A Turquia, a primeira república secular com população de maioria islâmica, deverá em breve ter um presidente que reza em público e cuja mulher usa lenço na cabeça como manifestação de suas convicções religiosas.

Os secularistas anti-religiosos no mundo muçulmano vêem esse fato como uma ameaça ao laicismo da Turquia.

Mas também poderá ser uma oportunidade de definir o secularismo no mundo muçulmano como um sistema político que garanta a separação entre teologia e Estado, mais que como uma ideologia anti-religiosa.

Durante quase um século, as elites seculares dos países muçulmanos equipararam secularização com renúncia aos símbolos e práticas islâmicos. A rejeição da religião tradicional foi inicialmente uma reação às iniciativas de clérigos muçulmanos para aplicar o islamismo por lei.

Mas o secularismo radical dos regimes autoritários, como o do xá do Irã, contribuiu para a expansão do radicalismo islâmico. Os islâmicos retratam sua religião como sob perigo; a exclusão de muçulmanos praticantes da estrutura de poder na maioria dos países muçulmanos ajuda os islâmicos a reforçar esse argumento.

A ameaça ao secularismo no mundo muçulmano vem da intolerância religiosa, e não de atos individuais. A eleição na Turquia de um presidente muçulmano conservador não deve ser vista como um desvio de seus ideais seculares. É uma adoção necessária de um caminho diferente daquele do islã radical, assim como do secularismo radical.

O Partido Justiça e Desenvolvimento (conhecido por suas iniciais em turco, AK), liderado pelo primeiro-ministro Recip Tayyip Erdogan, ganhou as eleições parlamentares em julho com 47% do voto popular e uma clara maioria de assentos na Grande Assembléia Nacional. Foi um avanço significativo em relação aos 34% dos votos obtidos em 2002 – uma eleição que levou pela primeira vez ao poder o partido conservador com raízes islâmicas.

As eleições no mês passado foram convocadas mais cedo que o previsto por causa de uma votação presidencial inconclusiva em abril, quando o candidato do partido AK à presidência, o ministro das Relações Exteriores, Abdullah Gul, enfrentou severa oposição do establishment secular da Turquia liderado pelos militares. A eleição de Gul foi bloqueada por manobras técnicas apoiadas pelo presidente de saída e por generais do exército, apesar da maioria do partido AK no Parlamento.

Desta vez o partido indicou Gul novamente para presidente e, diante da recente vitória retumbante do partido, o exército não poderia bloquear esta eleição, a não ser por meio de um improvável golpe militar.

Embora o partido AK tenha saído de uma série de partidos islâmicos proibidos pelos tribunais turcos, ele se descreve como um partido conservador moderado, mais que islâmico. Ele não busca a aplicação da lei xariá, e seu desempenho no governo durante o primeiro mandato reforça suas afirmações.

Embora Erdogan e Gul sejam muçulmanos praticantes e ex-ativistas do movimento islâmico, seu primeiro mandato refletiu um esforço para se distanciar da política islâmica. Sob Erdogan a Turquia tentou a afiliação à União Européia, manteve laços estreitos com os EUA e Israel e atingiu novos níveis de prosperidade econômica.

O governo do partido AK não reduziu as liberdades civis e continua observando os preceitos básicos do secularismo, mantendo a religião fora de suas decisões políticas. No mundo pós-11 de Setembro, os partidos e líderes islâmicos de vários países se converteram imediatamente à moderação. Os críticos do partido AK insistem que ele só mudou estrategicamente e que voltará a exigir o regime da xariá quando tiver oportunidade.

Esses temores devem ser avaliados à luz das evidências disponíveis, e até agora estas favorecem as credenciais do AK como um partido religiosamente conservador que deseja operar dentro dos princípios amplos do secularismo.

Durante muito tempo o mundo muçulmano esteve polarizado entre secularistas, que querem ver todas as manifestações públicas da religião islâmica banidas de seus países, e islâmicos que insistem em reverter à teocracia obscurantista.

Essa polarização não pode ter fim sem que os secularistas tolerem a prática da religião e os islâmicos se afastem do islamismo radical para um campo intermediário onde os indivíduos possam ser islâmicos apesar de o Estado ser secular.

Como no Ocidente, os muçulmanos precisam fundir fé e esclarecimento, enquanto também aceitam os direitos dos não-muçulmanos.

Sob uma presidência de Gul, a Turquia esperançosamente continuará combinando tolerância e tradição. E isto abriria caminho para o secularismo no mundo islâmico que deseja proteger a liberdade individual e o pluralismo, em vez de se preocupar com debates sobre questões como lenços de cabeça.

Fonte: International Herald Tribune

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