A Igreja Católica alemã foi abalada nos últimos dias por revelações de uma série de casos de abuso sexual. Perto de 100 padres e membros do corpo laico foram apontados como suspeitos de abuso nos últimos anos. Após anos de supressão, o muro de silêncio parece estar ruindo.

Isto é o que parece, o documento de uma conspiração: 24 páginas em latim, com apêndice, publicadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano. Uma “norma interna”, ou conjunto confidencial de diretrizes para todos os bispos, aos quais foi exigido que o mantivessem em segredo por toda a eternidade, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

As diretrizes, emitidas no ano de Nosso Senhor de 1962, tratam de um assunto delicado: o sexo no confessionário. O Vaticano não colocou de forma tão direta, preferindo o uso de uma terminologia mais cautelosa para descrever o que acontece quando um padre desvia um membro de seu rebanho antes, durante ou depois da confissão –em outras palavras, quando ele induz um penitente a “assuntos impuros e obscenos” por meio de “palavras, gestos, toques ou sinais com a cabeça”.

Segundo as instruções de Roma, os bispos precisavam lidar firmemente com cada caso individual –tão firmemente, de fato, que tudo permaneceria dentro dos limites da Santa Igreja. Afinal, a Congregação para a Doutrina da Fé –antes conhecida como a Inquisição– tem séculos de experiência na condução de investigações internas. O Vaticano sempre preencheu todos os cargos nestas investigações –promotores, defensores, juízes– com membros de suas próprias fileiras, enquanto os documentos das investigações são mantidos em arquivos secretos na Cúria Romana.

Posição de autoridade moral

Na superfície, o objetivo do Vaticano é proteger o sacramento da confissão. Na realidade, entretanto, ele tenta manter a posição de autoridade moral superior da Igreja Católica.

Nada pode ser autorizado a manchar essa autoridade: nem o abuso sexual de crianças e adolescentes, cometido por milhares de padres católicos em todo o mundo; nem os relacionamentos secretos entre padres e empregadas; nem o acobertamento de filhos de padres; nem os casos amorosos entre clérigos gays. Todos eles são casos de dois pesos e duas medidas que surgiram porque é difícil para as pessoas –até mesmo para os padres– subordinar seus desejos humanos a uma encíclica papal.

Este código de silêncio foi mantido por décadas, em alguns casos informalmente e em alguns casos em virtude de diretrizes do Vaticano como as de 1962.

Mas agora o muro de silêncio está ruindo na Alemanha. Isso começou quando o Canisius College de Berlim, um colégio jesuíta de elite, revelou recentemente o passado sórdido de uma série de membros da ordem, que abusaram de alunos da escola nos anos 70 e 80. Depois disso, novas vítimas começaram a surgir quase que diariamente. Até a última sexta-feira, pelo menos 40 delas acusavam três padres jesuítas de terem molestado crianças e adolescentes, primeiro em Berlim e depois na Saint Ansgar School em Hamburgo, no Saint Blasien College, na Floresta Negra, e em várias paróquias da Baixa Saxônia, um Estado no norte da Alemanha.

Ponta do Iceberg

Por mais chocantes que fossem as revelações, elas eram apenas a “ponta do iceberg”, diz o atual diretor do Canisius College, o padre Klaus Mertes, que tornou público o abuso sexual contra os estudantes.

Por décadas, os bispos alemães tentaram olhar para o outro lado enquanto seus padres praticavam abuso sexual, assim como minimizar o problema ao caracterizá-lo como incidentes isolados. Agora eles estão finalmente revelando seus próprios números, apesar de que de modo hesitante. Segundo uma pesquisa da “Spiegel” envolvendo 27 dioceses alemãs na semana passada, pelo menos 94 padres e membros do corpo laico na Alemanha são suspeitos de terem abusado de inúmeras crianças e adolescentes desde 1995. Um total de 24 das 27 dioceses responderam às perguntas da “Spiegel”.

Um grupo chamado de Mesa Redonda para o Atendimento nos Lares para Crianças publicou recentemente um relatório provisório que contém conclusões dramáticas. O relatório trata dos abusos cometidos desde os anos 50 contra crianças e adolescentes vivendo em orfanatos, quase metade deles dirigidos pela Igreja Católica.

Segundo o relatório, mais de 150 vítimas de abuso sexual se apresentaram com suas histórias nos últimos meses. Uma delas é uma mulher que, aos 15 anos, teve que assistir a um padre se masturbando no confessionário. Quando ela tentou fugir dele, ela apanhou das freiras que dirigiam o orfanato. Nunca houve uma investigação sistemática de quantas escolas, orfanatos e reitorias católicas foram cenas de abuso, mesmo quando havia evidência nos arquivos. O grupo Mesa Redonda planeja apresentar seu relatório final antes do fim deste ano.

Protegendo os infratores, ignorando as vítimas

Um tremor está atualmente ocorrendo na Igreja Católica alemã. Pode vir a ser o início de um terremoto só visto até o momento na Igreja americana e irlandesa. Dezenas de milhares de casos de abuso vieram à tona em ambos os países. A Alemanha poderia ser o próximo país?

O escândalo está apenas começando e já deixou uma impressão profunda: nos pais, que esperam que as escolas católicas ofereçam uma orientação moral aos seus filhos; nas vítimas, que agora estão enfrentando seu passado sombrio após conviverem com ele por metade de suas vidas; e nos fiéis, que agora veem sua Igreja com desalento. O choque deles vem não apenas do fato de haver pedófilos na Igreja, como em toda parte na sociedade. Ele vem do fato da Igreja ter protegido sistematicamente os perpetradores e ignorado as vítimas, e por ter encoberto os casos de abuso sexual em suas próprias fileiras por décadas –e ao fazê-lo ter permitido aos padres pedófilos deixarem um rastro de devastação emocional por toda a Alemanha.

