Não há lugar no mundo onde os políticos sejam tão supersticiosos quanto em Mianmar e seus vizinhos asiáticos. Eles usam os serviços de astrólogos e curandeiros. Ainda assim, grupos religiosos repetidamente contribuíram para o colapso de déspotas, e os ditadores tiranos não hesitam em matar monges.
Em algum ponto no verão de 2005, o presidente da junta de Mianmar, Than Shwe, chamou seu principal astrólogo. O general tinha seguido seu conselho poucos meses antes e construído uma nova capital nas montanhas, que seria, segundo o assessor, a única forma de segurar o poder. Agora o general queria saber qual seria a melhor data para fazer a mudança.
O sábio, membro do clérigo budista do país, olhou as estrelas e disse: “Às 6h37 do dia 6 de novembro de 2005”. Apesar de a nova capital nem ter ainda um fax funcionando, um comboio indeterminável de caminhões militares cheios de móveis de escritório viajou até as novas instalações no “dia auspicioso”. O nome de Naypyidaw, que o general Than Shwe escolheu para seu novo esconderijo na mata, era uma indicação do estado mental do homem forte de Mianmar: significa “terra real”.
Desde 1962, Mianmar vem sendo dominada por generais brutais que procuraram a salvação do país pelo “caminho birmanês do socialismo”. Ainda assim, em nenhum outro país do Leste e do Sudeste Asiático a crença espiritual e supersticiosa está tão presente no cotidiano. Depois do reino fechado do Butão no Himalaia, Mianmar é provavelmente o país mais budista do mundo.
Ao menos uma vez em sua vida, cada homem deve passar semanas se não meses em um mosteiro. O especialista Bertil Lintner acredita que, dos 53 milhões de habitantes, mais de 400.000 homens são atualmente monges de vestes açafroadas, o mesmo número de soldados. Outras estimativas colocam o número de monges em 800.000.
A fé, no entanto, não é uma coisa só para o povo. O regime militar, em geral inescrupuloso, busca as bênçãos dos deuses, de Buda e dos 36 “Nats”, como são chamados os espíritos de Mianmar, algumas vezes adotando medidas verdadeiramente estranhas.
Nos anos 70, por exemplo o ditador Ne Win -que governou o país de 1962 a 1988- invalidou a nota de 100 kyats e adotou notas de 90 kyats. Noventa é um número da sorte e, com essa medida absurda, Ne Win esperava não só conseguir a bênção de seu país, mas também escapar ao terrível purgatório pintado em todo templo budista.
É um temor claramente compartilhado por seus sucessores. E pode em parte explicar por que, em 2003, cinco anos após ter esmagado o movimento pela democracia com banho de sangue aterrador, a junta permitiu que um elefante branco encontrado na mata fosse trazido a Yangun. Um templo foi construído nos limites da cidade de 5 milhões de habitantes, especialmente para o animal poder ser publicamente exibido. De acordo com uma crença popular, os elefantes brancos simbolizam a sorte e, neste caso em particular, era um sinal que os deuses apoiavam o regime.
Os líderes militares ao longo do Irrawaddy talvez sejam insuperáveis em sua crueldade, mas, mesmo nas sociedades modernas e democráticas da Ásia, não é incomum os políticos fazerem incursões em áreas religiosas duvidosas, que nascem da tradição e da superstição asiática.
Não é preciso ir mais longe que o afluente Taiwan. Há poucos meses, o general que é secretário do partido de oposição Kuo Mintang (KMT), fez uma curta viagem a San Francisco. Ele foi visitar Lin Yun, mestre do budismo tântrico da Seita Preta, que mora em uma mansão opulenta perto da Universidade de Berkeley.
Ele esperava que Lin Yun pudesse aconselhá-lo sobre suas chances nas eleições presidenciais que se aproximam no Taiwan. O mestre Lin Yun morou durante anos no Taiwan e foi conselheiro espiritual e político para inúmeros políticos da ilha. Seus seguidores acreditam que pode fazer rituais mágicos para alterar o destino.
Mesmo os líderes do Partido Comunista chinês e suas famílias entregaram-se à religião e ao ocultismo.
Nos anos 90, por exemplo, o diretor do partido insistiu em encontrar a reencarnação de Panchen Lama -que fica logo abaixo do Dalai Lama na hierarquia religiosa tibetana -com a ajuda do ritual religioso antigo da Urna Dourada. O principal ponto da medida, é claro, era frustrar a tentativa do Dalai Lama de nomear seu próprio Panchen Lama, mas não é segredo em Pequim que a filha de Deng Xiaoping, gigante do Partido Comunista, foi atraída para o budismo mesmo enquanto seu pai ainda era vivo.
Na prática, entretanto, as coisas parecem um pouco diferentes na China. A constituição garante ostensivamente a liberdade de religião, mas os serviços de segurança da China oprimem as freiras e monges tibetanos, assim como fazem com pastores de igrejas cristãs não oficiais e praticantes de Falun Gong. O serviço secreto chinês e grupos de estudos advertiram por anos que a liberdade de religião poderia ser um perigo para o controle do poder pela ditadura.
Não é difícil para os chineses encontrarem exemplos dos perigos que a religião impõe ao Estado. Nas Filipinas, a revolução do Poder do Povo nos anos 80, contra o ditador Ferdinand Marcos e o presidente corrupto Joseph Estrada, por exemplo, dificilmente teria sido possível sem o apoio da Igreja Católica. Na Indonésia, a medida do ex-presidente Mohamed Suharto para esmagar um levante muçulmano em Tanjung Priok em 1984 fez com que tivesse que se virar sem o apoio de importantes grupos muçulmanos.
Portanto, não foi uma surpresa quando o clérigo islâmico cego Abdurrahman Wahid se tornou o primeiro presidente da Indonésia democrática em 1999. Gus Dur, como é chamado por seus seguidores, era, na época de sua vitória eleitoral, diretor do Nahdatul Ulama que, com 40 milhões de membros, é o maior grupo religioso do país muçulmano.
No entanto, é duvidoso que a junta militar de Mianmar esteja dedicando tempo demais atualmente a pensar sobre a religião de seu país e continente. Toda a magia oculta não funcionou, e agora estão apenas pensando em como sobreviver politicamente e reter o poder.
Enquanto dezenas de milhares de monges marchavam pelas ruas de Yangun ao meio dia na quinta-feira (27/09), recitando sutras e canções de paz e compreensão, veículos militares cheios de soldados e policiais de confrontos já estavam assumindo suas posições nas ruas laterais.
“No passado, os generais de fato retrataram-se como fiéis budistas para permanecerem no poder”, diz Soe Aung, líder da oposição no exílio em Bangcoc. “No entanto, os generais podem chegar a qualquer extremo para se manterem no poder.”
Por mais absurdo que pareça, a salvação para os monges das ruas de Yangun agora só pode vir de Pequim. A junta de Mianmar dificilmente sobreviveria sem o apoio econômico do superpoder ao Norte.
Diplomatas chineses recentemente aconselharam os generais supersticiosos em Naypyidaw a resolverem seus problemas por reformas democráticas moderadas.
A indicação chinesa não foi motivada por reverência aos homens sagrados de vestes laranjas. Pequim só quer certificar-se que as Olimpíadas de 2008 não serão ameaçadas por problemas em seu quintal.
Fonte: Der Spiegel