Vídeo entregue ao Ministério Público de São Paulo por um ex-voluntário da Igreja Universal mostra bispos da cúpula da entidade combinando a pregação para obter dízimos dos fiéis na crise econômica de 2008. Bispo Romualdo Panceiro (foto) diz que fiéis devem ser convencidos a “semear no altar’.
As gravações obtidas pela Folha de São Paulo, que oferecem rara visão sobre práticas da igreja, são de duas reuniões feitas por videoconferência entre líderes na sede, em São Paulo, e outros nos Estados. Foram coordenadas pelo bispo Romualdo Panceiro. Ele é considerado o segundo nome mais importante na igreja e foi apontado pelo bispo Edir Macedo como o seu sucessor. Romualdo, que coordenou a igreja no Brasil por mais de 12 anos, hoje vive em Buenos Aires e é responsável pela instituição na América Latina.
Um dos vídeos começa com Romualdo tirando uma espada da cintura e colocando-a sobre uma mesa. Durante 15 minutos, ele aparece orientando outros bispos graduados da igreja, como Clodomir Santos, a recorrerem a trechos da Bíblia nos quais se narra que o personagem Isaac, para escapar de uma grande fome, recebeu orientação divina para semear no solo ruim, e foi agraciado.
Romualdo orienta que “semear” é dar dinheiro à igreja. Ele diz que a igreja deveria perguntar aos fiéis se eles “acreditam mais” na crise ou em Deus.
“Por isso que a gente tem que perguntar [ao fiel]: “Você crê mais na crise ou você crê em Deus? Porque se você crê na crise, então você vai guardar para ela, ela vai pegar o que você tem. Sem que você saiba, quando você acordar, já era. Mas se você crê em Deus, você vai pegar o que a crise pode pegar e você vai colocar onde? […] Vai semear no altar!”, diz.
Romualdo indaga se Clodomir compreendeu: “É ou não é, Clodomir? Entendeu? […] Não é legal isso?”. Clodomir concorda: “Arrebenta. Tá ligado”.
Em seguida, o bispo diz que a ideia deve ser disseminada entre os pregadores: “Quer dizer, mais semente você vai ter, e quanto mais você tem semente, mais você vai colher. Pô, é muito forte, não é? Então, a gente tem que virar o jogo. Passar esse espírito para os pastores agora, como eu já passei”.
Ele se dirige ao bispo Sidney Marques, de Belo Horizonte: “Vai arrebentar, é muito forte! Hein, ô, Sidney?” “É o melhor investimento. O melhor investimento é esse”, responde Sidney. “Momento propício para o uso da fé”, arremata Romualdo.
O bispo diz que “combinou” com os pastores regionais de abrir três Bíblias, durante a oração do domingo, para “desafiar” as pessoas a trazerem dinheiro. “Eu combinei com os regionais aqui o seguinte, malandro. No domingo [esfrega as mãos], falar assim: “Olha, pessoal, em nome de Jesus, você que vai agora semear em cima dessa palavra aqui, com [R$] 10 mil para cima, vem aqui na frente, coloca, muito bem. Com [R$] 1.000 para cima, vem aqui pra frente. Com [R$] 500 para cima, vem aqui na frente, com [R$] 100 para cima, com dez reais para cima, com uma moeda para cima, coloca aqui”. Porque aí a gente não está, como se diz, estipulando. Porque foi na hora da oferta, um desafio.”
Vídeo de outra reunião indica que membros da igreja procuraram se aproximar de criminosos para evitar assaltos a carros-fortes que transportam dinheiro doado por fiéis.
Romualdo conta que um carro-forte com R$ 52 mil arrecadados pela igreja havia sido assaltado na Grande São Paulo. Ele atribui a autoria do crime a policiais e diz que pastores e bispos deveriam fazer contato com a criminalidade. “Nosso problema não é bandido, o nosso problema é polícia. Você não pode falar isso para ninguém. […] A não ser que, no Brasil, vocês não tenham feito o que nós fizemos aqui com os chefes da comunidade, de bandidos etc etc. Eu já falei para vocês fazerem. Não falei, Sidney? […] Todos já devem ter feito.”
Os vídeos foram entregues ao Ministério Público pelo ex-voluntário da Universal e ourives Eduardo Cândido da Silva. Os promotores Everton Luiz Zanella, Fernanda Narezi, Luiz Henrique Cardoso Dal Poz e Roberto Porto denunciaram, em agosto passado, Edir Macedo e mais nove membros da igreja sob acusação de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. A denúncia foi acolhida pelo juiz Glaucio Roberto Brittes, da 9ª Vara Criminal, o que deu origem a ação penal.
