A aprovação da nova BNCC (Base Nacional Comum Curricular) na sexta (15) reacendeu a polêmica entre especialistas ligados à educação sobre a obrigatoriedade da oferta de ensino religioso em escolas da rede pública — lembrando que fazer as aulas é facultativo a cada aluno, ou seja, faz quem quiser.
Na versão da Base aprovada pelo CNE, a partir de 2019, o ensino religioso será uma área do conhecimento, assim como matemática, linguagens, ciências humanas e ciências da natureza. Ainda há uma discussão se o ensino de religião deve ser mantido assim ou se vai entrar como um componente das ciências humanas, o que deverá ser definido até o início do ano que vem.
Para especialistas ouvidos pelo UOL, a base é positiva por tentar padronizar o currículo educacional no Brasil e pode ajudar na garantia do direito de aprendizagem a crianças e adolescentes, mas peca ao dar um peso maior ao ensino religioso.
Na avaliação de Maria do Pilar Lacerda, que foi secretária da Educação Básica do MEC (Ministério da Educação) entre 2007 e 2012 e hoje é diretora da Fundação SM Brasil, tornar o ensino religioso uma área do conhecimento foi um retrocesso.
“Além da questão de se é constitucional ou não, o ensino religioso fere a questão de a escola pública ser para todos. Quando se começa a inserir questões familiares ou práticas privadas à escola pública se mistura as coisas [o público e o privado]. A escola pública tem que ser marcadamente laica”, afirma.
Apesar de concordar com princípio de laicidade na escola pública, Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), faz a ressalva de que a medida não é nova e que existe uma tradição de ensino religioso nas escolas, com muitos Estados e municípios tendo em suas bases curriculares essa área do conhecimento.
“A religiosidade faz parte da nossa cultura, mas acreditamos que ela deve acontecer dentro das famílias e das comunidades religiosas e não na escola pública”, diz.
Para Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, tanto a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de autorizar o ensino confessional (isto é, que segue um credo) como a maneira como o CNE trabalhou a ideia de ensino religioso na base “batem de frente com o princípio da laicidade no país”.
Cara avalia ainda que categorizar o ensino religioso como uma área no currículo é algo “extremamente preocupante”. “Isso retira tempo da escola de trabalhar com questões mais significativas para o tripé da nossa Constituição Federal, como o preparo da pessoa para a cidadania e o mundo do trabalho”.
Já Olavo Nogueira Filho, diretor de políticas educacionais do Todos Pela Educação, pondera que o ensino religioso será trabalhado dentro dos componentes curriculares, sem ser vinculado a uma religião específica. Com isso, seriam vistos aspectos históricos e filosóficos das religiões, por exemplo.
“É possível alfabetizar até os 7 anos”
A base estipula ainda que as crianças devem saber ler e escrever até os 7 anos de idade. Hoje, elas devem estar alfabetizadas até os 8 (ou até o fim do 3º ano do ensino fundamental). Ao longo das discussões prévias à votação do documento, essa antecipação gerou atritos internos entre parte do CNE e o MEC.
Anna Helena Altenfelder acredita ser possível alfabetizar até os 7 anos. “Mais do que discutir a idade da criança, é preciso discutir o que eles vão aprender e de que maneira vão aprender. É possível que haja um trabalho pedagógico efetivo que possibilite adquirir essa base [alfabetização]. A preocupação que se tem, no entanto, é que isso não acirre a cultura da reprovação”, diz.
Tanto ela quanto Olavo Nogueira Filho acreditam que para que isso aconteça é preciso, ainda na educação infantil, investir no desenvolvimento pedagógico do aluno, além de dar prioridade para a formação dos docentes. “Aí é o ponto em que tudo volta para o professor: o mais importante são as políticas de apoio aos professores alfabetizadores que o país lançará”, explica Filho.
Já Maria do Pilar Lacerda faz parte do grupo de especialistas que taxam a mudança como “outro retrocesso”. “Significa que a criança que não se alfabetizar até o segundo ano vai poder ser reprovada e reprovação é uma porta aberta para evasão e exclusão”, diz.
Para ela, a medida nega a desigualdade social entre as famílias brasileiras. “Chega a ser perverso que crianças com mais problemas sociais, submetidas a mais injustiças, terão o mesmo tempo que crianças de classe média, criadas rodeadas de livros, para se alfabetizarem. É esconder que essa realidade existe”, acredita.
Em um país continental, vai dar para seguir a base?
Para os especialistas ouvidos pelo UOL, uma base curricular não se implementa sozinha num país grande com mais de 35,8 milhões de estudantes das redes pública e privada. As secretarias municipais e estaduais terão papel crucial para sua implementação e funcionamento a partir de 2019.
“As secretarias municipais e estaduais terão não que fiscalizar, mas apoiar as escolas. Se elas não tiverem apoio, desde formação dos professores, até apoio técnico, não teremos sucesso. É mais do que fiscalizar, eles terão que dar condições de trabalho, monitorar, observando dificuldades, desafios, para encontrar soluções”, afirma.
No entanto, para Lacerda, a forma como a BNCC foi aprovada – com pouca transparência e críticas de vários setores da educação – vai prejudicar a implementação dela no país. “O olhar conservador da BNCC vai fazer com que se perca o mais importante: a mobilização dos profissionais de educação do país para a sua implementação”, acredita. Lacerda diz ainda que é preciso garantir condições de trabalho, salário e carreira para que a implementação tenha sucesso.
Filho concorda que implementar será um desafio. Para ele, é “impossível” chegarmos a uma primeira edição da base curricular com um modelo “ideal, que contemple todas as visões dos segmentos da comunidade”. “É preciso entender que é um documento vivo, que pode mudar de acordo com o ponto de vista da sociedade”, defende.
Fonte: UOL