Falando ao país na noite em que assegurou a indicação democrata, Barack Obama rejeitou o tipo de política que “usa religião como uma cunha e patriotismo como uma clava”. Suas palavras acentuam a forma como a fé novamente se tornou uma força divisora na política americana.

Com um foco intenso em pregadores controversos e em casos onde a doutrina religiosa parece dividir os eleitores, mais notadamente nas questões de aborto e homossexualidade, nós perdemos de vista as formas com que o retorno aos valores fundadores dos Estados Unidos -incluindo a fé- podem novamente nos unir diante de problemas comuns.

Os fundadores dos Estados Unidos acreditavam que a fé religiosa era compatível com outros valores estimados: liberdade, democracia, justiça, igualdade, tolerância e humildade.

De fato, humildade e fé caminhavam de mãos dadas; homens como George Washington e Thomas Jefferson eram altamente conscientes de seu pequeno papel no mundo diante de uma força maior. E com a mesma freqüência com que políticos invocam o discurso “cidade na colina” do governador Winthrop aos puritanos, eles esquecem a última frase de Winthrop: faça justiça, ame a piedade e caminhe humildemente com seu Deus.

Para muitas pessoas de fé naquela época e agora, a justiça terrena era e é apenas uma imitação pálida da justiça divina. Mas de fato é uma imitação, no sentido mais sincero. A revelação divina vem com um código de conduta para a vida terrena.

Algumas pessoas de fé cristã tentam entender o que devem fazer se fazendo a pergunta: “O que Jesus faria?” Esta não é necessariamente uma abordagem ruim, mas não é o que temos aqui. A tradição judaico-cristã que serve de base e inspira a experiência americana ensina a virtude da participação em uma comunidade de mentalidade semelhante de boa vontade, uma que estende a oferta de participação a outros dispostos a agir de acordo com seus princípios.

Mas quais são esses princípios? Nós devemos nos preocupar não apenas com nós mesmos, mas com os outros. Nós devemos oferecer ajuda aos menos afortunados. Nós não devemos ser tão impiedosos em nossos julgamentos a ponto de ignorarmos nossas próprias falhas, que temos que nos esforçar para consertar.

Nós devemos tratar os outros da forma como desejamos ser tratados se estivéssemos no lugar deles. Nós devemos considerar o valor que damos a nossas próprias vidas como sendo o valor das vidas dos outros em nossa comunidade. Nós devemos estar dispostos a fazer sacrifícios pessoais em prol do bem desta comunidade de boa vontade e da extensão dos benefícios que proporciona aos outros.

Estes temas são recorrentes em algumas das passagens mais profundas do Velho e Novo Testamento. O fato do primeiro capítulo do Gênesis descrever os seres humanos como tendo sido criados à imagem de Deus há muito é visto como impondo obrigações às pessoas, não apenas em relação ao seu criador, mas também em relação ao próximo.

Nós precisamos reconhecer as formas com que o cristianismo e outras tradições religiosas apóiam ou mesmo governam estes princípios modernos de liberdade, justiça, tolerância e igualdade. Estes valores são as fundações de uma sociedade baseada na busca do bem comum para todos os membros da comunidade -tanto amigos quanto estranhos.

As pessoas religiosas podem agir de acordo com estes princípios pelo desejo de uma recompensa celestial (ou temor de punição divina). Mas também há recompensa neste mundo quando as pessoas agem de acordo com estes princípios. É o estabelecimento de sociedades e instituições políticas baseadas não no princípio de que o forte deve mandar no fraco em benefício do forte, mas no respeito que as pessoas têm pelo próximo quando reconhecem os direitos do outros e as obrigações em relação aos outros que os acompanham.

Um aspecto da genialidade destes arranjos é que eles estendem uma mão de boas-vindas para aqueles de tradições religiosas diferentes ou de nenhuma para se juntarem à comunidade de boa-vontade, o que não exige a adoção da tradição religiosa da qual deriva, mas sim a aceitação das obrigações em relação ao próximo.

Este entendimento da fé unifica em vez de dividir. Ele abre espaço para aqueles de muitas fés e para aqueles de nenhuma fé se unirem em torno de princípios morais de conduta tanto em casa quanto no exterior. Estes princípios não são generalizações abstratas, mas apontam para certas posições muito específicas de política externa. Eles exigem, por exemplo, que os Estados Unidos façam tudo o que puderem para impedir a matança em Darfur -o deslocamento, estupro e massacre de seres humanos por forças apoiadas pelo seu próprio governo.

Eles exigem um esforço determinado e incansável para buscar um mundo sem armas nucleares, livre da possibilidade horrível da incineração de milhões de seres humanos em um ataque nuclear.

E eles exigem uma reação à possibilidade de uma elevação do nível dos mares inundar ilhas e países do outro lado do mundo como sendo um problema em comum, da mesma forma como aceitamos nossa responsabilidade pelo mundo que poderemos legar aos nossos próprios filhos.

Nem sempre será fácil agir com base nestes princípios. Eles às vezes entram em conflito com outras considerações importantes em um mundo onde o poder político continua sendo um fato da vida.

Mas nós nunca devemos abandoná-los, e nunca devemos nos perguntar quão pouco precisamos fazer visando dizer que agimos de acordo com eles ou os levamos em consideração. Em vez disso, nós devemos nos perguntar quão mais podemos fazer. Enquanto existir uma lacuna entre o que fizemos e o que permanece possível, nós devemos agir para preenchê-la.

As pessoas também continuarão discordando em torno dos melhores métodos para buscar estes princípios, em termo de políticas, personalidade e partido político. Nós mesmos não votaremos nos mesmos candidatos em novembro.

A história do mundo está repleta de assassinatos inspirados pela fé; assim como nossa atual política americana freqüentemente coloca os devotos de uma fé contra os de outra em um combate menos sangrento, mas não menos ardoroso. Nós todos já ouvimos retóricas divisoras vindas do púlpito e não podemos deixar de notar a arrogância que freqüentemente parece estar por trás delas, em vez da humildade apropriada.

Mas este certamente não é o único tipo de fé. A fé de nossos fundadores, e a genialidade do sistema que a fé deles ajudou a inspirar, pode também elaborar uma política de propósito moral comum. Está aberto a todos nós escolher qual é o melhor caminho.

Fonte: International Herald Tribune

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