O controverso bispo Richard Williamson continua negando o Holocausto, embaraçando tanto a Sociedade de São Pio 10º (SSPX) a qual ele pertence quanto o Vaticano. Mas a SSPX está se tornando cada vez mais poderosa, apesar da controvérsia, e está atraindo mais e mais fiéis.
As queixas de Richard Williamson começam quando ele olha pela janela de seu escritório na Casa de São Jorge, a sede em Londres da Sociedade de São Pio 10º (SSPX). Passando o jardim, na base de uma pequena colina no verdejante Parque de Wimbledon, se encontram um lago, um campo de golfe, um clube de croquet e as famosas quadras de tênis.
O velho na janela gosta de tênis, que ele chama com admiração de “o maior espetáculo”, um jogo que envolve “um espírito único, uma vontade única”. No tênis, ele diz, é como se dois gladiadores estivessem enfrentando um ao outro, “apenas sem derramamento de sangue”.
Mas não seria Williamson se ele não sentisse danação até mesmo no mais nobre dos espetáculos. Os trajes vestidos pelas tenistas, diz o bispo com indignação, “mal chegam ao meio de suas coxas”. Williamson notou torcedoras usando saias ainda menores. “Não restou nenhum homem que diga para suas filhas, irmãs, esposas ou mães que este tipo de traje é destinado apenas aos olhos de seus próprios maridos?”
O mundo se tornou um local menor para o notório bispo. Desde que ele negou a existência do Holocausto na televisão há mais de um ano, causando sérios problemas para o papa Bento 16 e quase provocando uma revolta de fiéis cristãos contra Roma, a ultraconservadora SSPX o tem mantido em quarentena virtual em sua sede em Wimbledon. O bispo Bernard Fellay, o superior geral da SSPX, compara Williamson a urânio: “É algo perigoso de se ter”, ele diz, mas você não pode “simplesmente deixar na rua”.
‘Uma grande mentira’
Fellay sabe do que está falando. Williamson não tem intenção de rever suas posições sobre as câmaras de gás. Quando a caçadora de nazistas Beate Klarsfeld lhe enviou um livro sobre a história do Holocausto no ano passado, ele o deixou de lado, sem ler. “O fato é que 6 milhões de pessoas que supostamente foram mortas a gás representam uma enorme mentira”, ele escreveu recentemente aos demais membros da SSPX, notando que “uma ordem mundial completamente nova foi construída” com base neste “fato”. Os judeus, ele acrescentou, “se transformaram em salvadores substitutos graças aos campos de concentração”.
Williamson, após se recusar a pagar uma multa de 12 mil euros, enfrenta acusações de incitação de ódio racial em um julgamento na cidade de Regensburg, no sul da Alemanha, que começará em 16 de abril. Apesar de não se saber se ele estará presente no julgamento, o bispo já reuniu uma equipe legal que inclui o advogado alemão Matthias Lossmann e o advogado britânico que já representou o ex-ditador chileno Augusto Pinochet em sua luta contra a extradição.
Tanto a recusa obstinada do bispo em abandonar suas teorias afrontosas do Holocausto e o julgamento em Regensburg são um embaraço tanto para a SSPX quanto para o Vaticano, que está atualmente em conversações diretas com os fundamentalistas. Durante as reuniões mensais, três teólogos da SSPX sentam, quase como se estivessem participando de outro concílio do Vaticano, diante de três teólogos do papa no Palácio do Santo Ofício, que é lar da Congregação para a Doutrina da Fé e é adjacente à Basílica de São Pedro. Mais próximo do Vaticano impossível. Teólogos liberais e esquerdistas como Hans Küng passaram suas vidas sonhando em vão com um encontro desses.
O Segundo Concílio do Vaticano de 1962 a 1965, também conhecido como Vaticano 2º, cujas reformas ajudaram a modernizar a Igreja Católica, está no alto da agenda dos membros do SSPX, que querem vê-lo revertido o máximo possível. Para eles, ecumenismo é coisa do diabo, o reconhecimento do judaísmo é fonte de disputa e a forma moderna da liturgia é um ato impossível de assimilação do zeitgeist.
A meta deles é serem reconhecidos em Roma novamente após 22 anos. O Vaticano também quer colocar um fim à divisão dentro da Igreja. Mas Williamson, que vem sendo um espinho para aqueles que buscam a reaproximação, não vai embora.
Se um bispo fundamentalista como Williamson for afastado, ele teria o potencial de dividir a Igreja de novo. Ele poderia consagrar novos padres a qualquer momento ou criar seu próprio movimento, ainda mais radical. Isso seria inconveniente tanto para Bento 16 quanto para a SSPX, o motivo para Williamson estar sendo tolerado.
