A mãe do ex-piloto da Igreja Renascer, Márcio José Borba de Mello, conta que o filho era acionado para levar malotes de dinheiro de fiéis para haras de propriedade do casal Estevam e Sônia Hernandes (foto) durante a madrugada. Márcio chegou a ser chamado até para levar água e fraldas.

Malotes com dinheiro recolhido em doações de fiéis levados durante a madrugada, em filas de carros blindados, até um heliporto. Farras como o uso de um helicóptero para transportar apenas uma caixa de água Perrier para um haras em Atibaia. Envelopes cheios de notas tirados da sede social da Igreja Renascer para comprar cavalos. E bispos que vivem cercados por seguranças equipados, em um aparato difícil de encaixar no cotidiano de líderes religiosos.

São cenas que exemplificam a acusação de que o casal Estevam e Sônia Hernandes, fundadores da Renascer, costumam usar para fins pessoais a máquina sustentada pelo dinheiro dos fiéis da segunda maior denominação neopentecostal do Brasil – importante em São Paulo a ponto de organizar a “Marcha Para Jesus”, evento que entrou para o calendário oficial da cidade e, só no ano passado, reuniu 3 milhões de pessoas. E são contadas por Dulce Carrapatoso, mãe do piloto de helicóptero Márcio José Borba de Mello – que trabalhou para os Hernandes por dois anos e meio e morreu na noite do Natal de 2005, depois de levá-los a uma festa.

O balaio de denúncias contra os Hernandes já resultou em 116 ações de cobranças de dívidas espalhadas por 13 estados do Brasil, dois processos na Justiça de São Paulo nos quais são acusados de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e estelionato e, agora, um nos Estados Unidos que apura os mesmos crimes. Com exceção da ação que tramita na Flórida – iniciada semana passada, depois que o casal foi preso ao tentar entrar em Miami com dólares não declarados -, todos têm em comum testemunhas que preferem o anonimato ao relatar o que sabem sobre a mistura entre o patrimônio de uma instituição construída com as cédulas de seus fiéis e os bens de seus líderes.

“Eu quero falar”, diz Dulce. Assistente social, 59 anos, ela deu entrevista ao Estado ao lado do marido, o comerciante Daniel Ignácio da Silva, 60 anos, que vez por outra acrescentava detalhes ao que ela dizia.

Márcio morreu aos 36 anos, após deixar em casa a mulher e dois filhos – a caçula com 9 dias – para fazer duas viagens com os Hernandes e convidados. De acordo com sua mãe, ele viu o seguinte:

Malotes na madrugada

“Meu filho vinha há tempos muito preocupado com o fato de, quase sempre durante a madrugada, ter de levar malotes e os bispos para o haras deles, em Atibaia. Eram vários malotes que eram trazidos por carros blindados, vinham em carreata mesmo, até o Campo de Marte, que era de onde o helicóptero decolava. Ele contou pra mim: ‘mãe, estou sendo coagido a voar de madrugada, pouso num lugar que não tem pista nem heliporto e faço tudo pelo farol do próprio helicóptero, mas tenho filhos para criar’. Ele tinha medo de ser parado pela polícia e acabar respondendo também por aquilo.”

Perrier e cavalos

“Além dos malotes, acontecia também de levar caixas lacradas. Uma vez, ele recebeu um telefonema do escritório da Renascer, na Rua Apeninos, mandando ele levar uma caixa para o haras em Atibaia. Ele ficou preocupado, porque ia sozinho e não queria ser pego com alguma coisa comprometedora. Abriu a caixa e lá dentro tinha 12 garrafas de água Perrier para levar para a filha dos bispos (Fernanda, de 25 anos). Ela estava com sede. Outra vez, a Fernanda telefonou pedindo para ele comprar uma caixa de fraldas para o filho dela e levar para o haras. Ele perguntou se ela não podia pedir a um de seus motoristas para ir a uma farmácia em Atibaia mesmo. Ela respondeu que eles eram muito humildes e não iam acertar comprar a marca que ela queria. Várias vezes meu filho passou na igreja para pegar envelopes e levar até outros haras. Na primeira, ele tocou, viu que era dinheiro e disse ao bispo Lalá (Laerte dos Santos) que para levar precisava saber quanto era, até para não ser acusado depois se faltasse uma parte. Levou um envelope de R$ 800 mil, em dinheiro vivo, outro de R$ 500 mil e mais um de R$ 700 mil – todos para a compra de três cavalos.”