Segundo os promotores, recursos obtidos pela igreja de fiéis eram enviados ao exterior por meio de empresas de fachada e retornavam ao Brasil com aparência legal, para a compra de emissores de rádio e TV.
Os promotores também pediram à Justiça dos Estados Unidos, por meio um acordo de cooperação bilateral, a quebra de sigilo das contas bancárias utilizadas pela igreja e por empresas a ela relacionadas.
O ourives Silva obteve os CDs de um ex-pastor regional que hoje atua em outra igreja. A Folha conversou com o pastor que tinha as gravações. Ele pediu para não ter o nome publicado, mas confirmou a história.
O ourives move uma ação para o ressarcimento de R$ 232 mil referentes a supostos cheques sem fundos passados por pastores pela venda de joias.
Fiéis têm liberdade total para doar, diz igreja
A Igreja Universal do Reino de Deus informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que os fiéis têm “liberdade absoluta” e “da maneira que acharem correta” para fazer ou não doações financeiras à igreja.
“Como já explicado reiteradas vezes à Folha de S. Paulo, a Iurd é uma denominação evangélica neopentecostal que possui como doutrina a Teologia da Prosperidade. Ou seja, acredita na intervenção divina também para o bem-estar material do homem. O exercício de fé pregado por seus bispos e pastores tem como único fundamento a prática dos ensinamentos da Bíblia”, informou a igreja, em nota.
“Essa orientação teológica é transmitida diariamente a milhões de fiéis, em programas de TV, rádios e, ao vivo, nos milhares de templos da Iurd nos mais de 170 países em que está presente. A veracidade dessa doutrina pode ser facilmente comprovada pela Folha de S.Paulo numa conversa rápida com um dos milhões de membros da Iurd em todo mundo”, afirmou a igreja.
A respeito da menção feita pelo bispo Romualdo sobre aproximar-se de “bandidos”, a Iurd afirmou que “não há e nunca existiu qualquer orientação para que fossem feitos acordos com bandidos”. A igreja repeliu “interpretação equivocada de um trecho isolado do seu contexto geral”.
“Há, sim, diálogos permanentes de pastores e bispos com chefes de comunidades, como é feito por qualquer líder religioso presente em uma comunidade carente (seja ele evangélico, católico, espírita)”, informou a igreja.
“A gravação feita, se interpretada em sua totalidade, mostra a orientação dada aos bispos e pastores sobre os cuidados que devem ser tomados nas igrejas diante do alto índice de criminalidade que tem aumentado dia a dia nas grandes cidades, tomando como exemplo um roubo ocorrido em um dos templos da Iurd na cidade de Diadema.”
“O atendimento prestado pela Iurd, que preenche uma lacuna deixada pelo Estado, conta com o respeito inequívoco de diversos representantes da sociedade civil, incluindo os líderes comunitários mencionados pelo bispo Romualdo Panceiro. Existem centenas de gravações à disposição da Folha de S.Paulo comprovando “o que o bispo quer que seja feito em todo Brasil’: doações de alimentos, roupas, remédios, produtos de higiene, além de assistência jurídica em favelas, periferias e unidades do sistema penitenciário.”
Bispo é citado por Edir Macedo como sucessor
O bispo Romualdo Panceiro foi apontado como sucessor de Edir Macedo em entrevista concedida pelo líder da Universal para o livro “O Bispo”, a biografia autorizada de Macedo, escrita pelo jornalista Douglas Tavolaro, atual vice-presidente de jornalismo da Rede Record.
Na entrevista, Macedo chamou Romualdo de “o maior milagre” da Iurd. Romualdo foi cortador de cana e entrou na igreja em 1981.
“Se eu morrer hoje, o Romualdo assume tudo.E tenho certeza de que os demais bispos irão respeitá-lo como me respeitam hoje”, disse.
Em entrevista para o livro, Romualdo soube da afirmação de Macedo. Aí teria chorado. Em vídeo, Romualdo disse que seu pai “era poliglota do Estado-Maior das Forças Armadas”, mas, de repente, “tornou-se agressivo, nervoso”. O bispo contou que “chegou ao fundo do poço”. Passava “os finais de semana se drogando” e não tinha o que comer.
O livro diz que o bispo “é temido entre os pastores da igreja”, mas que, “horas depois de convívio, demonstra gentileza e bom humor”.
Fonte: Folha de São Paulo