A pediatra Anna Tereza Miranda escolheu como tema de doutorado “um assunto que ninguém quer escutar”, a violência familiar contra crianças. Ela acompanhou de janeiro a março de 2005 a rotina de dois grandes hospitais de emergência do Rio. Com outros pesquisadores, entrevistou 524 acompanhantes de crianças menores de 12 anos que esperavam atendimento e registrou alto grau de subnotificações.
O resultado é surpreendente: quase todas as mães (94,8%) relataram casos de agressão psicológica: xingar de burro ou dizer que vai expulsar de casa . Mais da metade (52,3%) reconheceu situações de negligência, ou seja, dentro de suas possibilidades financeiras não conseguiu prover a criança com cuidados médicos e alimentação adequada. Um em cada três (38,7%) admitiu usar de beliscões ou mesmo tapas e agressões com objetos.
O objetivo era estimar o grau de violência familiar contra crianças. Também foi avaliado o nível de sub-registro de casos. Para as entrevistas, ela usou uma adaptação do método americano Conflict Tactics Scales: Parent-Child (CTSPC), criado por Murray Straus. Foram feitas cerca de 30 perguntas a cada acompanhante – mães eram a maioria -, referentes aos últimos 12 meses.
Para estimar a subnotificação de casos semelhantes nos mesmos hospitais, os pesquisadores analisaram todas as 932 fichas preenchidas pelos profissionais e encaminhadas aos conselhos tutelares nos 12 meses anteriores ao início das entrevistas (ano de 2004). As notificações foram de 0,007% para agressão psicológica, 0,242% (negligência) e 0,034% (agressão física).
“Os números poderiam estar em qualquer hospital. Imaginamos que seja daí para pior”, diz Anna, observando que os centros médicos tinham equipes referenciadas para agir nessa área. Na conclusão do trabalho, ela recomenda a revisão das estratégias e uma melhor organização dos serviços. “Ao evidenciar um descompasso entre as respostas e os casos encaminhados pelas equipes de emergência, ressalta-se a importância da capacitação dos profissionais. Suspeitar e detectar ?sinais de alerta? nos serviços de emergência significa dar conta de uma clientela que frequentemente não possui acesso a outros recursos da rede de saúde”, acrescenta.
Segundo a pediatra, serviços de emergência são propícios à suspeição, detecção e primeira abordagem de vítimas – durante os atendimentos, podem surgir “oportunidades privilegiadas” para observação de lesões corporais agudas, tais como escoriações e fraturas sem motivos que as justifiquem e marcas de queimaduras propositais, dentre outros “sinais”. A rotina agitada, a falta de tempo e privacidade, a ausência de recursos e a falta de treinamento são algumas das possíveis causas da subnotificação.
Segundo Anna, esse estudo foi o primeiro a avaliar a ocorrência de maus-tratos contra crianças nos serviços de emergência de grandes hospitais públicos do Rio e a se debruçar sobre as possíveis oportunidades perdidas de detecção do problema. A maioria dos entrevistados era mulher, casada, com escolaridade inferior ao ensino fundamental completo. As famílias eram compostas, em sua maioria, por até quatro filhos, costumavam utilizar o serviço de emergência pelo menos quatro vezes ao ano e tinham renda mensal entre 1 e 4 salários mínimos da época. A média de idade do pesquisado era de 30,8 anos, e a das crianças, 5,1 anos.
Anna conta que muitas mães ficaram emocionadas durante as entrevistas. “Elas provavelmente nunca tinham falado sobre isso. Não são ruins e malvadas porque batiam. As 500 mães não eram monstros. Mas provavelmente vão causar danos ao desenvolvimento das crianças”, diz. “Isso vai depender de outros fatores de proteção. As consequências aparecem no curto, médio e longuíssimo prazo.” Segundo a pesquisadora, esses registros são “uma bandeira vermelha”, indicando que “toda a família está doente e precisando de ajuda”.
Anna é professora na Universidade do Estado (Uerj) e trabalha na coordenação do ambulatório de um hospital público que atende crianças vítimas de violência. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria da Saúde. Segundo ela, garantiu-se a confidencialidade das informações e o anonimato aos entrevistados. O nome dos hospitais, portanto, não foi revelado. Situações de abuso sexual não foram consideradas pelos pesquisadores, que são do Programa de Investigação Epidemiológica sobre Violência Familiar (PIEVF) do Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj.
COMO DENUNCIAR
Disque Denúncia, pelo 181
Disque 100
Nas sedes dos Conselhos Tutelares nos municípios.
Em SP, há um posto na Praça da República, 150; (tel.: 3259-9282)
Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).
Em SP; tel.: 3229-3935
Pelo site www.aacrianca.org.br
Fonte: Estadão