Até hoje, o presidente da Conferência Episcopal alemã, o arcebispo de Freiburg, Robert Zollitsch, não ofereceu nenhuma palavra convincente de desculpas ou gestos de empatia para as vítimas dos dois pesos e duas medidas da Igreja. Após hesitar por dias, ele finalmente decidiu não conceder uma entrevista à “Spiegel”. A Igreja prefere oficialmente não permitir que o sofrimento de suas vítimas se torne um assunto importante, porque não se enquadra na visão de mundo hipócrita da Igreja.

A Conferência Episcopal nem mesmo discutirá os escândalos sexuais até 22 de fevereiro. “As revelações mostram um lado sombrio da Igreja que me assusta”, disse o jesuíta Hans Langendörfer, secretário da Conferência Episcopal. “Nós queremos uma investigação.”

Moralidade reprimida

Todavia, os clérigos ainda estão longe de qualquer verdadeira autocrítica ou análise abrangente, porque ela exigiria que examinassem a moralidade sexual reprimida da Igreja que é ditada do alto. Ela exigiria uma discussão honesta sobre o celibato e suas consequências, particularmente quando se trata das práticas de recrutamento da Igreja. Em uma Igreja que tem dificuldade em atrair homens ao sacerdócio, particularmente em consequência da proibição ao casamento, o número de bons candidatos se torna tão pequeno que muitos candidatos impróprios são admitidos.

Isso significa que a Igreja manterá sua política hesitante e disfuncional, evitando as questões importantes, como já fez com tanta frequência? Será difícil fazer isso, agora que a ofensiva dos jesuítas colocou todo o clero sob pressão.

A ordem pretende investigar sistematicamente os abusos ocorridos em suas próprias fileiras, por mais doloroso que seja o esforço e mesmo se um crescente número de revelações, por parte de ex-alunos, a mergulhem naquela que provavelmente seria a crise mais profunda na história dos jesuítas. O padre Stefan Dartmann, o chefe da ordem jesuíta da Alemanha, diz que “uma tragédia imensa agora está se tornando aparente”.

Seus temores são justificados, à medida que mais e mais ex-alunos se apresentam. Além do Canisius College e das escolas em Saint Ansgar e Saint Blasien, agora há revelações de abuso no Aloisius College dos jesuítas no bairro Bad Godesberg, em Bonn, onde gerações inteiras de filhos de políticos e diplomatas foram à escola.

‘Era difícil para nós suportar os avanços sexuais dos padres’

Um dos estudantes que experimentou pessoalmente o amor fraternal de um padre jesuíta é Robert K. Falando sobre seu tempo na escola em Bad Godesberg, ele diz: ‘Era difícil para nós, como garotos, suportar os avanços sexuais dos padres. Eles variavam de perguntas extremamente embaraçosas sobre detalhes minuciosos de ‘atos vergonhosos’ durante a confissão, até perguntas sobre beijos e carícias e, finalmente, a investidas sexuais sadistas concretas”. Um monitor, o padre S., “fazia com que os meninos pequenos fossem ao seu quarto, fazia com que se despissem da cintura para baixo e deitassem de bruços em sua cama. O padre então batia violentamente neles com um cabide, realizando depois demonstrações de afeto.”

Imagem jovial

A evidência desses ataques remonta aos anos 50. Alguns padres aparentemente eram capazes de manter seus impulsos mais ou menos sob controle para não atraírem atenção, como o padre M., um falecido ex-professor de matemática no Canisius College, que gostava de assistir as aulas de natação dos meninos da 7ª série. Outros convidavam seus alunos para passeios em suas BMWs. Os estudantes faziam piadas sobre o fato dos padres envolvidos tentarem acariciá-los enquanto estavam no carro.

Depois os infratores envolviam a si mesmos e seus alunos em uma teia de culpa, silêncio desajeitado e uma expiação extorquida. Um deles foi o padre Peter R., um professor de religião corpulento, com costeletas e óculos escuros, que é um dos três padres no Canisius College cujas transgressões agora foram reveladas –e que nega tudo. O padre jesuíta cultivou uma imagem jovial e tenta passar a ideia de ser alguém que entende os jovens. A placa do ônibus VW que ele dirigia incluía as letras SJ, de “Societas Jesu”. Posteriormente, os alunos do Canisius passaram a dizer sarcasticamente que as letras significavam “Seine Jungs” (“Seus meninos”).

Por oito anos, a partir de 1973, Peter R., dirigiu uma espécie de centro para jovens na propriedade do Canisius College conhecido como “Congregação Mariana”. O padre selecionava um grupo de líderes entre os estudantes matriculados em seu clube vespertino, conhecido como Burg (“Castelo”), que então eram convidados para participarem de “sessões de treinamento” de fim de semana em um retiro jesuíta na Baviera.

Fotos tiradas na época mostravam o padre, que insistia que seus estudantes o chamassem de Peter, cercado por seus queridos alunos. Ele então acompanhava “seus meninos” em saídas para esquiar e na piscina. Os adolescentes nas fotos trajam jeans e casacos de tweed. Eles podem ser vistos bebendo cerveja e vinho direto da garrafa, carregando uns aos outros nas costas e às vezes correndo sem camisa pela sala. À primeira vista, as imagens parecem não ser nada mais que fotos inocentes de jovens privilegiados de Berlim Ocidental, que se viam como parte da última escola livre diante da Rússia e como parte de um grupo exclusivo.

