O procurador da República Ailton Benedito se define como uma pessoa de opiniões que são “discrepantes do lugar comum”. Além de se manifestar quase diariamente pelas redes sociais, o atual chefe do Ministério Público Federal (MPF) em Goiás expressa suas convicções com frequência por meio das ações movidas a partir de seu gabinete.
Tornou-se, assim, uma voz polêmica entre os membros da instituição. Na visão de Benedito, “promotores públicos têm um viés de centro-esquerda”. “Tenho uma visão de mundo mais conservadora”, diz à BBC News Brasil.
O procurador mineiro, de 48 anos, já causou controvérsia, por exemplo, ao afirmar em um postagem no Twitter que o nazismo era um regime socialista. Também já abriu uma sindicância, em outra ocasião, para investigar o suposto “recrutamento ideológico” de menores brasileiros na Venezuela, que ele dizia ver em uma iniciativa comunitária local em um bairro popular venezuelano chamado Brasil.
Ele já quis suspender uma campanha publicitária sobre a Copa do Mundo no Brasil por discordar de que o evento traria os benefícios anunciados; pediu explicações à Universidade Federal de Goiás sobre banheiros supostamente unissex; e proibiu protestos políticos em prédios federais do Estado.
Seu alvo mais recente é o Conselho Federal de Psicologia (CFP). Benedito quer derrubar o veto do órgão a qualquer atitude de profissionais da área que se refira a transexuais e travestis como se estivessem doentes, prática que, na visão do CFP, leva à “patologização” dessas pessoas. Publicado em janeiro, o documento também proíbe a participação de psicólogos em “terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero”.
Na opinião de Benedito, a proibição do CFP viola o livre exercício da profissão de psicólogo, um direito fundamental previsto na Constituição. “Não cabe ao conselho determinar o que é doença ou impor censura prévia a atuação de psicólogos em eventos de natureza científica ou de comunicação que tratem do tema”, afirma.
“Acredito que existe um lobby transgênero em instituições da sociedade, sobretudo voltado à formulação de políticas públicas. Para mim, é inconcebível que, pelo fato de se declarar transgênero, uma pessoa possa usufruir de direitos em condição privilegiada.”
Benedito também argumenta que a resolução vai contra o direito dos pacientes de buscar assistência psicológica, além de impedir o desenvolvimento científico na área caso as pesquisas não sejam “do agrado de determinadas visões postas no conselho”.
“Uma pessoa pode ser hétero e não conviver bem com sua condição e precisar de assistência psicológica. Isso pode acontecer com qualquer ser humano, mas, como está na resolução, qualquer assistência oferecida pode ser interpretada como uma violação, mesmo que seja para que se conviva melhor com a própria condição”, defende Benedito.
A princípio, a ação ajuizada pelo promotor na 4ª Vara da Justiça Federal foi recusada. O mérito da questão não foi julgado – o juiz entendeu que não cabia uma ação civil pública em primeira instância para julgar uma resolução de um órgão federal. Agora, Benedito recorre ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
O CFP refuta as acusações do procurador. Pedro Paulo Bicalho, diretor do conselho e professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, considera a ação movida por Benedito um “grande equívoco” e diz que a resolução reconhece a possibilidade de alguém se identificar com um gênero diferente, algo “considerado válido pela ciência”.
“Nossa resolução é baseada em uma série de evidências científicas, construídas ao longo dos anos, de que a transexualidade é uma identidade como qualquer outra. E que é legítimo que uma pessoa queira viver com um gênero diferente do que nasceu”, afirma Bicalho.
“Queremos justamente prestar atendimento a essas pessoas para que elas possam ter uma convivência social. O que a resolução impede é que psicólogos tratem essa condição como doença e apliquem terapias de reversão. Se não é doença, não há o que ser revertido.”
A posição está alinhada ao entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em sua nova classificação de doenças, divulgada no mês passado, deixou de tratar a transgeneridade como um transtorno mental. “Não podemos reconhecer o charlatanismo como uma prática profissional”, diz Bicalho sobre os que oferecem “reversão” ou “cura”.
“Temos que proteger a população daqueles que, em nome da ciência, têm condutas que não são aprovadas pela própria ciência.”
Contra a ‘ideologia de gênero’
Benedito, por outro lado, argumenta que a postura do CFP torna impossível debater ou questionar a situação de transgêneros “se não for para referendar a ideia de que não se pode ter um conflito interior por sua condição”.
