Enquanto pilota um carro automático, Roseli Fischmann explica como conduz sua vida: com teoria e prática juntas, sem o revezamento entre uma e outra concebido pelo filósofo Gilles Deleuze, porque há uma pancada de muros a enfrentar.

Um deles é o debate acerca do Estado laico, sobre o qual escreveu um livro de bolso para a coleção Memo, do Memorial da América Latina, lançado neste ano. Um troco diante de uma carreira que inclui coordenar a área de Filosofia e Educação da pós em Educação da USP, comanda o grupo de pesquisa do CNPq “Discriminação, Preconceito, Estigma” e ter redigido o conteúdo do tema transversal Pluralidade Cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Quando se anuncia, como nessa semana, que escolas confessionais estão adotando o criacionismo em aulas de ciências, Roseli aciona o pisca-alerta, apesar de o assunto não lhe ser tão novo assim. Em 2004, para citar um exemplo, a Secretaria de Educação do Rio definiu que o criacionismo seria discutido de forma “superficial” nas escolas públicas estaduais. Outros Estados tornaram o ensino religioso obrigatório nas mesmas escolas públicas, não necessariamente com essa “superficialidade”, mas sempre contra a Constituição, como ela insiste em lembrar. Não fosse ilegal, seria improdutivo. Para Sueli, religião e ciência são como água e óleo: operam com lógicas impossíveis de se misturar. “Ninguém sai ganhando porque os cientistas podem pensar que são deuses, e quem fala de Deus pode pensar que é cientista.” Abaixo, Roseli desenvolve sua teoria sobre como essa história pode ou não evoluir.

Falíveis e mortais

“Levar o criacionismo para as aulas de ciências misturado aos conceitos da teoria evolucionista é uma distorção. Não dá para confundir as lógicas. O campo da ciência não é o da salvação, nem o da iluminação, nem o do ser infalível. Ele tem uma marca: é produzido por seres humanos, num acúmulo de conhecimento histórico, e não de forma dogmática, de uma vez para sempre, fruto da revelação. Somos falíveis e mortais. Ao ensinar ciências, os professores podem inclusive dizer às crianças: “Isto é fruto da construção humana, e você pode ser parte dessa construção”. Assim se desenvolve nos alunos a possibilidade de questionar, e uma boa dúvida é a pérola do mundo científico. Se, do ponto de vista religioso, existe alguém infalível, isso é para as pessoas que acreditam. Quem acreditar será respeitado por isso, mas não se pode querer que todo o mundo esteja dentro dessa lógica. Ninguém, enfim, ganha misturando as duas frentes porque os cientistas podem pensar que são deuses, e quem fala de Deus pode pensar que é cientista.

O direito à ciência

“Vale lembrar que a Constituição estabelece em seu artigo 23, como competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência”. O item primeiro do artigo 27 da Declaração dos Direitos Humanos também afirma que “todo ser humano tem o direito de participar do processo científico e de seus benefícios”. O mesmo artigo trata ainda da propriedade intelectual. Escrita há 60 anos, a declaração já estava preocupada tanto com aquele que cria, descobre e investiga quanto com o benefício social da ciência. Então voltamos à imposição do criacionismo de algumas escolas no currículo de ciências. Não oferecer o conhecimento científico é sonegar esse direito às crianças e aos adolescentes.

Sem propaganda enganosa

“A legislação no Brasil ampara a abertura e o funcionamento de escolas com identidade religiosa definida, e não acho isso ruim. Vivemos uma pluralidade no Brasil. Ruim seria imaginar todo mundo obrigado à religião ou todo mundo obrigado à não-religião. É um direito de escolha dos pais matricular os filhos em colégios batistas, presbiterianos, católicos, judaicos, islâmicos. Só que isso significa uma coisa: que valores serão passados. Não há propaganda enganosa nesse sentido. E os colégios não passarão valores só por meio das aulas, até porque, na escola confessional, a parte verbal não é a principal forma de transmitir os princípios religiosos. Existem as normas, a convivência, os uniformes, a escolha dos professores, os símbolos pelas paredes. Como aquilo é um espaço privado, seria incoerente lutar contra esses símbolos ou contra uma reza antes da aula, por exemplo. Se os pais não querem aquilo, devem procurar outra instituição. O que não pode ser feito é que, em nome da escolha dos pais, a escola extravase esses valores além da aula de religião, pois ela desempenha uma função social. Essa escola passou por um processo de autorização, submete-se a uma supervisão e, portanto, deve estar ajustada às normas vigentes. Ou seja, precisa ficar muito claro qual é o núcleo de estudo da parte científica, qual é o núcleo da parte religiosa – e isso para o bem da escola, dos alunos, da ciência e da religião.

Já na escola pública…

“O debate sobre o ensino religioso nas escolas públicas é extremamente polêmico, embora a letra da Constituição seja muito clara: ele é facultativo. Facultativo para o aluno seria a população fazer uma escolha, mas, em primeiro lugar, os pais não podem decidir se desejam isso ou não. Daí o professor ministra a aula quando quiser, do jeito que quiser e segundo a própria fé. Ele não diz às crianças: “Vou falar sobre religião, saiam da sala se quiserem”. Claro que haverá boas intenções, e todo professor é bem-intencionado, porém vai passar uma série de conhecimentos do ponto de vista dele. Outra questão é o cristianismo como única possibilidade, algo compulsório, com as crianças batendo o pé em casa que precisam rezar o Pai-Nosso antes da refeição porque a professora mandou. Dizem que um pouco de oração não faz mal a ninguém. Só que dentro da escola pública faz, sim. Eis o lugar onde a criança vai aprender a respeitar o público, onde dizemos ao mundo que tipo de sociedade nós queremos, e ali a criança não pode sofrer preconceito. Algum tempo atrás, investigamos uma escola que classificava o candomblé como folclore. Outras tratavam o judaísmo e o budismo como lenda ou mito. Do ponto de vista antropológico é uma coisa, mas uma criança de 6, 7 anos não está estudando antropologia. Então, se não há como fazer bem-feito, e não há porque as pessoas não têm formação, é melhor deixar isso para as famílias e as comunidades.