Conversas reservadas

Quando ele pensa no trabalho dos jesuítas com os jovens na época, Ansgar Hocke, que atualmente tem 52 anos, diz que ele era caracterizado por um espírito de otimismo. Na época, ele lembra, ele e seus amigos acreditavam que “os tempos de padres em batinas, que gritavam com seus alunos, que eram profundamente conservadores e que viam o catecismo como seu único guia, estavam chegando ao fim”. Padres jovens, atléticos, estavam injetando nova vida na escola. “Nós não víamos quão doentes e instáveis eles eram”, diz Hocke.

Os estudantes sentiam que o direito à felicidade sexual deve ser parte da felicidade humana. “Nós sabíamos que os padres jovens estavam excluídos dessa felicidade e frequentemente víamos quão impotentes eles eram”, diz Hocke. Ele não teve nenhuma experiência pessoal relacionada aos complexos deles, mas outros sofreram de formas terríveis.

Os estudantes que pertenciam à roda mais íntima do padre R. eram submetidos constantemente a “conversas reservadas”. As sessões às vezes ocorriam no porão em Burg, que rapidamente ganhou uma reputação notória entre os estudantes, que o chamavam de “porão da masturbação” ou “sala de interrogatório”. “Eu tive que tirar minhas calças e deitar na cama”, diz um ex-aluno. “Ele queria assistir enquanto eu me masturbava e me tocava enquanto eu fazia aquilo”. Quando ele terminava, diz o ex-aluno, R. perguntava: “Você gostou?”

Mantendo em segredo

Uma mistura de vergonha e medo, ameaças constantes e intimidação, mas também gestos amistosos por parte do padre e sua imagem de ser amigo dos estudantes, devem ter levado suas vítimas a manterem seu segredo por anos, ou tratá-lo como motivo de piada. Geralmente o abuso só terminava quando os estudantes se tornavam mais velhos e deixavam de ser do agrado do padre R.

“Na época, todos nós ouvíamos essas histórias de masturbação. Mas costumávamos rir delas”, disse Johannes Siebner, um ex-aluno do Canisius College que agora é um padre jesuíta e atual diretor do Saint Blasien College.

As cartas que os estudantes escreveram uns aos outros quando tomaram conhecimento das alegações revelam a perplexidade deles: “Tudo é completamente novo para mim, apesar de sempre ter tido essa sensação a respeito (…) A coisa toda foi um choque para mim e tive dificuldade em processá-la. Isso tudo é tão inacreditável, vil, enojante e ruim (…) E havia todo um sistema de pressão, do qual não era fácil sair depois de entrar (…) Mas eu também não entendo a ordem, como pôde ser tão irresponsável (…) Eu tremo enquanto escrevo isto hoje e sinto medo”.

‘Eu perdi minha inocência’

O menino que recebeu a carta, uma vítima do padre R.. tem 48 anos hoje e diz que o abuso “projeta uma sombra” sobre seus tempos de escola. O clima de “impotência, humilhação e mentiras” ainda tem um impacto sobre ele hoje, ele diz. “Você se sente você mesmo apenas parte do tempo. Eu ainda não entendo por que suportei aquilo na época. Eu perdi minha inocência e o alegria da vida.”

Apenas em 1981, quando ele se formou no colégio, é que ele encontrou coragem para denunciar o abuso ao então diretor, o padre Karl Heinz Fischer. Fischer relatou as acusações aos seus superiores e o padre R. foi transferido logo depois. Fischer não sabe o que aconteceu depois disso ao padre. “Eu reagi na época dentro daquilo que era possível”, ele diz.

Protelar a solução do problema ou transferir o transgressor eram as abordagens preferidas dentro da hierarquia da Igreja e da ordem.

O padre R. e seus companheiros, os padres Bernhard E. e Wolfgang S., foram transferidos de Berlim para vários locais na Alemanha, trabalhando em posições subsequentes como professores em Hamburgo e na Floresta Negra, e como pastores e diretores de grupos para jovens em Hildesheim, Göttingen e Hanover.

Em nenhum desses lugares os diretores da escola, padres, estudantes e seus pais foram alertados sobre as tendências perigosas dos novos padres –algo que não causa surpresa, dada a tendência da Igreja de manter as coisas em sigilo. Qualquer um que perguntasse o motivo das transferências era informado, por exemplo, que tinham ocorrido irregularidades financeiras. Quando isso acontecia, o padre em questão apenas não recebia acesso aos fundos da escola. O dinheiro podia ser protegido –mas os estudantes não.

Uma alternativa atraente às escolas públicas para muitos pais

Muitos pais na Alemanha há muito consideram as escolas católicas como uma alternativa atraente ao ensino público de baixa qualidade. Eles esperam professores dedicados que desafiam e encorajam seus alunos, transmitindo tanto conhecimento quanto valores para eles. “O estudante deve sentir a todo tempo que ele, como uma pessoa em desenvolvimento, é importante para o professor”, disse a declaração de missão da Saint Ansgar School, em Hamburgo.

Mas agora estão começando a aparecer rachaduras nesta imagem cuidadosamente cultivada –e precisamente no momento em que muitas escolas estão realizando as matrículas para o próximo ano letivo.

“É um desastre para nós”, diz Friedrich Stolze, o diretor da Saint Ansgar, que veste calça jeans e uma jaqueta esportiva. “Esses padres causaram danos imensos, tanto aos seus alunos quanto a nós atualmente.” Ele sente “raiva e desprezo” pelos homens envolvidos e diz que está claro que “a reputação das escolas católicas foi danificada”.