‘Estes homens são ratos’
O refúgio de Williamson é um pequeno quarto de hóspedes na Arthur Road, no sul de Londres, onde ele tem uma vista da Quadra Central de Wimbledon. O quarto fica em um prédio novo, de aspecto comum, adornado apenas com duas colunas flanqueando a entrada da frente. Uma placa na entrada para uma capela no jardim pede aos fiéis que rezem durante a futura “Cruzada do Rosário” da SSPX. O padre Lindström, um sueco magro, assegura que apenas as pessoas certas estão autorizadas a visitar Williamson.
O bispo tem uma reputação de ser imprevisível. Às vezes ele dá aos funcionários instruções para dizerem aos visitantes que ele não está em casa, mas em certa ocasião ele sentou-se ao lado de uma árvore de Natal para dar uma entrevista a um vídeo blogger. Uma entrevista para a “Spiegel”, que estava marcada há algum tempo, ocorreu por acaso em um dia ruim. Williamson estava disposto a aparecer apenas do patamar da escada, e mesmo aí, tudo o que era visível dele era um de seus braços e sua mão usando o anel de bispo. Sua voz era fácil de reconhecer, mas ele se recusou a falar diretamente com os entrevistadores, restando a Lindström subir e descer as escadas, levando as perguntas e respostas.
Posteriormente, Williamson decidiu continuar a entrevista para a “Spiegel” por e-mail –apesar dele estar na sala ao lado. A visita o deixou muito irado. “Nós estamos em guerra”, ele esbravejou, “e vocês estão no lado errado”. Intelectuais liberais alemães são tão detestáveis para ele quanto as minissaias na quadra de tênis. “Estes homens são, pelo menos objetivamente, ratos”, ele escreveu em uma referência aos jornalistas da “Spiegel”.
Heresias e erros
Há uma rotina rígida na sede em Londres da Fraternitas Sacerdotalis Sancti Pii X, como a SSPX é chamada em latim: despertar às 6h, primeiras orações às 6h30, missa às 7h15, almoço às 12h45, rosário às 18h30, orações noturnas às 21h.
À direita da entrada fica a biblioteca, que tem uma estante separada para os livros proibidos. Guardada por duas estátuas, uma de Jesus e uma da Virgem Maria, um sinal identifica claramente as publicações perigosas na estante como “Heresias/Erros”. Na prateleira superior se encontra um livro do teólogo liberal alemão Karl Rahner, uma influência chave sobre o Vaticano 2º, e ao lado dele se encontra um livro que, apesar de considerado uma autoridade por mais de um bilhão de católicos, é moderno demais para a SSPX: “O Catecismo da Igreja Católica”.
Williamson mora no segundo andar. É onde o bispo, que gosta de interpretar lieder de Schumann, retira seu anel pesado de bispo e toca as obras do compositor alemão no piano. “A música é uma expressão da harmonia ou da desarmonia na alma humana”.
Ele também passa bastante tempo navegando na Internet, onde possui fãs leais. Há 520 pessoas registradas como amigos na sua página no Facebook, e centenas leem suas colunas na Internet, que ele escreve sob o nome de “Dinoscopus” –uma palavra inventada derivada de dinossauro e episcopus (a palavra em latim para bispo). Ele cultiva sua imagem como a de um reacionário e um guardião da fé pura. Viver em uma cidade grande é prejudicial, ele pontificou enquanto olhava para as quadras de tênis. Isso interfere e destroi casamentos, ele disse, torna os jovens em “panos de lavar”, que são “enxaguados pelo liberalismo”, tanto que “seu bom senso é diluído”.
Williamson é um homem sofisticado que faz sermões poderosos. Ele é um acadêmico literário com diploma por Cambridge e fala francês, alemão e espanhol perfeitamente. Ele também é vaidoso, com apreço por modos refinados e roupas caras, e esquece do mundo ao seu redor quando toca Beethoven.
E é alguém que acredita que nenhum judeu foi morto nas câmaras de gás do Terceiro Reich.
‘Nós perdemos um de nossos quatro bispos’
O bispo Fellay, o superior de Williamson, parece perturbado enquanto permanece sentado em seu escritório no Palácio Schwandegg, em Menzingen, Suíça. Ele torce fervorosamente para que “Williamson não exploda”. O palácio oferece uma ampla vista dos Alpes no cantão de Zug, onde a velha cidade spa fica situada no topo de uma montanha de 900 metros de altitude. As vozes das oblatas, as mulheres leigas devotas que ajudam os padres a administrar a casa, podem ser ouvidas nos corredores.