Inconstitucional

“Nos diferentes Estados, você tem as mais diversas situações. Alguns transformaram o ensino religioso em obrigatório, o que é inconstitucional. Outros o tornaram compulsório no ensino médio, o que também não pode. Estão sendo criando grupos de interesses, associações de professores de religião. No Rio de Janeiro são fortíssimos, em Santa Catarina também. Todos persistem em situação irregular, pois o governo não poderia contratá-los. Diz um artigo da Constituição que é vedado ao Estado colaborar com qualquer religião. Como essas escolas são supervisionadas pela Secretaria de Educação, ela não poderia fechar os olhos para isso, mas fecha. Há outra situação muito séria acontecendo: professores dando aula de ensino religioso dizendo que aquilo que fazem não é religião, mas área de conhecimento, o que é um absurdo. Nessa área, a pessoa é capaz de falar daquilo que crê ou não crê. Se houver um bom curso de história, naturalmente virá à tona a história das religiões, não tem jeito. Agora, se não houver, e dependendo do autor da versão, pode-se esperar muito preconceito.

Dogmas, não. paradigmas

“Não digo que a ciência seja um campo sem problemas. Ao contrário. Os debates são absolutamente ferozes. Thomas Kuhn, no livro A Estrutura das Revoluções Científicas, coloca que a ciência se constrói historicamente por paradigmas. Com o tempo surgem novas idéias, novas propostas, que vão corroendo essa estrutura até que surja um novo modelo. Aquele vigente nem sempre é tolerante para com as visões mais recentes. O que Kuhn diz é que a classe científica, que justamente por precisar da transformação deveria ser a mais aberta a mudanças, se manifesta muitas vezes resistente. Há egos, interesses financeiros pesados, falta de ética… Mas são as novidades que, em geral, promovem o avanço científico. É claro que nem todo incompreendido é portador de uma novidade. Às vezes o incompreendido realmente não está falando nada. De qualquer forma, precisa dar satisfação aos seus pares, eles o apertam, lhe põe questões. Agora, se você me perguntar se a atual estrutura de avaliações está sendo benéfica para a ciência, eu diria que não. Está muito formal, publica artigos apenas dentro de determinadas revistas. Kuhn é crítico: diz que muitas vezes essas publicações se remetem a grupos e fica difícil você circular ali dentro. Continua impiedoso quando lembra que, assim que a novidade se impõe, a primeira coisa que o grupo antigo faz é dizer que pertenceu ao novo desde criancinha. Muitas vezes quem lutou para implantar a novidade perde seu valor. Que nós, seres humanos, somos complexos para mudar, nós somos. Mas esse é o tempero humano da ciência.

Multiversidade

“Falando não de heresias, mas de intolerâncias no mundo científico, Norberto Bobbio citou o seguinte: em vez de trabalhar para a idéia de universo, devemos lutar pelo multiverso. Nesse sentido, inclusive, a expressão universidade não seria a ideal… Precisamos de outros olhares para poder enxergar o mesmo fenômeno. Ou seja, a nossa visão sempre será limitada. Hanna Arendt, num ensaio sobre amizade, ainda diz que a base da democracia não é a fraternidade. A fraternidade tem afeto demais. A base da democracia é a amizade, no sentido de que posso chegar para um amigo e dizer: “Esta é a minha versão”, enquanto o outro rebaterá: “E esta é a minha”, sem que ninguém se mate por isso. A idéia de comunidade científica é importante, uma comunidade de valores em busca do aperfeiçoamento do saber humano. O que justifica que uma pessoa oriente uma dissertação, uma tese? É a continuidade. Isso pode, inclusive, ser dito pelo professor nas aulas de ciências desde muito cedo. As histórias das descobertas são encantadoras. Não é só o lado anedótico da maçã na cabeça de Newton nem de Arquimedes gritando “Eureca!” na banheira, muito menos de cientistas aloprados, mas narrações de luta de pessoas com família, contas a pagar, problemas de saúde, sonhos e talvez uma religião. Ninguém pode ser acusado de incoerência se for um grande cientista e um crente, seja de qual doutrina for. É um direito dessa pessoa.

Design inteligente

“Da mesma forma, uma religião não precisa ser racional. Até pode dar contribuições importantes nesse campo, como a criação de universidades. Mas, no caso que motivou nossa conversa, do criacionismo nas aulas de ciências, parece inveja de irmão mais velho, que criou os irmãos mais novos porque eram órfãos, mas que não admite que esses mais novos saiam de casa. Eles já saíram faz tempo. Não adianta querer que voltem. As religiões tendem a tomar a rédea da vida da sociedade tanto por uma visão controladora, quanto por medo de serem banidas da cena pública pela secularização. A secularização veio e ficou, mas as religiões não vão ser banidas. Se tiverem confiança na sua mensagem e na possibilidade de atingir as pessoas, não precisam disso. Existe o medo infundado de que a ciência leve ao ateísmo, então as religiões começam a esgrimir com esses grupos usando expressões como design inteligente, que defende que a complexidade dos seres não pode ser fruto do acaso. Há outras críticas mais interessantes a fazer internamente do que criar um nome midiático como esse.”

Fonte: Estadão

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