Quando Stolze chegou ao colégio em Hamburgo como um jovem professor em 1981, dois dos padres atualmente acusados de molestamento ainda estavam lá. Ele e seus colegas deveriam ter notado algo? “Não havia nada”, ele diz. “Nós não nos lembramos de nada.” Ele fica furioso com os líderes da ordem na época. “Eu não consigo entender que alguém deveria ser simplesmente transferido para outra escola, sob a suposição de que ele seria capaz de controlar suas tendências pedófilas lá.”

Minimizando o abuso

Sempre que rumores surgiam nas escolas católicas, paróquias, grupos de jovens e orfanatos, ou as vítimas superavam sua vergonha e denunciavam o abuso, a Igreja minimizava os casos, os caracterizando como isolados, exceções lamentáveis ou uma conduta imprópria de um padre desgarrado. Esta era a posição adotada pelo Vaticano e pelos bispos alemães, que não estavam dispostos a aceitar que o problema podia estar no próprio sistema. Mas o que acontece quando o número de casos começa a crescer, como aconteceu em outros países?

Nos Estados Unidos, também começou como um problema de padres individuais que tinham molestado alunos ou coroinhas. Como seus irmãos alemães, os bispos católicos americanos tentaram por anos proteger seus padres, minimizando as acusações e ignorando as vítimas –até que os tribunais americanos, políticos e o público começaram a exigir respostas, os obrigando a pagar indenizações. No Estado de Delaware e em outros, por exemplo, os legisladores suspenderam o prazo de prescrição dos crimes, levando a uma enxurrada de novos processos. As decisões resultantes forçaram as dioceses a abrirem seus arquivos.

Mais e mais vítimas se apresentaram e, no final, a Igreja Católica na América do Norte foi tomada pelo maior escândalo em sua história. Os bispos americanos concluíram que havia acusações críveis contra cerca de 5 mil padres, envolvendo o abuso de cerca de 12 mil crianças e adolescentes desde 1950.

Várias dioceses, incluindo Tucson, Arizona e San Diego, Califórnia, tiveram que pedir concordata quando se viram incapazes de pagar os acordos financeiros ordenados pela Justiça para as centenas de queixas apresentadas. Apenas a Arquidiocese de Los Angeles teve que pagar mais de US$ 660 milhões em danos, o que representou uma parcela substancial dos mais de US$ 2 bilhões pagos pela Igreja Católica americana como um todo.

Uma série de escândalos sexuais também sacudiu a Irlanda, onde uma comissão concluiu que cerca de 35 mil crianças sofreram agressões e abusos nos lares para crianças e orfanatos católicos entre 1914 e 2000.

Não apenas incidentes isolados

A Igreja alemã, por sua vez, está apenas começando a confrontar seu passado. Na semana passada, 24 das 27 dioceses da Alemanha responderam ao levantamento da “Spiegel” sobre casos de suspeita de abuso em suas próprias fileiras desde 1995. Apenas três dioceses, Limburg, Regensburg e Dresden-Meissen, optaram por não responder. Um porta-voz da diocese de Dresden disse que ela não participou porque “não deseja inflamar ainda mais a atual discussão”.

Os resultados do levantamento mostram que as paróquias e entidades da Igreja por toda a Alemanha enfrentaram casos de abuso sexual cometidos por padres e outras pessoas ligadas á Igreja. Com pelo menos 94 suspeitos revelados até o momento em todo o país, a posição oficial da Igreja de que os casos de abuso são incidentes isolados não mais se sustenta. Os molestadores incluem não apenas padres, mas também leigos que trabalham para a Igreja, como sacristãos, diretores de coral, funcionários das caridades da Igreja e voluntários dos programas para jovens.

Está cada vez mais claro quão difícil é para o Estado punir os culpados. Em muitos casos, os abusos enfrentam o problema da prescrição do crime. Como no caso dos ex-alunos do Canisius College em Berlim, as vítimas só se apresentam 20 ou 30 anos depois. A esta altura, os promotores não contam mais com a opção de abertura de processo. A única opção deles é rejeitar o processo ou encerrá-los prontamente.

Múltiplos casos

A diocese de Rottenburg-Stuttgart, no sudoeste da Alemanha, processou 18 padres e 5 leigos em 23 casos de abuso. Seis casos foram abandonados imediatamente, porque os cinco clérigos e um leigo envolvidos já tinha morrido. No final, 11 suspeitos foram investigados e cinco sentenciados.

Dois padres foram associados a abuso na diocese de Magdeburg, mas em seus casos o crime também prescreveu. Mas um voluntário da Igreja foi julgado por alegações de molestamento durante uma “semana religiosa para crianças”.

Na arquidiocese de Paderborn, um padre foi sentenciado a seis anos e três meses de prisão, enquanto outro padre recebeu dois anos sob liberdade condicional. Ambos foram expulsos da Igreja.

Em Munique, foram impetrados três casos de abuso de menores. Um caso foi rejeitado, um segundo resultou em condenação e o terceiro está em andamento.

Em Colônia, um padre morreu antes que as acusações pudessem ser esclarecidas, outro foi sentenciado e três casos foram rejeitados. Além disso, acusações de abuso foram impetradas contra um músico da Igreja em 2001, um organista em 2002, o diretor de um grupo de escoteiros em 2004 e um sacristão em 2008. Um faxineiro de igreja atualmente está sendo julgado.

