O matemático americano, John Allen Paulos, 62 anos, usa as ferramentas de sua disciplina para mostrar onde fazem água os argumentos sobre a existência de Deus em seu recente livro de conteúdo ateu, Irreligion (Irreligião), lançado neste ano.
O matemático John Allen Paulos, 62 anos, entrou na recente onda de livros ateus com Irreligion (Irreligião), lançado neste ano. Leve, bem-humorado e breve, seu livro não mostra a acidez das demais obras desse filão, no qual pontificam descrentes raivosos como o biólogo Richard Dawkins e o jornalista Christopher Hitchens.
As pretensões de Irreligion não são muito diversas das dos livros anteriores de Paulos, todos devotados à sua disciplina. Professor da Universidade Temple, na Filadélfia, ele se esforça para ensinar a matemática como uma forma de pensamento, um molde rigoroso mas criativo para o exame do mundo. Irreligion é um livro devotado à lógica: Paulos analisa argumentos tradicionais sobre a existência de Deus e mostra onde fazem água. Autor de uma coluna em que examina aspectos matemáticos dos eventos do cotidiano no site da rede de televisão ABC, Paulos ganhou popularidade com Innumeracy (traduzido no Brasil como Analfabetismo em Matemática e Suas Conseqüências, em edição esgotada), livro em que alertava para as armadilhas da falta de familiaridade com números. Da Tailândia, onde leciona ocasionalmente, Paulos deu a seguinte entrevista a revista VEJA.
O que um matemático pode dizer sobre o ateísmo?
Examino os argumentos tradicionais em favor da existência de Deus, e não as conseqüências sociais da religião. Eu me abstenho de fazer comentários sarcásticos sobre a religião das pessoas. Busco, isso sim, demonstrar os furos lógicos nesses argumentos. Como matemático, estou acostumado a trabalhar com provas lógicas – a partir de determinadas premissas, derivamos certas conseqüências. A lógica tem de ser rigorosa. Os argumentos teológicos não seguem esse rigor. Eles pulam de A para B, mas há um grande abismo entre os dois termos.
Pascal e Leibniz, entre inúmeros grandes filósofos do passado, eram matemáticos e crentes.
Leibniz tinha uma concepção muito particular de Deus. Como ele, muitos dizem acreditar em Deus, mas aquilo em que crêem não seria chamado de Deus pelo cidadão comum. As leis impessoais do universo, a beleza do mundo natural – todas essas coisas já foram chamadas de Deus. Se você definir Deus assim, bem, então Deus existe, claro. Einstein costumava falar em Deus, de forma meio ambígua, e as pessoas religiosas gostam de citá-lo como exemplo de cientista crente. Mas, há pouco tempo, foi redescoberta uma carta em que ele ataca a religião como uma atividade infantil. A maioria das pessoas pensa em Deus como um ser onipotente, ou pelo menos muito poderoso, onisciente, e que tem algo a ver com a criação do universo. De resto, só porque você é um matemático de primeira ordem, isso não quer dizer que está dispensado de apresentar argumentos lógicos. O fato de um Leibniz ser religioso não prova nada a favor da religião.
Em geral, as pessoas não estão preocupadas com questões lógicas quando buscam uma religião. Elas procuram um certo sentido superior. Como o senhor responderia a essa necessidade?
Não há resposta para isso. Se alguém diz “eu acredito porque decidi acreditar”, não há muito que fazer. Você só pode apontar que não existem provas ou argumentos que sustentem essa crença. O fato, porém, é que as pessoas que acreditam quase sempre, em algum momento, recorrem a algum dos argumentos a favor da existência de Deus que eu critico no livro. Em geral, invocam a beleza da natureza como prova da existência de Deus. Outras apontam supostos milagres e coincidências e dizem que essas coisas não podem acontecer por acaso. E, nesse ponto, devemos apontar suas falhas lógicas.
É improvável que as pessoas deixem de acreditar, mesmo depois que seus argumentos são derrubados.
Sim, claro. Não tenho problemas com isso. É uma questão de escolha individual. Ninguém pode impingir a crença ou a descrença a outra pessoa. Mas há um certo perigo nessa atitude. Se alguém diz: “Isso é tão importante para mim que você não pode questionar, não pode perguntar sobre as minhas razões”, a crença se torna uma força bruta. Que, em algum momento, colide com outra força brutal. Nos Estados Unidos de hoje, com a ascensão da direita religiosa, tem havido essa afirmação da centralidade da fé. E, em geral, não se admite que ela seja discutida. Dizem que a religião está além da argumentação.
