Partes do Codex Sinaiticus (foto), de 1.600 anos de idade, e que inclui o primeiro Novo Testamento completo do mundo, estão espalhadas entre Leipzig, Londres e São Petersburgo. Agora os pesquisadores querem digitalizar os fragmentos e publicar o volume inteiro na Internet.
Em 1844, Constantin von Tischendorf, um pesquisador da cidade alemã de Leipzig, viajou de camelo até o Cairo passando pelo Deserto do Sinai.
Durante a árdua jornada de 13 dias ele viu “pegadas frescas de tigre” e enfrentou tempestades de areia. Tischendorf ficou debilitado devido à água estagnada “que afeta a parte inferior do abdômen”, foi picado por formigas e mosquitos e, em determinada ocasião, a sua tenda foi simplesmente levada pelo vento.
Em maio daquele ano, a sua caravana chegou a uma serra escarpada de montanhas de granito onde Deus – segundo o Êxodo – apareceu para Moisés na forma de um arbusto incandescente. O lugar estava marcado por uma fortaleza espiritual sombreada por ciprestes, romãzeiras e oliveiras: o Monastério de Santa Catarina, construído no ano 550 da nossa era. Um homem usando um robe da Igreja Ortodoxa Grega surgiu na porta alta do monastério e içou o hóspede com uma corda.
Pouco tempo depois, o aventureiro alemão escreveu que uma “jóia de valor totalmente incalculável” caiu em suas mãos. Quando ele puxou uma pilha de páginas soltas de um cesto de lixo que continha peças danificadas de um pergaminho, o seu coração quase parou.
A descoberta no sopé do Monte Sinai está entre as grandes sensações da história científica – e é considerada tão importante quanto a descoberta de Tróia por Heinrich Schliemann e a escavação da tumba de Tutancamon por Howard Carter. Após um total de três viagens ao Egito o professor da Saxônia recuperou 400 páginas de uma Bíblia em péssimo estado, incluindo cerca de um terço do Velho Testamento e a versão completa mais antiga do Novo Testamento. O mundo acadêmico definiu a descoberta simplesmente como a “Número Um”.
O livro, confeccionado com peles de animais, custou a vida de mais de 350 vacas. Ele foi escrito com tinta preta e marrom feita de bolotas esmagadas de árvores e fuligem. Os títulos dos salmos e do Cântico dos Cânticos estão em vermelho, e são “da maior elegância”, para usar as palavras de Tischendorf.
Uma história de grande aventura gira em torno do Codex Sinaiticus. Foi concedida a Tischendorf uma audiência com o papa. O tsar da Rússia lhe ofereceu dinheiro à vontade e financiou a sua missão final. Porém, apesar da fama, uma sombra paira sobre este homem, que alguns insistem em dizer que foi um ladrão.
Livro fragmentado, reputação abalada
Atualmente partes da antiga Bíblia estão espalhadas pelo mundo. Na cidade de Leipzig, no leste da Alemanha, encontram-se 43 páginas. Quando Tischendorf era vivo, 347 páginas foram parar na Rússia, mas mais tarde Joseph Stalin as vendeu ao governo britânico pelo preço recorde de 100 mil libras esterlinas. Cinco páginas estão guardadas na Biblioteca Russa Nacional em São Petersburgo. Outras 12 permanecem no Egito, no Monastério de Santa Catarina, que ainda abriga a mais antiga comunidade intacta de monges cristãos. Membros dessa comunidade celebram a missa matinal sem interrupção há quase 1.500 anos.
Desde a sua descoberta, ninguém viu o livro como uma peça única. Mas é provável que agora tal situação mude. Teólogos e estudiosos de escritos antigos juntaram forças em um projeto de grande escala para finalmente montar um Codex Sinaiticus completo na Internet. Cada página será novamente examinada, transcrita e digitalizada. A Fundação Alemã de Pesquisa (DFG) contribuiu com 200 mil euros para a iniciativa.
No entanto, a opinião sobre Tischendorf é tão nebulosa e surpreendente como as próprias páginas antigas. Christfried Böttrich, especialista no Novo Testamento da Universidade de Greifswald, na Alemanha, alega que “Tischendorf foi um homem sem máculas e que está acima de qualquer censura”.