Na cidade de Bamberg, na Baviera, várias pessoas acusaram um vigário de abuso sexual. O homem foi afastado do posto, mas então a investigação do promotor foi encerrada.

Relutância da Igreja em esclarecer os crimes

Relatos semelhantes surgiram em cidades como Würzburg, Münster e Aachen, além de muitas outras dioceses. Alguns poucos levaram a condenações, mas na maioria dos casos o Estado está impotente devido aos supostos crimes terem acontecido muitos anos atrás. E o que a Igreja está fazendo a respeito da situação? Por que reluta tanto em esclarecer os crimes? E por que não adotou uma posição mais dura em relação aos suspeitos de abuso?

A visão predominante no Vaticano é que a revolta pública em relação aos casos de abuso é utilizada como uma desculpa para reviver velhas animosidades em relação à Igreja Católica como um todo, assim como para alimentar as críticas de costuma ao papa por intelectuais seculares e desencantados.

Por este motivo, muitos membros da Cúria acreditam ser preferível manter o silêncio do que dar a esses inimigos da Igreja a chance de atacar, além de que a prioridade de Roma deve ser esperar o momento propício –não apenas para superar a tempestade, mas também para evitar ir ao ataque. Determinada a proteger os seus, eles colocam instintivamente o bem da Igreja acima do bem das vítimas. A primeira pergunta não é “como podemos ajudar as vítimas?”, mas “o que devemos fazer com os padres?”

Muito tempo –tempo demais, pelo ponto de vista das vítimas– geralmente se passa antes do próprio papa se manifestar sobre o assunto. Após o tamanho do escândalo de abusos nos Estados Unidos ficar aparente no início de 2002, foi necessário cerca de meio ano para que o então papa João Paulo 2º finalmente fizesse uma declaração no Dia Mundial da Juventude, em Toronto. O papa Bento 16 foi o primeiro papa a se encontrar com as vítimas de abuso –apesar de não oficialmente, à margem de sua viagem aos Estados Unidos e apenas após uma prolongada hesitação por parte de seus assessores. “É mais importante ter bons padres do que muitos padres”, ele disse em um comentário um tanto medíocre. Estava longe de ser um momento de virada.

Até hoje, Bento não enviou a carta pastoral reconfortante que prometeu aos irlandeses, que ficaram abalados pelo escândalo de décadas de abusos. Além disso, nenhuma vítima foi convidada ao Vaticano.

‘Não se pode dizer que a lei criminal tenha alguma importância prática’

O assunto do abuso cometido por padres não tem lugar no mundo acadêmico e de oração de Joseph Ratzinger. Para ele, os crimes contra crianças são a expressão máxima, mais chocante, de uma cultura ateísta, e infelizmente nem mesmo os clérigos estão imunes a ela. Em seu pronunciamento na quarta-feira da semana passada, a recomendação de Bento aos seus padres foi simplesmente seguir o exemplo de São Domingos e se dedicarem plenamente à oração e ao aprendizado.

E para aqueles que já caíram vítima das “fraquezas” da carne, o papa oferece a relativa leniência de um procedimento interno da Igreja. Ao lidar com os transgressores sexuais no clero, o Vaticano depende, pelo menos inicialmente, apenas de seu aparato, de seus próprios investigadores e de seus próprios tribunais. Isso é um reflexo de séculos de tradição, que vai da “santa” Inquisição até a atual Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma. Os procedimentos são nobres, caracterizados por um espírito de perdão e caridade em relação aos irmãos, geralmente conduzidos em latim e fechados ao público.

Mas como a Igreja se recusa a admitir a mera possibilidade de crimes dentro de suas próprias fileiras, sua lei criminal tem tanto peso quanto a fumaça de incenso no altar. “Não se pode dizer que lei criminal tenha alguma importância prática”, diz Klaus Lüdicke, um especialista em lei da Igreja na cidade Münster, no noroeste da Alemanha. No passado, ele acrescenta, o número de casos que se tornaram conhecidos foi “insignificantemente pequeno”.

Problema de definição

Todavia, a Igreja preferiria usar precisamente esses procedimentos para disciplinar seus padres “pecadores”. Mas ela nem mesmo sabe como definir os crimes. Uma opção é tratá-los como um “delictum contra mores”, ou crime contra a moral, enquanto outro seria aplicar o Sexto Mandamento (“Não cometerás adultério”). O problema com a segunda abordagem é que os perpetradores nunca são casados e suas vítimas raramente são casadas.

As penas –transferência ou excomunhão– ficam bem aquém das penas da lei criminal secular, enquanto as circunstâncias atenuantes que podem ser aplicadas para reduzir as penas são generosas. Uma dessas circunstâncias envolve padres, fora isso celibatários, sendo tomados por uma “tempestade de paixão” (“gravis passionis aestus”).

Além disso, uma disposição à penitência, expressão de remorso e correção dos modos normalmente aplaca aqueles que julgam. De qualquer forma, os detalhes sobre as decisões são de difícil obtenção: os veredictos são secretos e desaparecem, como um “secretum pontificium” em arquivos selados.

A Conferência Episcopal alemã gosta de apontar para um conjunto de “diretrizes”, que ela aprovou em 2002, sobre como responder às suspeitas de abuso sexual. O secretário Hans Langendörfer as descreve como um “passo importante”. “Nós queremos tratar do assunto abertamente, que é o que temos feito desde 2002, no mínimo”, ele diz.

