Diante de tal acontecimento, os olhos desses dois estão brilhando. Marcando presença nos quatro dias do evento, Gianpietro e Caterina – um casal de Treviso – circulam para cima e para baixo nas alamedas da 29ª edição do “Encontro em prol da amizade entre os povos”, convencidos de estarem assistindo a um verdadeiro milagre.
“E vocês viram essa multidão?”, comentam com ansiedade. “E essa juventude! E os olhares das pessoas!”
Ocorreu mesmo algum milagre em Rimini, uma cidade de veraneio do mar Adriático onde predomina o concreto armado e cujo nome sugere muito mais o “far-niente” e as loções de proteção solar do que um mistério da fé? Ao encerrar-se no sábado, 30 de agosto, com um extenso discurso de José Manuel Barroso, o presidente (português) da Comissão Européia, o Encontro de Rimini, uma das mais importantes reuniões de católicos que se possam ver na Europa, bateu mais uma vez todos os recordes.
No decorrer de uma semana, cerca de um milhão de visitantes participaram de debates, de colóquios, visitaram exposições, assistiram a concertos… Cerca de 3.000 benévolos gastaram seu próprio dinheiro com hospedagem e alimentação para guiarem os fiéis por este labirinto de salas e vestíbulos de exposições onde, no passado, foram vistos João Paulo 2º, Madre Teresa de Calcutá, o dalai-lama, o cardeal Ratzinger antes que ele se tornasse papa, Lech Walesa, Eugène Ionesco, Andrei Tarkovski, e muitos outros.
Neste ano, mais uma vez, homens políticos italianos de todas as tendências compareceram às dezenas. O Encontro de Rimini é um evento do qual todos eles precisam participar. Diariamente, uma publicação que sintetiza os principais artigos e comentários da mídia e da imprensa generalista e especializada, é editada pela centena de jornalistas presentes. São 100 páginas, apenas para os artigos da imprensa escrita. Diante disso, as grandes companhias não se fazem de rogadas para bancarem a fatura de 10 milhões de euros (cerca de R$ 24 milhões) necessária para a organização deste evento.
Além disso, o Encontro de Rimini também constitui a parte mais visível de um iceberg chamado “Comunhão e Libertação” (Comunione e Liberazione), um movimento eclesial fundado por Dom Luigi Giussani (1922-2005). Vinculado à hierarquia do Vaticano e afinado com os valores da Igreja italiana, o movimento Comunhão e Libertação tem como objetivo educar para a aprendizagem da fé cristã. E ele não esconde a sua estratégia: infiltrar-se nos centros de poder, a saber, as grandes empresas, por intermédio da Companhia das Obras Religiosas, e também nas esferas políticas, principalmente onde se encontram os representantes do Centro e do Partido das Liberdades (PdL), liderado por Silvio Berlusconi.
“Nós temos entre os nossos membros, filiados que participam da vida política, mas o nosso movimento não tem por vocação fazer política”, explica Dom Stefano Alberto, um companheiro dos primeiros anos de existência do movimento Comunhão e Libertação. “E mesmo assim, não há mais do que quatro ou cinco deputados dos quais tenho mesmo a certeza de que eles pertencem à nossa comunidade”. “Eles são uma dezena, não mais”, explica, por sua vez, Mario Mauro, o vice-presidente do Parlamento europeu.
Haverá também alguns ministros entre eles? “Sim, com toda certeza”, acrescenta um deputado, que cita Angelino Alfano, o ministro italiano da justiça, autor da lei de imunidade que tanto beneficiou a Silvio Berlusconi, e Mariastella Gelmini, a ministra da instrução. Vale também mencionar Roberto Formigoni, o poderoso presidente da região da Lombardia.
Pouco numerosas, porém visíveis e influentes, essas personalidades políticas atuam como intermediárias para a mensagem oficial da Igreja. Semanalmente, o deputado Maurizio Lupi (PdL) organiza um encontro, no próprio recinto do Montecitorio, a Assembléia Nacional (legislativa) italiana, no qual se reúnem seus colegas, membros do Comunhão e Libertação, além de integrantes não políticos do movimento e de simpatizantes. Trata-se de uma reunião multipartidária na qual são elaboradas as sínteses e as estratégias para os combates, entre outros aquele que diz respeito à escola livre, que a Igreja gostaria o quanto antes de impor como prioridade no calendário do governo.
“Valores não negociáveis”
Será o movimento Comunhão e Libertação um braço político da Igreja? A hipótese faz Mario Mauro desatar numa gargalhada franca e sonora: “Ela não precisa de nós. Desde o desaparecimento da Democracia Cristã, em conseqüência da operação “Mani Pulite” (Mão Limpas), o eleitorado católico acabou se redistribuindo por todo o leque partidário. A Igreja tem intermediários em todos os partidos”. Então, o movimento Comunhão e Libertação seria antes uma “espécie de maçonaria católica”? Um deputado do Partido Democrático (de centro-esquerda) responde: “Sim, de fato seria antes parecido com algo desse gênero”.
“Por que todo mundo teria o direito de fazer política, exceto nós?”, indagam os membros do movimento Comunhão e Libertação. Esta reivindicação foi apoiada pelo cardeal Bagnasco, que é o presidente da conferência episcopal italiana, por ocasião do discurso que ele pronunciou na abertura do Encontro de Rimini, em 24 de agosto. “Eles querem uma Igreja que permaneça trancada dentro da Igreja. Mas é um direito nosso de participar da vida política”. A quem estaria se referindo o cardeal? A todos aqueles que, na Itália, essencialmente integrantes da esquerda radical, gostariam que a Igreja não ultrapassasse os limites do perímetro das suas paróquias.
O tema que foi escolhido para esta 29ª edição do Encontro de Rimini – “Ou protagonista, ou ninguém” – poderia também ser entendido como sendo a reivindicação da Igreja italiana, fazendo valer o seu direito de participar do debate político. Contudo, enquanto ela continuar defendendo com unhas e dentes seus “valores não negociáveis” (contra o aborto, a fecundação artificial, as células-tronco, a eutanásia), a busca de um consenso permanecerá difícil. “Não deixa de ser um pouco complicado discutir com eles”, explica, lançando mão deste eufemismo, Sandro Gozi, um deputado do Partido Democrático, que foi um dos participantes do Encontro de Rimini.
Contudo, Gianpietro e Caterina nada viram de tudo isso. “Digam, sobretudo, que este encontro é extraordinário”, insistem, antes de desaparecerem no meio da multidão.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Fonte: Le Monde