A morte

“Reunimos a família na véspera do Natal. O Márcio ficou a tarde toda preocupado, olhando pela janela para ver o tempo. Disse que teria que levar os bispos às 23h30 até o haras. Isso gerou uma discussão na família, todo mundo achou absurdo. Ele disse que, se não fosse, perderia o emprego, porque já tinha sido avisado disso. Disse que o ano que vem seria diferente, porque já estava arrumando outro emprego. Saiu calculando estar de volta pouco depois da meia-noite, para dar uma bicicleta, vestido de Papai Noel, ao filho. Mas foi obrigado a fazer duas viagens, para levar outros convidados deles. Morreu aos dez minutos do dia 25, na volta, porque foi obrigado a fazer um vôo durante a madrugada, em um lugar sem pista de pouso, exausto. Estevam Hernandes me abraçou e disse: ‘Sei de sua dor porque também perdi um filho. Ele era um filho pra mim’. Sônia me disse que Jesus morreu com 33 anos, mas ainda me deu mais três para aproveitar meu filho. Perguntei a ela porque meu filho foi obrigado a fazer aquele vôo. Ela disse que ele se ofereceu.”

Aparato

“Fomos apresentados aos bispos, por insistência do meu filho, na Lins de Vasconcelos (principal templo da Renascer). Depois de um culto da bispa, descemos uma escada, por uma porta camuflada, e vimos um monte de seguranças. Um ambiente meio estranho para uma igreja. Eles vivem assim. Depois, começaram a insistir muito para a gente ser batizado na Igreja”

Família abre batalha jurídica contra os bispos

A família Márcio José Borba de Mello protagoniza um dos muitos processos judiciais com passagens rocambolescas contra os Hernandes. Depois da morte do piloto, eles descobriram que a Igreja Renascer não recolhia FGTS e entraram com ação trabalhista reclamando seus direitos. Foram procurados por advogados e aceitaram oferta de indenização paga em dez meses. Mas o primeiro cheque estava sem fundos. A viúva do piloto, então, voltou à Justiça.

O imbróglio jurídico entre as partes, no entanto, deve ir além. Wilson Rogério Constantino Martins, advogado da família, promete. “Vou me habilitar para ser assistente de acusação do processo que apura a morte dele, em Atibaia. Além da ação penal, pretendemos entrar com ação por danos morais”, diz ele.

O defensor afirma que vai embasar os processos com o que acredita ser uma coleção de evidências de que a responsabilidade dos bispos no acidente deve ser apurada e de que, após a sua morte, eles agiram para prejudicar seus familiares.

Aos dez minutos do dia 25 de dezembro de 2005, Márcio voltava da segunda viagem da noite ao haras Agropastoril quando a prancha do helicóptero patinou em um morro, escorregou e o aparelho se espatifou. Boletim de Ocorrência feito em Atibaia um mês depois mostra que Laercio dos Santos, o bispo Lalá, procurou a delegacia, disse ser dono da empresa de segurança Radar e afirmou que o piloto era seu contratado. O advogado da família entende que foi uma maneira de dizer que o piloto não tinha vínculos empregatícios com a Igreja ou seus fundadores – feita para evitar eventuais tentativas de responsabilizá-los pelo acidente.

A tese é defendida também pela Mapfre Vera Cruz Seguradora. A empresa desconfiou da versão dada pelos bispos para o acidente, entrou em uma investigação paralela, fotografou o cercado de piso de areia destinado ao treinamento de cavalos que servia de pista de pouso, descobriu que o piloto era registrado em nome de uma igreja de fachada criada pelos fundadores da Renascer, chamada “Internacional Renovação Evangélica”, e se recusou a pagar o seguro. A descoberta da igreja-laranja rendeu aos bispos um processo, por falsidade ideológica, na 16 ª Vara Criminal de São Paulo. Procurados pelo Estado, advogados dos Hernandes disseram que não se pronunciam sobre o caso.

Fonte: Estadão

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