O tom de alguns novos ateus, especialmente Richard Dawkins e Christopher Hitchens, é muito agressivo. Há o risco de o ateísmo se tornar tão dogmático quanto a religião?
Há certo risco. Eu não me sinto confortável atacando a religião frontalmente. Não é o que faço. Parte de mim acredita que, se alguma coisa ajuda você a atravessar a noite, não é de todo má. É inegável que a religião ajuda muita gente. E talvez haja, sim, o risco de que você fala. No momento, porém, acho que ele é mínimo, e é bom que os ateus exponham seus pontos de vista em uma sociedade tão marcada pela religião. Há espaço para todos os tipos de ateísmo, do mais barulhento ao matemático, com um toque de humor, que eu pratico.
Seu livro foi resenhado de forma simpática por um pastor batista. Ele reclamava, no entanto, que o senhor tendia a pintar todos os cristãos como fanáticos. Críticos da religião como o senhor estariam perdendo de vista o fato de que a maioria dos fiéis é discreta e razoável, e não fundamentalista?
Recebi vários e-mails de leitores religiosos, que admitiram que os fiéis têm de se confrontar de algum modo com os argumentos que apresento. Eles recorrem a outra linha de argumentação: dizem que a religião é uma tradição, que une as pessoas, que lhes dá conforto, e é uma fonte de ideais elevados. Eu não discordo. O problema com os cristãos moderados é que eles fazem uma leitura seletiva da Bíblia: acreditam neste ou naquele ponto e discordam de outros. Mas como escolher os pontos da Bíblia que vale a pena sustentar e aqueles que devem ser rejeitados? Basicamente, essa escolha é feita com base em critérios seculares. A aceitação dos gays por algumas igrejas, por exemplo, não responde à tradição religiosa, mas a uma imposição dos valores seculares. Então, pergunto: por que não ser completamente secular?
Em algum sentido a tradição religiosa é positiva?
Não tenho nenhum problema com as narrativas, os mitos, as histórias ensinadas pela religião. A Bíblia é grande literatura. Meu problema é com o literalismo. Não se pode dizer que as coisas narradas na Bíblia ou em qualquer outro texto religioso são verdadeiras – pelo menos, não no sentido em que dizemos, por exemplo, que houve um acidente de carro na última segunda-feira às 2 da tarde. Vale notar que a discussão que proponho, sobre os argumentos a respeito da existência de Deus, passa um tanto ao largo das tradições religiosas. Mesmo que você consiga provar que estou errado – que existem, sim, bons argumentos para sustentar a existência de um Deus –, haveria um grande salto, um verdadeiro abismo, entre essa afirmação e a crença, por exemplo, na divindade de Jesus Cristo ou nas restrições alimentares que tantas religiões reforçam. Uma coisa não se segue diretamente a outra. A existência de Deus não justificaria esses mandamentos e restrições. Ou, para dizer o mesmo com uma pitada de sarcasmo, não há elo causal entre “Deus existe” e “é proibido comer batatinha frita nas sextas-feiras”.
Quanto respeito um ateu deve ter por uma religião?
Não acredito que você deva sair por aí insultando as pessoas, como Christopher Hitchens faz. Mas, em algumas situações, na companhia de pessoas religiosas, uma pergunta simples pode ser útil: “Você acredita mesmo nisso?”. É um modo de quebrar o encanto. Esse pode ser um benefício dessa onda de livros ateus: tornou mais aceitável fazer esse tipo de questionamento. Eu acho que há mais não-crentes – ateus, agnósticos etc. – do que se imagina. A maioria deles prefere ficar quieta. Há várias pesquisas que mostram que os americanos não confiam em ateus ou nunca votariam em um ateu para presidente. É provável que, por causa dessas coisas, as pessoas prefiram não anunciar seu ateísmo em sua comunidade. Mas é preciso lembrar que elas mentem em pesquisas de opinião. O mesmo acontece, aliás, em pesquisas sobre comportamento sexual – as pessoas não querem revelar sua intimidade.
Se as pessoas gostassem mais de matemática, gostariam menos de religião?
Se as pessoas gostassem mais de matemática, pensariam com mais rigor. Isso faria com que pusessem muitas de suas crenças em xeque.
