O filme “Nada a Perder”, que é a cinebiografia do bispo Edir Macedo, teria se tornado a maior bilheteria nacional de todos os tempos, com 11,3 milhões de ingressos vendidos, devido a uma estratégia de distribuição de ingressos que inclui levar alunos de escolas públicas, em horário de aula, para assistir à obra —o que, segundo docentes, põe em xeque a laicidade do ensino.
A Universal nega a compra de entradas e atribui possíveis ações desse tipo à ação autônoma e voluntária de grupos de fiéis.
O filme sobre o líder e fundador da Igreja Universal, é sucesso, em parte, graças a táticas para inflar sua bilheteria. Uma delas já usada em “Os Dez Mandamentos” (2016), outra produção cara à Universal —e que era a recordista de ingressos até “Nada a Perder” tomar o seu lugar. Compravam-se ingressos em grande quantidade para distribui-los de graça a fiéis.
Como eles nem sempre iam, várias sessões, apesar de teoricamente esgotadas, passaram longe da lotação máxima.
A Universal afirma que não pode ser responsabilizada se grupos de voluntários desta e de outras igrejas adquirem entradas para que “o maior número de pessoas possível” tenha acesso “ao poder transformador” de suas obras.
Professor de arte na Escola Estadual Maria José, na Bela Vista (zona central de São Paulo), Marcelo Prudente conta ter levado sua turma do noturno para assistir a um documentário chamado “Superação” oferecido por uma suposta ONG. Chegando lá, “Nada a Perder” foi o que tiveram.
De brinde, relatou numa rede social, ganhavam “refrigerante e pipoca de R$ 5”.
“Sem entender, fui até a ‘querida’ organizadora, tão ‘gentil’ em nos convidar, para entender o que se passava”, escreveu no Facebook.
À Folha de São Paulo ele se diz “enganado”. “Ela me disse: ‘É um filme de superação, professor’. E eu, perplexo: ‘O quê? Esse é um filme de evangelização nojento, de um cara que não nos representa’.”
Quatro outros docentes disseram à reportagem que os colégios estaduais em que trabalham também ganharam ingressos.
Questionada, a Secretaria de Educação paulista disse, em nota, que orienta suas escolas a “avaliar o teor da atividade proposta por meio de parcerias”. Se as julgarem pertinentes, “os pais são comunicados e, em comum acordo, podem aceitar ou negar a atividade extracurricular”.
Incluir o filme no calendário escolar “é desrespeitar a pluralidade” religiosa, afirma a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo, Maria Izabel Noronha, na nota “Distribuir ingressos de ‘Nada a Perder’ nas escolas públicas é correto?”.
Referia-se à doação de entradas para a rede estadual. Em São José do Rio Preto (SP), Karina Caroline, vereadora do PRB (partido ligado à Universal), teria intervindo em prol do filme junto à diretoria regional de ensino. Questionada, a Secretaria de Educação não falou sobre o episódio.
Quando apresentada ao caso, a assessora de Caroline escreveu pelo WhatsApp: “Por gentileza, entre em contato com este telefone”. E anexou uma foto com contatos do departamento de comunicação da Universal.
Álvaro Dias Junior disse que na escola estadual onde dá aula, Dora Peretti, em Mogi das Cruzes (SP), a diretora, “estava obrigando os professores a irem [ao cinema], para acompanhar as crianças”.
Ele enviou à Folha de São Paulo documento em papel timbrado da escola dizendo que a ONG Força Jovem presenteou todos os alunos da escola com ingressos. Força Jovem é o nome de uma fundação da Universal.
Professor de filosofia na estadual Isabel Ferreira, de Mogi, Jonelson Ribeiro conta que um grupo entrou na sala de aula, apresentou-se como “um projeto de resgate a drogas” e levou alunos para uma sessão.
Em 2017, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou que o ensino confessional (isto é, ligado a uma crença específica) na rede pública não fere a Constituição.
Ainda assim, outras questões devem ser avaliadas no caso de “Nada a Perder”, diz Carlos Roberto Cury, professor da UFMG e especialista no tema do ensino laico. “É procedente a indução a um filme sobre um líder religioso ainda vivo? Isso pode conduzir a uma disputa religiosa ou recrutamento que não deve ter lugar na escola.”
Outro lado
Em nota, a Universal diz que “nunca comprou ingressos para ‘Nada a Perder’ ou qualquer outra obra”. O “questionamento da Folha de São Paulo sobre a oferta de ingressos a jovens carentes, estudantes de escolas públicas, promovida por grupos de voluntários da Universal e de outras denominações e religiões, carrega boa dose de preconceito”, segundo a igreja.
“Sim, voluntários da Força Jovem Universal, bem como de outros grupos da Universal e de diversas denominações e religiões se organizaram para que o maior número de pessoas possível tivesse acesso ao filme porque acreditam no poder transformador da mensagem que o longa carrega”, diz o comunicado.
A igreja diz que “Nada a Perder” não é uma produção feita por ela, e sim “parceria da tradicional Paris Filmes com a Record Filmes”. Edir Macedo é o dono da Record.
“E se fossem entradas para ‘Os Vingadores’ ou uma produção da Globo Filmes, a Folha de São Paulo ficaria tão incomodada?”
“Se a preocupação do jornal é com a laicidade, a Universal já se manifestou publicamente contra o ensino religioso confessional em estabelecimentos de ensino estatais, em audiência sobre o tema, no STF.”
Há três anos, um advogado da igreja sustentou na corte que o Estado não está pronto para assegurar “igualdade para todas as religiões e crenças” em aulas confessionais.
A pasta de Educação não se manifestou sobre casos específicos em escolas estaduais.
Fonte: Folha de São Paulo