“A religião não se opõe à modernidade”; “os seres humanos temos de encontrar o que nos une, e não o que nos separa”, declara o ex-presidente iraniano, Mohamed Khatami em entrevista ao jornal El Pais.

Já faz três anos que ele deixou a presidência do Irã, mas conserva os ares patrícios e o sorriso franco que lhe conquistaram o maior apoio popular a um político na República Islâmica. Agora, da Fundação para o Diálogo de Civilizações, Mohamed Khatami (nascido em Ardakan em 1943) continua defendendo suas convicções, apesar da mudança de rumo que deu o governo de seu país.

“A religião não se opõe à modernidade”; “os seres humanos temos de encontrar o que nos une, e não o que nos separa”, declara às vésperas do Primeiro Fórum da Aliança de Civilizações, do qual não poderá participar, apesar de ter plantado a semente e colaborado com os especialistas que o prepararam.

El País – Desde que o senhor deixou a presidência, trabalha para promover o diálogo de civilizações. Quais foram os resultados?
Mohamed Khatami –

Estabelecemos dois centros para promover esse diálogo, em Genebra e em Teerã. Além da repercussão em livros e periódicos, universidades do mundo todo organizam seminários e centros governamentais ou não-governamentais o promovem. Os primeiros-ministros da Espanha e da Turquia lançaram a Aliança de Civilizações, que se reunirá nos próximos dias em Madri. E nossa época precisa desse diálogo, porque o ser humano nunca sofreu tanto quanto agora. Só através do diálogo é possível alcançar um melhor entendimento e convivência.

Que peso o senhor atribui às idéias religiosas na configuração desses sistemas de valores compartilhados que chamamos de civilizações ou culturas?

As religiões são o elemento mais importante que há em cada cultura e em cada país, e por isso a interação entre elas é fundamental para resolver os problemas. Por exemplo, na Fundação, nos reunimos com representantes do Vaticano, da Catedral Nacional de Washington e da Universidade Islâmica de Al Abar para debater o caminho que é preciso seguir. Naturalmente, outras religiões poderão se incorporar. É muito importante esse diálogo inter-religioso.

Que os doutos das diversas religiões entrem em acordo parece mais simples do que estes o façam com os ateus. Não é maior o abismo entre os religiosos militantes (qualquer que seja seu credo) e os que defendem a laicidade?

Sem dúvida, mas o diálogo não termina nos religiosos. Temos muitos problemas humanitários nos quais podemos chegar a um acordo [com os ateus], como por exemplo a pobreza -o mais importante de todos- ou a grave crise do meio ambiente. Devemos pensar nas coisas que temos em comum como seres humanos, e não deixar que as diferenças nos separem.

No fundo dessas diferenças estão as relações entre religião e Estado. Na sua opinião, quais são as normas que as devem reger?

É um problema do mundo moderno. Na Idade Média não se planejava. Hoje triunfa a idéia de que se devem separar governo e religião. Diz-se com freqüência que a secularização acabou com as guerras de religião, mas houve outras, como a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, ou numerosos conflitos regionais que não têm nada a ver com religião. Não se pode afirmar que a separação de governo e religião põe fim a todos os problemas. Para que não haja guerra, o ser humano precisa deixar para trás seu egoísmo e não se considerar o centro do mundo. A religião não se opõe à liberdade, ao desenvolvimento e à democracia. Hoje não é mais como na Idade Média.

No Irã a combinação de instituições republicanas e religiosas produz alguns atritos. Chegarão a ser insustentáveis?

As bases da República Islâmica são republicanas, e o xiismo, o ramo do islã que seguimos no Irã, permite a interpretação, a “ijthad”. Isso evita que ambas as normas (islâmicas e republicanas) se contradigam. Na prática pode haver alguns problemas, mas se pode resolver e conseguir que a sociedade respeite as normas religiosas. O imã Khomeini disse que em uma sociedade islâmica se as normas religiosas contradizem a sociedade devem ser mudadas. Esse é um dos objetivos principais dos reformistas. Por isso não vejo contradição entre as duas.

O senhor considera que houve um recuo em parte do caminho que o senhor percorreu no Irã?

Devo explicar que o reformismo não começou nem terminou comigo. O reformismo iraniano tem um século de história. Faz cem anos que os iranianos querem três coisas: liberdade, independência e desenvolvimento. A revolução teve o mesmo objetivo. Por isso vai continuar. Mas a sociedade tem altos e baixos. Às vezes vai mais depressa e às vezes mais devagar, mas não deixa de avançar. As comparações sobre o governo atual e o que eu presidi deixo para a população.

O senhor pensa em ajudar a chapa reformista nas eleições legislativas de março?

Vou animá-los. Tive contatos com Rafsanjani, Karrubi e outros políticos. Temos muitas idéias em comum: o mais importante é nos coordenarmos e não deixarmos resquícios entre nós.

Há alguma diferença prática entre uma vitória dos reformistas ou dos conservadores?

Nossos objetivos não mudaram. Somos contra a intervenção estrangeira e acreditamos que é preciso defender a população. Pedimos mais liberdade e a defendemos; queremos melhorar nossas relações com outros países; melhorar nosso nível científico e tecnológico; conseguir o investimento estrangeiro que exige o desenvolvimento econômico; potencializar o setor privado… Confiamos no país. O programa que os reformistas divulgarão nos próximos dias incluirá esses pontos. E se chegarem ao poder os colocarão em prática. Esse é o nosso desejo. Quanto às comparações, deixo-as para os outros.

Fora do Irã, sua ambição nuclear causa preocupação. Durante seu mandato parecia que o entendimento era possível. Por que com seu sucessor mudou?

A crise explodiu quando eu era presidente. Acreditávamos na necessidade de ter energia nuclear (…) e como membros do Tratado de Não-Proliferação temos direito a ela. A preocupação das potências é compreensível, mas não suas formas. O Irã não tem armas nucleares, nem pretende ter. Já dissemos isso muitas vezes. Os inspetores da ONU o comprovaram e 16 organizações de inteligência dos EUA ratificaram…

Sim, mas dizem que o programa foi suspenso em 2003…

Nisso temos que corrigi-los. Antes de 2003 também não tínhamos um programa nuclear militar. Se há preocupação sobre armas atômicas, é preciso olhar para os que as possuem: nossos dois vizinhos do leste e Israel, que tem o maior arsenal de todos. Por que se pressiona o Irã por querer energia atômica? É uma questão política. Os EUA sabotaram a via amistosa. Para voltar a ela, se exige que todo o mundo reconheça o direito do Irã à energia nuclear e que o Irã dê garantias objetivas de que não desvia essa tecnologia para um programa militar. O Irã não mudou nesse sentido. Continua disposto a colaborar com outros países e com os inspetores. Confio que se chegará a uma solução pela via do diálogo. Um diálogo justo resolverá a tensão nuclear.

Fonte: El Pais

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