Código de sigilo

Mas sob uma análise mais atenta, mesmo essas diretrizes são tomadas pela forma de pensar da Igreja, como afirmado pela Santa Sé em 1962, sob o papa João 23, e novamente em 2001. Segundo essas diretrizes, que permanecem atualmente em vigor, casos potenciais de abuso devem ser informados à Congregação para a Doutrina da Fé. As diretrizes também proíbem os bispos de todo mundo de agirem além da investigação inicial das acusações sem instruções diretas de Roma. Todo o procedimento está sujeito ao “sigilo pontifício”, o segundo maior grau de sigilo dentro da Santa Sé. Qualquer um que violar este código de sigilo sem a permissão papal pode ser punido.

As diretrizes da Conferência Episcopal alemã são elaboradas de acordo e enfatizam a primazia das investigações internas discretas. Antes de tomar uma decisão, cada bispo deve primeiro considerar formas de proteger a reputação do padre e da Igreja. Quando Roma assume a investigação, certos casos de abuso podem ser tratados discretamente em julgamentos secretos.

Com base em sua própria lei canônica, a Igreja Católica alemã não se sente obrigada a relatar imediatamente os casos de abuso dentro de suas próprias fileiras para as autoridades alemãs, para que as autoridades possam conduzir buscas nas casas, por exemplo. Os críticos dizem que a Igreja está se expondo a acusações de obstrução da Justiça caso o clero cuide dos casos de forma puramente interna.

Grupos católicos há muito buscam mudar as diretrizes da Conferência Episcopal, mas sem sucesso. Bernd Göhrig, o diretor executivo de um grupo chamado Igreja de Baixo, pede pela criação de ombudsmen independentes para cuidar dos interesses das vítimas, em vez de representantes tendenciosos da diocese. Esta provavelmente é a única opção viável, dado que os bispos alemães são tão relutantes em tratar da questão do sexo proibido quanto o papa alemão.

Sem necessidade de agir

Mesmo antes do imenso escândalo de abusos nos Estados Unidos em 2002, o cardeal Karl Lehmann, o bispo da cidade alemã de Mainz, no sudoeste, e chefe da Igreja Católica alemã na época, não sentia nenhuma necessidade em particular de agir. “Nós não temos um problema da mesma dimensão (que na Igreja americana)”, ele disse à “Spiegel” em uma entrevista na época. Em sua diocese, ele disse, qualquer um que seja “realmente um pedófilo, é removido imediatamente do serviço pastoral”. Essas pessoas, ele disse, “não podem ser simplesmente transferidas para um local diferente”.

Apenas poucas semanas depois, entretanto, Lehmann se viu diante de um novo caso de abuso dentro de sua própria diocese, em uma paróquia perto de Darmstadt. Poucos meses antes, os pais em uma pequena cidade próxima de Frankfurt descobriram, para seu desalento, que o novo diretor do coral infantil, o padre E., era o mesmo homem que foi forçado a deixar sua paróquia anterior por causa de relacionamentos questionáveis com menores. O sistema de Lehmann já tinha transferido o padre várias vezes de um local para outro.

A Diocese de Aachen, no oeste da Alemanha, também demonstrou pouca disposição de mudar sua abordagem tradicional em um caso recente. Apesar do departamento pessoal da diocese ter conhecimento de que o padre Georg K. tinha convidado coroinhas menores de idade para irem até sua sauna privada, o homem foi simplesmente transferido para uma congregação alemã no exterior, na África do Sul.

Mas K. atraiu atenção imediatamente para si mesmo, após assumir um retiro com crianças que estavam prestes a receber sua primeira comunhão. Os investigadores acreditam que ele as assediou de forma imprópria no dormitório. A nova paróquia de K. não foi informada sobre o incidente em sua paróquia anterior. Foi apenas quando as pessoas envolvidas no caso contataram a mídia que a Igreja reagiu, anunciando que uma autoridade especial da Igreja, responsável pelos casos de abuso, estava tratando do assunto e que as pessoas deviam contatá-la com qualquer informação –que pudessem ser “inocentadoras”, preferencialmente, ou “incriminatórias”.

As investigações se arrastam sem resultados

Enquanto isso, em Berlim, o cardeal Georg Sterzinsky está ciente das alegações contra o padre da paróquia da Santa Cruz desde julho de 2009. Apesar de seu caso poder em breve prescrever –as acusações relacionadas aos incidentes supostamente ocorreram em 2001– uma investigação interna por uma comissão “independente” da Igreja em Berlim está se arrastando. Uma investigação, apesar de secreta, também foi iniciada pelo Vaticano. Coube à vítima denunciar as alegações de abuso à polícia.

Esses casos de abuso, que aconteceram apenas há poucos meses ou anos, mostram que, apesar de suas alegações do contrário, a Igreja fez pouco para mudar sua posição. Isso coincide com a percepção de Johannes Heibel, que trabalha para uma associação alemã que aconselha as vítimas de violência sexual e que trabalha há muitos anos com pessoas que foram abusadas por padres. “A abordagem tradicional –mantenha em sigilo, acoberte, transfira o transgressor– está longe de ser coisa do passado”, ele diz.

“Vocês não estão preocupados com as vítimas, mas principalmente em assegurar que nada apareça na mídia”, disse um adolescente vítima de abuso, em uma acusação voltada ao bispo de Regensburg, Gerhard Müller. Um capelão agarrou seus genitais em 1999.

A Igreja paga pelo silêncio

Em vez da investigação do caso e do capelão ser levado à Justiça, o capelão, agindo por ordem episcopal, pagou à família uma indenização pela dor e sofrimento, sob a condição de que ficasse em silêncio. Então o homem foi transferido para outra paróquia, que não foi informada sobre as alegações de abuso, e onde novos casos de abuso foram denunciados em 2003.

