Ele foi criado pelas mãos do homem, mas a importância do Lago Qaraaoun, no Líbano, vai além de sua curta história.
O lago, no Vale do Bekaa, une comunidades religiosas com três diferentes visões ao seu redor, que convivem longe da crise política que ameaça jogar o país em outra guerra civil.
Não importa de que parte se chega à região sul do Bekaa, a vista para o lago costuma encantar qualquer visitante.
A função de unir três comunidades parece algo inusitado em um país à beira do abismo, onde as tensões vêm crescendo e ameaçam iniciar um conflito entre facções políticas pró e antigoverno.
Há nove cidades ao seu redor -três cristãs a oeste do lago, com três muçulmanas sunitas do lado oposto, no leste, e outras três xiitas localizadas mais ao sul. Estas comunidades conseguem conviver longe da pressão e crise do resto do país.
Vinhos
Distante 126 km da capital, Beirute, Qaraaoun tem 11 quilômetros quadrados e está 956 metros acima do nível do mar. Ele foi criado em 1959, quando o país construiu uma barragem no rio Litani para alimentar uma usina hidrelelétrica.
De lá para cá, o lago transformou-se num destino natural de turistas que visitam o Líbano. As opções vão desde pescas a passeios de barco ou esportes como jet-ski. Há restaurantes e hotéis e, na região, encontram-se diversos pomares, campos de cultivo e vinícolas, que produzem os melhores vinhos libaneses.
O lago não perde sua força e importância mesmo quando suas águas baixam, já que dificilmente chove no Líbano durante o verão.
Muitos da população local fugiram para outros países durante os anos da guerra civil (1975-1990), que matou cerca de 150 mil pessoas. Mas, ao final do conflito, alguns começaram a voltar para suas origens.
Kassem Yassine, 62 anos, viveu durante anos no Brasil, casou e teve seus filhos. Mas, nos anos 90, resolveu voltar à sua cidade natal, Qaraaoun, que dá nome ao lago.
Alto, com bom humor e sempre servindo um café árabe, Yassine é proprietário de um supermercado e enfatizou a convivência com as outras comunidades da região.
“Parece engraçado como um lago que nos separa fisicamente ao mesmo tempo nos une. Os cristãos estão do outro lado e os xiitas mais ao sul, mas até agora não houve brigas nem confrontos como em outros pontos do país”, disse Yassine.
Ele destacou que muitos de seus clientes são pessoas que vêm das outras cidades xiitas e cristãs. “Eles vêm aqui e eu os recebo amigavelmente. Às vezes, aos finais de semana, vamos ao lago para fazer piqueniques e nos encontramos por lá.”
Essa mistura está ainda mais presente em jovens como Khaled Antar, 24, de Mashghara, ao sul do lago. A cidade, onde pôsteres do aiatolá Khomeini e do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, enfeitam ruas e postes de luz, já foi cristã, mas hoje é de maioria xiita. “Há 25 anos, os xiitas se instalaram em Mashghara para combater a ocupação israelense mais ao sul”, disse Antar.
O jovem estudou a vida inteira em escolas cristãs da cidade de Aaitani, onde fez muitas amizades e as mantém até hoje. “Eu seguidamente vou lá para visitar alguns amigos e sempre dou uma parada na praça onde tem uma fonte de água pura das montanhas para beber”, enfatizou ele.
Seu amigo Michel Khoury, 28, cristão, tem uma casa cuja vista pode-se admirar a barragem e os barcos que passeiam pelo lago. A paisagem é completada pela vista do biblíco Monte Hermon (2.814m), ou Jabal ech Cheikh, em árabe. “Mesmo depois que as coisas no Líbano se desestabilizaram por causa de assassinatos politicos, a guerra com Israel [em 2006] e a briga entre facções políticas, esta região consegue se manter pacifíca.”
Vigília
Mas Khoury confessa que isso pode acabar, caso um conflito armado se inicie no país e o sectarismo político-religioso aflorar. “Em Mashghara, o Hezbollah é forte, mas aqui também temos nossos partidos. Não sei o que aconteceria caso um confronto resulte em uma vitíma de algum lado”, disse ele.
A aparente paz, no entanto, é mantida também pela polícia e pelo exército. Nos pontos de cruzamento em ambos os lados da barragem, há postos do exército libanês. Além disso, entre Mashghara e Aaitani, há um pequeno posto militar.
Em agosto, os xiitas comemoraram os 29 anos do desaparecimento do imã Mussa Sadr, líder do movimento xiita no Líbano e que sumiu misteriosamente em 1978 enquanto viajava à Líbia.
“O Hezbollah e o Movimento Amal [partido xiita] organizaram carreatas com militantes segurando bandeiras que passaram pelas cidades cristãs. Tudo correu normal, mas havia soldados do exército ao longo do percurso”, salientou Khoury.
De fato, nas estradas que cortam as belas planícies em direção ao vale, carros da polícia patrulham regularmente a região. “O lago nos une, sim, mas a gente pode dar uma mão também”, disse Antar.
Desafios
A calma da região também esconde atividades do Hezbollah. No lado sul da barragem, um vale rochoso por onde passa o rio Litani, que agora corre com suas água limitadas em direção ao sul do país.
É lá que outro brasileiro, Ali Akl, 23, encontra seu amigo Antar para fumar arguilé e se divertir. Ele mora em Libbaya há seis anos, desde que deixou o Brasil com sua família.
No local, há piscinas de águas naturais e infra-estrutura para churrascos e piqueniques -ponto de encontro para famílias, em sua maioria xiitas. “Aqui geralmente vêm mais xiitas por um simples motivo. O vale é também região onde o Hezbollah esconde armas. Há também um ‘resort’ exclusivo para os membros da guerrilha”, dise Akl.
O jovem trabalhou no verão na empresa que realiza os passeios de barco no lago. “Gosto de estar lá, o lago parece que faz a gente esquecer os problemas, e as pessoas vêm apenas pra se divertir, não falamos de política”, disse Akl, que não escondeu as saudades do Brasil. “Mesmo sendo xiita, eu cansei do Hezbollah e de toda esta confusão política do país. Tinha vontade de voltar ao Brasil, pois aqui a vida é lenta demais, não há emprego.”
Akl pensa em morar em Beirute, mesmo com toda a confusão da capital.
“Vou perder em alguns pontos, principalmente o lago e a calma do lugar. Mas, às vezes, viver é enfrentar desafios. E eu preciso disso.”
Fonte: UOL