, por exemplo, tende a enviar homens mais velhos para a Alemanha para fornecer este tipo de instrução, homens para os quais o mundo de seus estudantes é completamente estranho e que geralmente não falam alemão. Estes professores também buscam fornecer alguma instrução religiosa, mas com freqüência eles distribuem mapas da Turquia para seus alunos colorirem, pegam seu jornal turco “Hürriyet” e passam o restante da aula lendo o jornal.
Quando Kaddor começou a lecionar em Lohberg, algumas crianças acreditavam que Maomé tinha nascido em Istambul e que Ataturk, o fundador da nação turca moderna, era um profeta.
O diretor Herpers agora é um convertido ao novo programa: “Qualquer um que quiser integração precisa fornecer ensino do Islã. Nós ignoramos isto por tempo demais, mas os alemães não podem…”
“Eu sou alemã”, disse Kaddor.
“Sim, é claro”, disse Herpers.
A professora organizou rapidamente uma pilha de fotocópias. Como não existe uma tradução do Alcorão adequada para escolas, Kaddor simplesmente reorganizou, traduziu e explicou versos individuais -uma abordagem um tanto revolucionária no mundo islâmico. Ela ainda não teve nenhum problema com os clérigos nas mesquitas em Dinslaken. Ela espera que isto não mude quando sua tradução do Alcorão for publicada em breve.
O assunto de discussão do dia em sua classe do 1º colegial era difícil: nosso entendimento de Deus. Segundo a Sura 112 do Alcorão, “Ele é o Deus único”. “Ele não gerou e nem foi gerado”. Os alunos olhavam perplexos. O que aquilo significava? “Ele não pode ter filhos”, sugeriu Umut. Mas por que Deus, especialmente Deus, não poderia fazer isso? Lamya Kaddor leu sua própria tradução em voz alta: “Deus não gerou filhos e nem foi gerado”. A sura, ela disse, se referia aos cristãos, que acreditam que Deus tem um filho que também é humano.
“É interessante, aprender sobre outras religiões”, disse Gülçin, a única xiita na classe. Isto também foi motivo de discussão, mas no final os estudantes não conseguiram chegar a uma resposta razoável para o motivo dos muçulmanos em outras partes do mundo se matarem uns aos outros.
Outra pergunta que atualmente está na mente dos políticos há muito foi resolvida na Escola Glückauf. “Vocês gostariam que nossa aula do Islã fosse em turco?”, certa vez Kaddor perguntou aos seus alunos.
“Não! O alemão é incrivelmente importante para nós”, disse Sibel de forma indignada. “Nós temos que aprender a falar melhor, caso contrário eles não nos aceitarão depois, quando quisermos trabalhar.” “Eu não falo turco”, disse Sana, que é de Marrocos. E então Hüseyin disse: “Qualé, pessoal? Nós somos da Alemanha!”
Fonte: Der Spiegel