Quais são as habilidades matemáticas de que uma pessoa precisa para sobreviver no mundo?
Muitas vezes, não é tanto o conhecimento técnico que faz falta. Aritmética e alguma álgebra servem para a maior parte das situações cotidianas. Mas as pessoas ainda carecem de uma certa habilidade para pensar em termos de lógica formal, para estimar quantidades e ter pelo menos um certo senso de probabilidades e estatística. Nas minhas aulas, por exemplo, proponho aos meus alunos que eles estimem quantos afinadores de piano existem na Filadélfia. Para chegar lá, eles têm de saber a população da Filadélfia, a porcentagem de casas com piano, a freqüência com que eles são afinados, quantos pianos um afinador consegue afinar em uma semana, e assim por diante. A maior parte dos números de que precisamos para fazer esse tipo de cálculo não é publicada, e temos de encontrar meios de estimá-los. Mas as pessoas muitas vezes não têm sequer uma noção dos números básicos que cercam sua vida – a população do país e da cidade onde vivem, por exemplo. É isso que chamo de “analfabetismo numérico”. Noções de grandeza também são estranhas para muita gente. Por exemplo, serão poucas as pessoas que sabem o que 1 milhão de segundos representa em dias. São cerca de onze dias e meio. E as pessoas também se surpreendem com a diferença entre o milhão e o bilhão, porque não têm noção da grandeza desses números – para chegar a 1 bilhão de segundos, são necessários quase 32 anos.
Que tipo de armadilha os números podem apresentar para quem não tem uma boa formação em matemática?
Precisão é um bom exemplo. Livros de receitas quase sempre trazem quantidades bastante grosseiras: duas ou três xícaras de farinha, uma colher de chá ou de sopa de açúcar, três ovos. E isso é suficiente para o cozinheiro conseguir um bom resultado. Mas, às vezes, a mesma receita informa, por exemplo, que uma fatia da torta terá 761 calorias. Não há como ser tão preciso. Um matemático, quando confrontado com números tão precisos, geralmente expressa ceticismo: “Como é que eles podem saber disso com tanta exatidão?”. As pessoas que não dominam os fundamentos da matemática, porém, tendem a ficar muito impressionadas: “Caramba, o cozinheiro que escreveu esse livro realmente sabe o que faz”. Há vários truquezinhos do gênero que os espertos usam para impressionar. Se as pessoas fossem mais expostas, desde a escola, a problemas matemáticos, passatempos, charadas, anedotas envolvendo números, seriam menos suscetíveis a esse tipo de enganação.
Probabilidade é outro campo minado. Pessoas que não tomam a mínima precaução quanto a problemas cardiovasculares morrem de medo de doenças exóticas, que têm muito menos probabilidade de atingi-las. Por que acontece isso?
Nós não evoluímos para entender a probabilidade. Se você me permite uma historinha, imagine um homem primitivo que vê um movimento suspeito em uma moita próxima, no meio da selva. Ele corre como um louco, com medo de um tigre. Se ficasse para calcular a probabilidade de ser um coelho, acabaria devorado pelo tigre. Nós não tomamos decisões em termos de probabilidades numéricas. Pensamos, isso sim, em termos de histórias, narrativas, imagens. Eventos que são mais vívidos ou incomuns têm mais impacto para nós do que aquilo que é familiar. Por isso às vezes nos preocupamos tanto com ameaças remotas.
Como transmitir a beleza que os matemáticos encontram nos números a pessoas que não gostam de matemática – especialmente crianças em idade escolar?
Jogos, quebra-cabeças e paradoxos ajudam a despertar a curiosidade. As pessoas às vezes acham que matemática se resume a fazer contas. Claro que fazer contas é fundamental, mas é preciso ir adiante. Se o ensino de literatura ao longo de doze anos de escola se resumisse à gramática e à análise sintática, seria surpreendente se alguém chegasse à faculdade com uma apreciação verdadeira pela literatura. Respeitadas as diferenças, é assim que o ensino de matemática ocorre nos dias de hoje: “Aqui estão 100 equações. Resolvam!”. E as pessoas tendem a achar que um aluno tem pendor para a matemática só porque consegue resolver esses problemas simples rapidamente. Seria como dizer: “Você datilografa muito bem. Poderia ser um poeta”.
Fonte: Revista Veja – Edição 2065