Mas os monges do Mosteiro de Santa Catarina têm uma imagem menos benigna do pesquisador alemão. Para eles Tischendorf roubou o manuscrito. “O Codex Sinaiticus foi roubado”, foi o título de uma matéria publicada em 2000 no “Sunday Times” sobre uma conferência organizada por um comitê parlamentar britânico criado para investigar a questão de artefatos roubados. O príncipe Charles, que é presidente da Fundação Santa Catarina, teria exigido que os manuscritos fossem devolvidos ao Egito.
Ninguém nega que Tischendorf foi um mestre na sua área. Em 1840, quando era um jovem médico, ele descobriu a chave para a tradução de uma Bíblia do século cinco, em Paris, que era considerada indecifrável. O mundo acadêmico ficou estupefato. Mas reservadamente vários acadêmicos consideravam Tischendorf um sabichão que tinha conhecimento sobre várias disciplinas.
Ele fez mais inimigos com o seu campo de trabalho. À época os britânicos estavam realizando entusiasmadamente pesquisas na Terra Santa em busca de velhos manuscritos e registros antigos relacionados ao Messias. Mas durante a sua primeira expedição, em 1844, Tischendorf viajou sozinho até antigas igrejas cópticas no deserto líbio, procurando – e trazendo para casa – páginas frágeis de manuscritos.
Tischendorf era uma figura bem vestida, quase burguesa. Ele usava gorro e acreditava que a sua missão era sagrada (“Vou em nome do Senhor”). Na sua segunda viagem, em 1844, ele foi ao Monte Sinai e descobriu um total de 129 páginas em um cesto de lixo na biblioteca do Monastério de Santa Catarina. O abade deixou que ele ficasse com 43 páginas, e o jovem voltou à Alemanha, onde foi recebido como um herói.
Mas ele não conseguiu deixar de pensar nas cerca de 86 páginas que deixou para trás.
Porfiri Uspenski, um clérigo russo barbudo e acadêmico famoso, estava viajando ao Egito na época. Uspenski trabalhava para o órgão que controla a Igreja Ortodoxa Russa, o Sínodo Sagrado. Ele visitou duas vezes o monastério do Monte Sinai, em 1845 e em 1850, e os monges lhe deram cinco páginas do Codex, que atualmente estão em São Petersburgo.
Em 1853 Tischendorf fez as malas e viajou de volta ao monastério. Essa viagem foi desapontadora. Ele só foi capaz de achar um pequeno fragmento do manuscrito – que era usado pelos monges como marcador de livro. O resto havia desaparecido. No entanto, seis anos depois, ele retornou em grande estilo, patrocinado pelo tsar da Rússia, e foi capaz de distribuir propinas “como um príncipe russo”, de acordo com as suas palavras.
Essa missão quase resultou em fracasso. Não parecia haver qualquer sinal do Codex. Tischendorf já havia reservado os camelos para o percurso de volta quando o abade convidou o hóspede a vir até a sua sala para um último drinque. O monge tirou um punhado de papéis de um pano vermelho e mostrou a Tischendorf não só as páginas que este havia deixado para trás, mas outras 260 peças do manuscrito.
Tischendorf ficou pasmado. À luz pálida do luar, ele folheou a cópia mais antiga de Jeremias, do Apocalipse e das Epístolas. “Meus olhos estavam cheios de lágrima e eu fiquei mais feliz do que em qualquer outra ocasião na minha vida”, escreveu o pesquisador. Tischendorf foi até o abade e lhe ofereceu 10 mil thalers, mas o clérigo recusou-se a vender o documento.
No entanto, ele permitiu que o professor pegasse emprestado o manuscrito quase completo, de forma que este pudesse ser reproduzido e impresso na Europa. O abade pediu um recibo e fez com que o alemão prometesse entregar as páginas de volta o mais rapidamente possível. Mas Tischendorf teve uma outra idéia: Não seria maravilhoso, disse ele, presentear o tsar com os documentos manuscritos para comemorar o aniversário de 1.000 anos da monarquia russa? Ele garantiu ao abade que isso traria ao mosteiro fama, boa fortuna e dinheiro. Os monges teriam concordado.
