Circula pelas redes sociais um texto do site Brasil sem Medo com a afirmação de que a Assembleia Nacional da França – equivalente à Câmara dos Deputados brasileira – aprovou recentemente o aborto até os nove meses de gestação no país. Isso teria ocorrido em uma votação “na calada da noite”, que terminou com 60 parlamentares favoráveis e 37 contrários à mudança.
A publicação afirma ainda que a interrupção voluntária da gravidez poderá ocorrer “a qualquer momento”. A publicação sobre o assunto que mais viralizou recebeu 35 mil compartilhamentos no Facebook
A Agência Lupa e o jornal Estadão analisaram as informações em parceria com o Facebook.
A mudança aprovada pela Assembleia Nacional da França não altera a forma como o aborto ocorre no país, de acordo com a Agência Lupa.
Os deputados, na verdade, acrescentaram uma emenda a um projeto de lei sobre bioética – aprovado em segunda votação em 31 de julho –, estabelecendo uma previsão legal para a interrupção médica da gravidez em caso de sofrimento psicossocial da mulher. Isso, no entanto, já poderia servir como motivo para um aborto nos casos em que há risco para a mãe na gestação.
Na França, é permitida a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação desde 1975 – ou seja, as mulheres podem decidir abortar livremente, mas só durante esse período. Isso não foi modificado pelo projeto.
Já a interrupção médica da gravidez pode ocorrer até o final da gestação, ou seja, a qualquer momento durante os nove meses. Nesse casos, o aborto só pode ser realizado por motivo de saúde. Embora isso não esteja especificado, a saúde mental também está entre os aspectos que podem ser considerados. Uma equipe com quatro profissionais analisa se há grande risco para a saúde da mulher ou se o feto tem uma doença grave e incurável. A interrupção só vai ocorrer se, depois de avaliar o caso, esse grupo concluir que o procedimento é necessário e justificável.
O texto que tem sido criticado foi incluído pela emenda nº 524, proposta por deputados socialistas, e especifica o sofrimento psicossocial como um motivo para esse tipo de aborto. O trecho foi modificado da seguinte forma: “Quando a interrupção da gravidez é considerada sob o fundamento de que a continuação da gravidez põe seriamente em risco a saúde da mulher, perigo este que pode resultar de um sofrimento psicossocial, a equipe multiprofissional responsável pelo exame do pedido da mulher incluirá pelo menos quatro pessoas, que são um médico qualificado em obstetrícia e ginecologia, membro de um centro de diagnóstico pré-natal multidisciplinar, um médico especialista na condição em que a mulher é afetada, um médico ou parteira escolhida pela mulher e uma pessoa qualificada, sujeita ao sigilo profissional, que pode ser um assistente social ou um psicólogo”.
De acordo com a plataforma CheckNews, do jornal Libératíon, que fez uma checagem semelhante sobre esse tema, o Colégio Nacional de Ginecologistas e Obstetras Franceses define o sofrimento psicossocial como uma situação vivida por mulheres que sofreram violência, têm graves problemas psicológicos ou estão em condições precárias. Isso incluiria, por exemplo, vítimas de estupro que descobriram estar grávidas depois de ter passado o prazo legal de 12 semanas para interromper a gestação. Atualmente essas mulheres já podem pedir o aborto a uma junta médica, que pode ou não decidir realizá-lo.
O professor de ginecologia e obstetrícia Aubert Agostini, da Assistência Pública dos Hospitais de Marselha, afirmou ao Liberátion que atualmente há poucos pedidos desse tipo e poucas vezes o procedimento é realizado. “As mulheres muitas vezes ignoram isso, mas têm o direito de ter o seu processo examinado para interrupção médica da gravidez, mesmo após o prazo legal para o aborto. Isso não significa que o pedido será aceito”, disse o especialista. Segundo a área de Planejamento Familiar da França, cerca de dos 220.000 abortos legais, por volta de 7 mil interrupções médicas da gravidez ocorrem por ano, e 250 são por sofrimento psicossocial da mulher.
Perigos da interrupção médica da gravidez
O grupo pró-vida francês Alliance Vita destacou que o sofrimento psico-social é um “critério não verificável”, que abre a porta para as mulheres fazerem um aborto medicamentoso por qualquer motivo.
“Quem sabe que NUNCA foi possível verificar a angústia, que era o motivo anterior do aborto voluntário, entenderá onde está a armadilha”, escreveu Tugdual Derville, fundador da Alliance Vita.
Comentando os resultados da votação, o bispo Bernard Ginoux de Montauban tuitou que “esta é a maneira que as civilizações morrem e o gênio dos povos é aniquilado”, acrescentando que as gerações futuras “estão em grande perigo”.
Os bispos também expressaram sua consternação com o fato de que dos 577 deputados na Assembleia Nacional, pouco mais de 100 compareceram à votação de uma lei que sanciona as “grandes transgressões éticas” rejeitadas pela Assembleia Geral de Bioética.
Atualmente, cerca de 220.000 abortos legais acontecem todos os anos na França, mas muitos temem que o número aumente com as novas emendas que ampliariam o acesso a abortos tardios.
Houve outras objeções sobre a falta de tempo para avaliar adequadamente o projeto de lei. Apenas 25 horas foram dedicadas à discussão, enquanto a emenda sobre a procriação artificial foi introduzida algumas horas antes da votação de todo o texto.
O texto que foi aprovado ainda será votado novamente pelo Senado. Depois disso, a legislação deve ser apreciada na Assembleia Nacional mais uma vez e sancionada pelo presidente Emmanuel Macron para entrar em vigor.
Fonte: Agência Lupa, Estadão e Guia-me