“Nós perdemos um de nossos quatro bispos”, diz Fellay. “Nós não podemos usá-lo para mais nada.” Ele está lutando contra si mesmo e contra a história, tentando encontrar as palavras certas e o distanciamento apropriado ao assunto. Ele considera a coisa toda “incrivelmente desagradável” e diz que acreditou que “o bispo tinha entendido melhor as coisas nesse ínterim”. Mas infelizmente Williamson não entendeu. Fellay diz que sua crença pessoal é de que o Holocausto é um fato “óbvio”.
Mas nem todos seus irmãos estão dispostos a concordar. Logo após o estouro do escândalo de Williamson no início de 2009, o padre italiano Floriano Abrahamowicz especulou que as câmaras de gás podiam ser usadas apenas para “desinfecção”, e que Erich Priebke, o ex-capitão da SS que esteve envolvido e foi posteriormente condenado por centenas de execuções de civis na Itália, não era de fato um executor. Isso também foi “desagradável” para a liderança da SSPX.
Por outro lado, o debate teve suas vantagens. Por causa de Williamson, a SSPX adquiriu uma notoriedade sem precedente desde sua criação em 1969 pelo arcebispo francês renegado Marcel Lefebvre. Os ultraconservadores sempre amaram os irmãos da Sociedade e agora eles se transformaram em heróis da direita, do movimento antimodernista. O que um superior geral como Fellay acha disso?
Apelo aos extremistas
“Nós temos apelo junto aos extremistas, algo que não queremos”, diz Fellay, para quem os assuntos de fé são as questões mais importantes. Uma dessas questões de fé envolve quem deve ter a palavra em assuntos religiosos na Suíça: a Igreja, com seus belos templos e torres de sino, ou as mesquitas, com seus minaretes? Por isso Fellay alimentou o recente debate na Suíça a respeito da proibição dos minaretes. Na verdade, ele apreciou o debate, porque, como ele diz, o Islã é “agressivo em geral”.
Por outro lado, os discípulos da SSPX são calmos e compreensivos quando se trata dos discursos falsos e cheios de ódio que vêm de suas próprias fileiras. Nenhum dos colegas de Williamson se incomoda quando o bispo escreve com desprezo sobre as mulheres em seu blog, as chamando de “menos que zeros” e insistindo que estão “sob o poder do homem”. “Ele deve ser seu mestre”, ele escreve.
Os irmãos católicos em Stuttgart mostraram seu lado agressivo contra os gays ao promover um protesto contra a Parada da Christopher Street da cidade, que celebra o orgulho gay. Os padres ergueram cartazes dizendo “Salvem as Crianças da Perversão” e um deles condenava o evento como “poluição moral”. Ele se negou a mencionar a negação do Holocausto por seu colega da SSPX.
‘Febre no corpo da Igreja’
Para evitar mal-entendidos, os ultraconservadores até mesmo contrataram seu próprio especialista em relações públicas, Rudolph Lobmeyr, que já trabalhou para a emissora pública nacional austríaca “ORF”, em Viena, para explicar os benefícios da campanha da Sociedade ao público. “Uma fé mais frágil não é mais desejada”, ele diz. Ele insiste que as pessoas estão à procura de uma liderança decidida e querem poder dividir o mundo em bem e mal –assim como a SSPX faz quando investe contra gays, mulheres e jornalistas. “É um reflexo do desejo de muitas pessoas e é o segredo para o aumento da popularidade da Sociedade”, diz Lobmeyr.
“Nós somos apenas o termômetro indicando a febre no corpo da Igreja”, diz o bispo Fellay, líder da SSPX. A sociedade alega ter 600 mil seguidores. Ela mantém seis seminários, 14 distritos, 161 conventos e 725 centros populares, além de ser ativa em 1.000 locais em todo o mundo. A Sociedade está crescendo nos Estados Unidos, na Ásia e na África.
Foi esse potencial que o papa tinha em mente quando suspendeu as excomunhões dos quatro bispos da SSPX no ano passado. Bento 16 é um tradicionalista e, como os irmãos da Sociedade, adora missas em latim, compartilha suas ideias a respeito da moralidade e às vezes se desespera diante da sociedade moderna, que pode transformar uma frase de Williamson em um programa de televisão sueco em um escândalo global.
Fellay relata triunfantemente que o próprio papa –em acordo com as exigências da SSPX– aparentemente não mais coloca a hóstia da comunhão nas mãos dos fieis, mas diretamente em suas bocas. Para Fellay, isso representa outro sucesso na batalha contra a Igreja moderna.