“Infelizmente esse plano para o presente não foi adiante”, afirma Böttrich, o especialista no Novo Testamento. Pessoas descontentes na corte de São Petersburgo foram contra a idéia, e dez anos depois as páginas ainda estavam no Ministério das Relações Exteriores da Rússia. O arcebispo do Sinai, que era o responsável pelo monastério, só assinou um acordo entre os monges e a corte russa em 18 de novembro de 1869. A irmandade recebeu 9.000 rublos em ouro em troca – e aparentemente eles também queriam um navio a vapor.
Vários detalhes em torno do acordo ainda não foram inteiramente explicados. A nota de presente desapareceu, e os registros relativos à transferência do Codex estão atualmente nos arquivos do Estado russo, onde Natalya Smelova, integrante do projeto da Internet, os está analisando.
O Codex, praticamente completo
O projeto segue a todo vapor em Leipzig. Usando luvas de tecido branco, o conservador Ute Feller remove as páginas uma a uma de uma caixa de depósito que fica no porão. Inspetores munidos de lupas organizam arduamente uma lista de dobras e manchas. Cada abrasão, nota de margem e rasgão no manuscrito é anotado.
Enquanto isso, especialistas na Biblioteca Britânica, em Londres, estão usando instrumentos científicos para examinar o Codex da mesma forma que patologistas inspecionam um cadáver misterioso. Eles pretendem usar análise multiespectral para revelar traços escondidos de tinta, e buracos nas páginas podem responder a outras questões: quando esse magnífico trabalho se fragmentou? Como era a sua capa?
Até mesmo os reclusos monges do Sinai estão envolvidos nesse esforço gigantesco. Durante uma obra de construção na abadia, em 1975, surgiu uma sala cheia de detritos na qual foram encontradas partes adicionais do Codex Sinaiticus. Esse material foi mantido sob rigorosa proteção e não podia ser examinado por acadêmicos – até agora.
Toda a pesquisa – que também envolve especialistas norte-americanos e russos – lançou luz sobre aquilo que muitos consideram um dos primeiros livros do mundo. Ele foi criado entre os anos 330 e 350 da era cristã. Os escribas teriam se sentado a pequenas mesas, munidos de frascos de tinta e de lápis, rabiscando linhas de letras maiúsculas gregas sobre as peles claras de animais. O “Escriba A” foi o mais original. Ele escreveu com letras floreadas, mas foi negligente, esquecendo-se de quatro páginas do Evangelho de São Lucas. Ele simplesmente eliminou a famosa definição de amor na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios. Teria isso sido intencional? O “Escriba D” percebeu os erros e acrescentou o texto que estava faltando na margem.
Mas quem teria encomendado o trabalho? Vários pesquisadores acreditam que a ordem veio diretamente de Constantino, o primeiro imperador romano cristão. No ano 313 ele suspendeu todas as sanções estatais contra aquela religião que à época era perseguida como um “culto judeu”. Ele ordenou a construção de diversas igrejas, e tinha 50 Bíblias magníficas feitas para disseminar pelo Império Romano a religião pouca conhecida baseada no amor fraternal. O Codex pode ter sido escrito durante esse período.
A seção do Novo Testamento do Codex prova como ele é antigo. Ela inclui não apenas o texto usual, mas também dois capítulos apócrifos, que mais tarde foram removidos pelos fundadores da igreja. A Epístola de Barnabás foi escrita por um aluno dos apóstolos, e o Pastor de Hermas consiste de cinco visões do apocalipse escritas no início do século dois.
Os pesquisadores pretendem apresentar os seus resultados ao mundo até 2010 usando um website. Centenas de milhares de palavras terão que ser traduzidas e digitalizadas até lá. O trabalho é lento, e alguns monges do Monte Sinai ainda ficam furiosos ao ouvir o nome Constantin von Tischendorf.
“Os especialistas passaram os últimos dois meses trabalhando em um pequeno relatório sobre a história inicial do manuscrito”, afirma uma pessoa que está envolvida no projeto. “O texto é de apenas uma página, mas eles simplesmente não conseguem concluí-lo”.
Ele explica o motivo para a demora: “Todo tipo de consenso desaparece todas as vezes que alguém decide como escrever algo a respeito da situação legal do manuscrito”.
Fonte: Der Spiegel