“Isso é muito comum hoje em tudo que diz respeito à ideologia de gênero que está sendo imposta nas instituições públicas”, diz o procurador, usando um termo empregado por críticos a uma corrente de pensamento que defende que o gênero de uma pessoa é construído ao longo de sua vida e não está, necessariamente, vinculado ao sexo biológico.
Não é a primeira vez que Benedito faz críticas ligadas a esse tema. Em uma dos suas postagens no Twitter, publicada em junho, ele diz: “Adultos que não sabem o que são nem o que desejam ser acharam a ideologia de gênero para solucionar seus problemas de identidade: usam o Estado para impor a desintegração do Ser como modelo para crianças e adolescentes”.
Em outra postagem, diz que “ainda se chegará ao ponto de a ‘orientação sexual’ dissonante da biologia ser usada como excludente penal. Por exemplo, se um homem, alegando que se sente uma ‘boneca de 10 aninhos’, mantiver uma relação sexual com criança de 10 anos e alegar que ‘boneca’ não pratica estupro”.
O procurador cita como exemplo de privilégios a transgêneros a permissão para que, ao serem presas, travestis e mulheres transsexuais possam ficar em alas femininas e a criação de cotas para transgêneros em cursos de pós-graduação da Universidade Federal de Cariri, no Ceará.
Também já criticou a autorização de que essas pessoas possam usar em documentos um novo nome, condizente com o gênero com o qual se identificam.
“É problemático que grupos sociais pouco representativos gerem obrigações para a sociedade. Uma coisa é a condição da pessoa para si mesma, outra é essa condição ser um pressuposto para exercício de direitos.”
Por sua vez, Bicalho afirma: “Falar que pessoas marginalizadas e estigmatizadas, que são expulsas da escola e não são absorvidas pelo mercado de trabalho e têm uma expectativa de vida de 35 anos, desfrutam de privilégios é uma piada de extremo mau gosto”.
‘Cidadão de bem’
O procurador é bastante ativo na rede social: já publicou mais de 52,2 mil tuítes em sete anos, cerca de 20 por dia.
Ali, ele se apresenta aos seus 11,4 mil seguidores como um “cidadão de bem”. Seu perfil é ilustrado pela imagem de uma grande cruz de madeira em meio a nuvens e raios de sol. Logo abaixo de seu nome, vem a frase: “Yahveh é meu pastor, nada me falta”.
Benedito diz ser um católico conservador. “No sentido antirrevolucionário da expressão”, explica.
“Entendo que a sociedade é uma construção baseada em uma tradição milenar e na evolução dos valores e das relações sociais. Não há como refundá-la a partir do zero, criar um homem novo a partir da cabeça de alguém.”
Um dos alvos mais frequentes das críticas do procurador são os “militantes esquerdistas” e “esquerdopatas”, além dos “bandidólatras e democidas”.
É também, nas redes sociais, um defensor do projeto Escola Sem Partido, proposta de lei que busca combater a “contaminação político-ideológica das escolas brasileiras” ao vedar que professores “promovam preferências religiosas, morais e políticas” em sala de aula.
“Quando critico os defensores dos direitos humanos, não nego sua existência, mas falo contra uma opção no Brasil pela defesa intransigente dos bandidos como vítimas da sociedade, enquanto as vítimas reais são esquecidas”, diz o procurador, que é crítico ao Estatuto do Desarmamento.
“‘Nunca antes na história deste país’ os bandidos conseguiram matar mais de 60 mil brasileiros/ano. Só agora sob o Estatuto do Desarmamento”, disse em uma postagem.
Aborto e castração química
Questionado sobre suas ações como procurador serem influenciadas por seus valores e fé, Benedito diz que não pode ser “hipócrita”. “Não vou dizer que não orienta, mas minha atuação profissional é pautada pelo defesa à vida, liberdade, propriedade e segurança”, diz.
“Se esses valores e direitos fundamentais combinam com minha pauta conservadora, muito bem, mas eles estão previstos na Constituição. Enquanto estiverem lá, eu os defenderei.”
Entre as outras bandeiras que defende em suas postagens, Benedito diz que gostaria de ver a castração química aplicada em casos de estupro, mas que a lei não permite o uso de penas corporais para crimes.
Também é contra o casamento gay, por não estar previsto na Constituição, e se opõe à criação de uma lei contra a homofobia. “Esse termo pode ser usado de forma ampla para perseguições indevidas ao sujeito que seja homofóbico”, justifica.
“Não se pode discriminar uma pessoa por sua condição sexual, mas uma pessoa tem o direito de ser homofóbica. A lei não pode punir preconceito, amor ou ódio, só atos e condutas que violem os direitos dos outros.”
Fonte: BBC Brasil