Congregação crescente
É meio-dia na igreja de mais de 700 anos de Saint-Nicolas-du-Chardonnet em Paris, que é ocupada pela SSPX desde 1977. Todas as missas aqui são realizadas segundo o ritual latino, acompanhadas por cantos gregorianos, com o padre de costas para a congregação –práticas-padrão por séculos, até que o Vaticano 2º destruiu as tradições. Um número notavelmente maior de jovens está ajoelhado no piso frio de pedra e o ar está tomado pelo cheiro de incenso.
A divisão de Paris da SSPX notou um aumento acentuado da frequência à igreja desde o início do ano passado. Os padres tiveram que aumentar a oferta semanal de hóstias em 300, para que haja o suficiente para colocar na língua dos fieis. Talvez o escândalo do Holocausto tenha sido o responsável pelo aumento da frequência, ou talvez o aumento do número de fieis tenha sido encorajado pela suspensão pelo papa da excomunhão dos quatro bispos –ou talvez ambos os fatores sejam responsáveis.
A França é a fortaleza da Sociedade. Ela agora conta com 100 mil seguidores no país e 4 mil crianças frequentam suas escolas. Os tradicionalistas veem o movimento como o futuro do catolicismo.
Ideias estranhas
Niklaus Pfluger acaba de voltar da missa em Saint-Nicolas-du-Chardonnet. Na hierarquia da ordem, o padre suíço fica atrás apenas do bispo Fellay. Quando Williamson chocou a Igreja há um ano ao negar o Holocausto em uma entrevista, Fellay imediatamente enviou Pfluger à Argentina, onde Williamson estava na época, para impedir o bispo renegado de falar à mídia.
Pfluger ainda está confuso a respeito dos motivos de seu companheiro da SSPX. Sentado no Bistrot Saint Honoré em Paris, diante de um prato de mexilhões e uma taça de Ladoix 1er Cru 2002, ele tenta conceber uma explicação. Williamson, ele diz, por acaso é um provocador de primeira e sempre teve ideias estranhas. Logo após o 11 de Setembro de 2001, ele alegou que o governo americano tinha encenado os ataques ao World Trade Center em Nova York. Ele também alega que não foi o Japão, mas a Casa Branca que ordenou o ataque a Pearl Harbor, em um esforço para atrair os americanos à Segunda Guerra Mundial.
Durante um sermão na província canadense de Quebec, em abril de 1989, Williamson disse que os judeus inventaram Auschwitz como forma de obter certos benefícios. Uma pessoa o processou criminalmente e Williamson tem feito o possível para evitar Quebec desde então.
“Ele é na verdade um artista, não um acadêmico”, diz Pfluger. “Ele coloca uma ideia na cabeça, fica fixado nela e exagera. Mas ele não estuda os documentos.” Ele chama Williamson de uma “bomba relógio ativa” para sua organização, mas também aponta que o bispo tem muitos méritos, de forma que não deve ser “exilado na Lua”.
Comportamento imprevisível
Pfluger também está preocupado com a saúde do bispo de 69 anos, que aparentemente sofre de mal de Parkinson há vários anos. Isso poderia explicar seu comportamento imprevisível? Pfluger e seus irmãos da Sociedade frequentemente se irritam com os e-mails que recebem regularmente de Londres. Em um e-mail recente, Williamson escreveu que “1,3 milhão de pessoas deportadas” não foram mortas com gás nos campos de concentração de Treblinka, Majdanek, Belzec e Sobibor, mas foram simplesmente transportadas para a parte da União Soviética que estava ocupada pela Alemanha. Rumores ridículos sobre o contrário devem ser ignorados, acrescentou Williamson.
A sociedade também está ciente dos contatos de Williamson com Ingrid Rimland, a esposa de Ernst Zündel, que está atualmente em uma prisão alemã após ter sido condenado por incitação à negação do Holocausto. Rimland continua disseminando as teorias de seu marido.
O bispo também mantém contato por e-mail com o negador suíço do Holocausto, Jürgen Graf, que está sendo procurado pelas autoridades alemãs, francesas e suíças. Graf acredita que a ideia dos campos de extermínio foi uma invenção dos judeus. Ele planeja publicar um novo livro sobre o campo de extermínio de Sobibor, onde cerca de 250 mil judeus foram mortos nas câmaras de gás, intitulado “Sobibor: Mito e Realidade”. Graf diz que espera que Williamson escreva a introdução para seu livro.
Os padres prestaram atenção em especial quando Williamson, no início do ano, descreveu sua permanência em Londres como uma “licença agradável apesar de não planejada”. Soou como se estivesse cheio das saias das tenistas em Wimbledon e estivesse pronto para começar a falar em público de novo.
Fonte: Der Spiegel