Os incidentes em escolas, que contavam com um total de 220 mil alunos no início dos anos 60, também permaneceram em grande parte sem solução até agora. Michael-Peter Schiltsky, que sofreu abuso várias vezes por diáconos enquanto estava em um lar para crianças da Igreja em Westuffeln, no Estado de Hesse, no oeste, compilou os relatos de muitas outras vítimas de abuso, incluindo 40 de orfanatos católicos. Um dos relatos é de Peter Rueth, um ex-coroinha em um lar para crianças dirigido pelos salvatorianos perto da cidade de Paderborn, no noroeste:

“Certa manhã, quando ele estava sozinho no vestiário comigo, um padre fechou a porta para ouvir minha confissão antes da missa. Ele disse: apenas um espírito puro pode servir a Deus. Eu tive que me sentar em uma cadeira. Então o padre me vendou com sua estola e amarrou minhas mãos com outra peça, dizendo que tinha que fazer isso porque supostamente não se deve ver a outra pessoa durante a confissão. Ele me pediu para falar sobre meus pecados, e quando confessei, ele me disse que, como punição, eu devia abrir minha boca para que ele pudesse colocar uma esponja embebida em vinagre, como a esponja que foi oferecida ao Senhor na cruz.”

Após o sexo oral que seu seguiu, o menino foi instruído a recitar o Pai Nosso três vezes e então lavar sua boca.

Prescrição: um dos maiores problemas para as vítimas

Heinz-Jürgen Overfeld, natural de Berlim, estava no mesmo lar para crianças dirigido pelos salvatorianos. Há duas semanas, ele escreveu uma carta para o presidente da Alemanha, Horst Köhler, pedindo que outro padre daquela casa fosse destituído da Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha, porque o padre também tinha molestado crianças. Overfeld já confrontou o transgressor, mas a única resposta do padre idoso foi que qualquer coisa que tenha ocorrido no passado já prescreveu.

“No que me concerne, nada prescreve”, escreveu Overfeld para Köhler. “Está tudo voltando.” O presidente ainda não respondeu à carta de Overfeld.

A prescrição é um dos maiores problemas para as vítimas de abuso. A prescrição para crimes sexuais na Alemanha geralmente é de 10 anos a partir do 18º aniversário da vítima. Em outras palavras, alguém que sofreu abuso aos 13 anos deve denunciar o caso às autoridades antes de completar 28 anos, ou o transgressor permanecerá impune. Indenizações expiram três anos após o 21º aniversário da vítima.

Outra vítima da Igreja, Norbert Denef, já reuniu 7 mil assinaturas como parte de uma iniciativa para que o prazo de prescrição seja ampliado ou eliminado, pelo menos na lei civil, para que as vítimas possam ao menos ter a esperança de serem indenizadas financeiramente. Em um caso anterior sem precedente, Denef, após uma longa disputa contra uma ordem de proibição de divulgação, finalmente recebeu 25 mil euros em indenização pela dor e sofrimento causados pela Diocese de Magdeburg, no leste da Alemanha.

Para a Igreja, um esforço sério para confrontar sua própria moral sexual deveria ser tão importante quanto tratar das ramificações legais.

“Se você é forçado, por virtude de sua profissão, a viver uma vida sem esposa e filhos, há um grande risco de que a integração saudável da sexualidade fracassará, o que pode levar a atos pedófilos, por exemplo”, escreveu o teólogo Hans Küng na “Spiegel”, em 2005. “Além da Congregação para a Doutrina da Fé, faria sentido para Roma estabelecer uma Congregação para a Doutrina do Amor, que examinaria cada decreto emitido pela Cúria para assegurar que está de acordo com o conceito cristão de amor.”

Seu colega teólogo Eugen Drewermann escreve sobre uma “estrutura de igreja que é repressiva em áreas emocionais e em questões de amor”. Por causa dessas e outras opiniões semelhantes, o Vaticano revogou a permissão para ambos os teólogos lecionarem.

O celibato, que só passou a ser exigido a partir de 1139, é visto como o principal motivo para o acúmulo reprimido de impulsos sexuais, que às vezes irrompem de formas brutais, dentro do clero. O celibato e a proibição do casamento são padrões rigorosos que nem todos os membros do clero conseguem cumprir. Com frequência, a exibição de castidade na Igreja está em atrito com a realidade. Segundo uma pesquisa americana, dois terços dos padres cumprem seus votos de castidade, enquanto os demais praticam sexo de todos os tipos e formas: heterossexual, bissexual, homossexual, monógamo, promíscuo.

2% dos padres são pedófilos

Há um amplo acordo de que este clima de sexualidade reprimida promove o abuso sexual de crianças nas escolas, orfanatos e paróquias. Vários estudos nos Estados Unidos concluíram que cerca de 2% de todos os padres católicos são pedófilos.

Quando aplicado à Alemanha, este número sugere que de um total de 20 mil membros do clero católico, pelo menos 400 poderiam ser potencialmente pedófilos.

Essa pesquisa levou movimentos leigos como “Nós somos a Igreja” a pedir aos bispos que promovam uma discussão fundamental sobre a sexualidade. O movimento cita um problema estrutural, na qual a combinação de uma moralidade sexual rígida e um sistema autoritário forma uma mistura perigosa. Mas os bispos se recusam até mesmo a discutir o assunto.

