Manifestações são organizadas por católicos integristas diante de salas de teatro que apresentam peças consideradas “heréticas”.
Cruzes, velas, fiéis ajoelhados, bandeiras da França, cânticos religiosos, invocação de Joana d’Arc e palavras de ordem contra a “cristianofobia”. Esses são os ingredientes das manifestações organizadas recentemente por católicos integristas diante de salas de teatro que apresentam peças consideradas “heréticas”.
Antes limitado a protestos esporádicos, nos últimos dois meses, o instituto Civitas, uma organização que se define como um “lobby político pela recristianização da França”, ganhou espaço na mídia com manifestações ostensivas em eventos culturais importantes suscitando o debate entre o direito de liberdade artística e o respeito da fé. Foram cerca de 60 protestos desde o começo do ano passado em toda a França.
No fim de outubro, durante as apresentações da peça “Sur le concept du visage du fils de Dieu” (“Sobre o conceito do rosto do filho de Deus”, em tradução livre), do italiano Romeo Castellucci, alguns manifestantes invadiram o palco do Théâtre de la Ville, em Paris, e tentaram agredir os atores. O motivo do protesto era a associação da figura de Cristo a cenas de escatologia durante o espetáculo.
Durante as semanas em que a peça esteve em cartaz, os manifestantes permaneceram na entrada do teatro rezando e vaiando quem comprava ingressos. A polícia teve que intervir em diversas ocasiões para impedir populares mais exaltados que ameaçavam atirar pedras no público.
Na última grande manifestação do grupo, no dia 11 de dezembro, uma centena de manifestantes marchou até a entrada do teatro du Rond-Point, perto da avenida dos Champs Elysées na capital francesa, para realizar uma vigília contra a peça “Golgota Picnic”, uma das principais atrações do Festival de Outono.
O espetáculo do argentino Rodrigo Garcia faz releitura de passagens dos Evangelhos. Numa das cenas mais criticadas pelos integristas católicos, um pianista nu interpreta uma adaptação de “As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz” do compositor Joseph Haydn (1732-1809).
Alain Escada, secretário-geral do Civitas, defende que toda expressão artística deveria ser submetida a valores cristãos. “Essas peças são uma mistura de perversões, de blasfêmias e de ataques gratuitos aos cristãos. Temos que nos defender. Na França, a laicidade tornou-se a religião do Estado e a cristianofobia é uma das suas faces mais visíveis”, disse à Folha.
O Civitas, segundo Escada, conta com cerca de 100 mil simpatizantes e utiliza redes sociais e a mobilização de jovens pela internet para organizar os protestos que reúnem as alas mais conservadoras do catolicismo francês.
Escada rejeita, porém, a denominação integrista. “Esse rótulo limita a nossa atuação. Defendemos valores tradicionais do catolicismo. Somos apenas indignados católicos.”
O Civitas, no entanto, tem forte elo com a Fraternidade Sacerdotal São Pio 10, movimento católico integrista criado pelo ex-arcebispo Marcel Lefebvre, como pode ser constatado no site da organização. Avesso à modernização litúrgica promovida pela Igreja Católica nos anos 60, Lefebvre foi suspenso de todas as suas atividades religiosas e excomungado. Continuou, porém, a realizar ritos não reconhecidos pelo Vaticano até a sua morte em 1991. Seus seguidores, ainda hoje, continuam a ministrar missas em latim na França.
[b]AMBIÇÕES POLÍTICAS
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Para além dos protestos e da mobilização pela internet, o Civitas, apontado como ultraminoritário por teólogos, espera ganhar peso no meio político. Jacques Rémiller, deputado do UMP, partido do presidente Nicolas Sarkozy, encaminhou um texto que condena a perseguição aos cristãos no Oriente Médio e ressalta a ameaça de atos contra os católicos na França.
O texto conseguiu angariar assinaturas favoráveis de 55 deputados, o que representa cerca de 10% da Assembleia. “Não tenho vergonha de dizer que cobramos o apoio dos deputados. Vamos, em breve, encaminhar para os parlamentares um projeto de lei para retirar todas as subvenções publicas de organizações culturais que programem eventos ofensivos à religião”, afirmou Escada.
Para Nicolas Senèze, jornalista do jornal católico “La Croix” e especialista do integrismo na França, ao associar a cristianofobia em países como o Iraque à situação na França, o Civitas conseguiu passar a mensagem de que a religião católica estava ameaçada conseguindo, com isso, atrair até alguns cristãos moderados para a sua causa. “Foi um golpe de mestre”, resumiu.
O instituto Civitas também planeja lançar candidatos às eleições municipais de 2014. Escada diz que incentiva candidaturas sem “vínculos políticos tradicionais”, mas, antes de assumir a secretaria geral do Civitas há dois anos, era ligado a um partido belga de extrema-direita.
[b]SOCIEDADE PURA
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Em uma carta aberta, o monsenhor Pascal Wintzer, do Observatorio da Fé e da Cultura da Conferência dos Bispos da França, relativizou o conteúdo das peças teatrais atacadas pelos integristas.
“Nas obras contemporâneas, seja nas artes plásticas seja na expressão teatral, os temas representados não são mais ‘religiosos’, não são mais cenas bíblicas. Elas expressam inquietudes diante de um mundo em desencanto”, escreveu. Para o bispo, a obsessão por uma sociedade cristã “pura” e “naturalmente cristã” defendida pelos integristas é um “sonho do qual é preciso acordar”.
As críticas ao movimento integrista também vêm do governo. O ministro da Cultura, Frédéric Mitterand, declarou em resposta aos protestos contra a peça “Golgota Picnic” que todos têm o direito de protestar, mas que “a liberdade de consciência e a laicidade devem ser protegidas a todo custo”.
[b]Fonte: Folha.com[/b]