Wunibald Müller também pede pelo fim do celibato e pela ordenação das mulheres, dizendo que ambos são “uma forma de prevenção”. Müller, um teólogo católico e psicólogo da Abadia Beneditina de Münsterschwarzach, aconselha os padres que enfrentam sérias crises. Há anos ele defende uma maior abertura em assuntos de sexo e diz: “A experiência da dor e do sofrimento pode nos levar a Deus, mas também o erotismo e a paixão sexual”.

Müller insiste que os membros do clero devem tratar de sua sexualidade. “Eles não podem reprimir esta área, caso contrário ela encontrará formas de vir à tona e causar problemas para outras pessoas.”

Posturas inibidoras em relação à homossexualidade

As posturas do Vaticano em relação à homossexualidade são particularmente inibidoras, apesar do fato dela ser um tanto disseminada dentro da Igreja e parecer ser relativamente tolerada, desde que não seja discutida. Como o Vaticano considera a prática da homossexualidade um pecado, e como até mesmo passou a exigir testes visando manter os gays longe do sacerdócio nos últimos anos, muitos gays no clero reprimem seus sentimentos. Müller cita uma “homossexualidade imatura” que torna os padres “suscetíveis” em suas interações com jovens.

Os tabus foram suspensos da sexualidade em quase todas as áreas da sociedade nos últimos anos, facilitando para que as vítimas se apresentem. A Igreja, entretanto, continua se agarrando aos seus valores morais de séculos. Segundo Müller, muitos padres que se tornam transgressores sexuais nunca aprenderam a desenvolver relacionamentos íntimos e estreitos. Alguns, ele acrescenta, nunca progrediram além dos níveis infantis de sexualidade ou desenvolveram outros problemas sexuais. Todavia, eles nunca ousariam confessar esses problemas ou mesmo passar por terapia.

Diante de seus problemas de recrutamento, a Igreja aceita quase qualquer um que decidir ser um padre. Entretanto, poucos na Igreja estão dispostos a reconhecer que os novos recrutas cada vez mais incluem jovens que consideram o sacerdócio atraente em parte por acreditarem que lhes permitirá ocultar seus problemas sexuais.

É um círculo vicioso. Menos e menos jovens estão optando pelo sacerdócio –apenas cerca de 100 foram ordenados em 2008– enquanto a maioria esmagadora dos 20 mil pastores e diáconos na Igreja Católica alemã foi educada em um ambiente arquiconservador, sexualmente reprimido da Igreja dos anos 50, 60 e 70. Isto é particularmente verdadeiro a respeito de muitos clérigos veteranos nas dioceses que, em consequência, deixaram os padres jovens sozinhos com seus problemas por tempo demais.

Especialistas concordam que mudanças radicais nos seminários são necessárias, e que questões importantes precisam ser tratadas: quão emocionalmente maduros são os candidatos? Como discussões abertas podem ser iniciadas com aqueles que podem precisar de ajuda, como eles podem ser convencidos a aceitar as ofertas de ajuda?

Celibato: uma vida desperdiçada sem sentido ou um presente do Espírito Santo?

Mas a Igreja mantém teimosamente o voto do celibato e a proibição do casamento, como se fossem uma garantia para –e, talvez, não uma ameaça à– sua existência.

Bispos, como Wilhelm Schraml da Diocese de Passau, na Baviera, glorificam constantemente “o modo de vida celibatário voluntário”, que eles dizem ter provado ser bem-sucedido por centenas de anos. Em uma carta pastoral recente, o cardeal de Colônia, Joachim Meisner, até mesmo descreveu o sacerdócio como “um sinal benéfico de provocação” contra o comportamento predominante. Em uma sociedade de prazer febril, escreveu Meisner, a vida celibatária de um padre pode até ser vista “como uma vida desperdiçada sem sentido”, mas na verdade deve ser vista como um presente precioso do Espírito Santo.

Klaus Beier, um dos especialistas médicos em sexualidade mais proeminentes da Alemanha, iniciou o Projeto de Prevenção Dunkelfeld, no Hospital da Universidade Charité, em Berlim, para ajudar pedófilos. Alguns dos homens que participaram do projeto são religiosos e, para eles, o caminho até seu instituto foi particularmente difícil. Beier teve acesso a vários padres, incluindo membros de ordens, às vezes no contexto de julgamentos e às vezes em resposta a um pedido da Igreja.

“Primeiro eles precisam concluir que a fé deles não os ajudou”, diz Beier. “Quem pode falar abertamente sobre suas inclinações quando até mesmo a fantasia sexual é considerada um pecado?”

Mas a prevenção é mais importante do que nunca na Igreja, diz Beier, porque “as ordens têm um apelo particularmente forte para pessoas com preferências pedófilas”.

Beier, que está convencido de que os padres podem ser ajudados, ofereceu seu apoio ao Vaticano em uma carta ao papa Bento 16, no final de 2008. Sua experiência clínica, ele escreveu ao Santo Padre, pode ser “de grande benefício para os membros afetados do clero”.

Surpreendentemente, o Vaticano respondeu à carta de Beier. “Em nome da Santa Sé, eu desejo agradecer por sua preocupação com o bem-estar das crianças e aos seus esforços para fornecer a assistência apropriada aos afetados”, disse um representante do Secretariado de Estado do Vaticano. Os comentários de Beier, ele acrescentou, seriam “cuidadosamente considerados e encaminhados às autoridades apropriadas”.

Um ponto de virada? Dificilmente. A carta de Beier provavelmente foi parar nos arquivos secretos da Cúria, juntamente com os muitos registros dos procedimentos internos da Igreja.

Fonte: Der Spiegel – Alemanha

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