O pesquisador americano e professor de religião no Williams College, em Massachusetts (EUA), Mark C. Taylor, diz que a religião se encontra nos lugares menos óbvios, onde menos se espera, que ela não vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas próximas décadas.
Mark C. Taylor é professor de religião no Williams College, em Massachusetts (EUA). Ali, ele conquistou o direito de decidir o que fazer com o seu tempo, de trabalhar em áreas multidisciplinares do conhecimento e de pesquisar, ensinar e escrever. Devido a sérios problemas com diabetes, que ele chama de desconstrução do corpo, teve que ficar de licença médica nesse semestre e está aproveitando para terminar seu terceiro livro em dois anos. Seu livro “Erring – A Postmodern A/Theology”, lançado há 20 anos tornou-se um “clássico” no campo da teologia e da filosofia. Seu campo de ação, contudo, não é somente a teologia, mas também a filosofia da cultura e a religião em geral, especialmente a ocidental.
Segundo ele, a religião se encontra nos lugares menos óbvios e onde menos se espera, seja nos jogos de futebol americano, no crescente comércio de unhas postiças das meninas dos Estados Unidos, no controle remoto das televisões, nas tatuagens, nos ossos que ficam como reminiscências do corpo, nos avanços bioinformáticos, na literatura de William Gaddis, nas pinturas de Mark Tansey, na obra de arte de Michael Barney, Vito Acconti e Michael Heiser, nos epitáfios dos túmulos de filósofos e nas conexões da internet.
“A religião não vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas próximas décadas”, diz Mark C. Taylor, na entrevista abaixo:
No Brasil, as universidades, em geral, exceto as de confissão religiosa, não são simpáticas à religião em seus currículos. Acredito que nos Estados Unidos isso não seja diferente. Por que a religião tem sido tão desprezada pela academia e com tanta freqüência, e por que essa situação se mantém? A religião é, sob muitos aspectos, o tema mais complicado para a universidade trabalhar. Muitos dos problemas nasceram da incapacidade de se distinguir adequadamente a prática e o estudo da religião. Esse impasse é criado pela compreensão limitada da religião por parte daqueles que a defendem e também dos que a criticam. Vou voltar a esse tema na próxima questão. Muitos acadêmicos continuam comprometidos com as teorias de secularização formuladas na década de 60. Sob o ponto de vista dessas teorias, modernização e secularização são inseparáveis: as sociedades se modernizam e tornam-se mais seculares através de um processo que é ao mesmo tempo inevitável e inseparável.
Obviamente, as coisas não aconteceram exatamente assim. A religião nunca foi tão poderosa ou tão perigosa quanto hoje. É absolutamente essencial que o ressurgimento recente da religião não seja encarado como uma volta às formas pré-modernas de crença e prática. Ao contrário, o surgimento de formas mais conservadoras da religião é um fenômeno global caracteristicamente pós-moderno. A religião não vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas próximas décadas. Portanto, a criação de análises mais sofisticadas e capazes de compreender melhor as nuances do que está acontecendo é de vital importância. E o ponto de partida dessa investigação deve ser o reconhecimento de que a própria secularização é um fenômeno religioso produto do judaísmo e do cristianismo.
O senhor diz com freqüência que a religião aparece onde ela é menos evidente ou esperada. Poderia definir o que entende por religião e como abordá-la? A religião não é só o que acontece nas igrejas, nos templos e mesquitas. Há uma dimensão religiosa em toda cultura. A arte, a literatura e a arquitetura modernas, por exemplo, nunca teriam se desenvolvido da mesma forma sem a profunda influência das várias tradições religiosas e espirituais. A noção de indivíduo presente nos fundamentos da maior parte das teorias políticas e econômicas modernas foi definida pela primeira vez no protestantismo. Adam Smith desenvolveu sua análise dos mercados, que até hoje continua balizando as políticas econômicas, pela apropriação do conceito da mão invisível de Calvino. É importante expandir nosso conhecimento sobre a religião de forma a nos permitir determinar exatamente a sua influência na chamada cultura secular.
O senhor estudou a religião nos últimos 30 anos. Quais foram as maiores mudanças que o senhor presenciou durante esse tempo e qual a situação atual do estudo da religião? O estudo crítico da religião nunca foi tão importante quanto é hoje, e nunca foi tão difícil. Por um lado, o politicamente correto metamorfoseou-se em “religiosamente correto”. Alguns religiosos atacaram os acadêmicos -às vezes até ameaçando com violência-, acusando-os de não respeitarem suas crenças. Em casos extremos, os críticos do estudo secular da religião insistem que só os religiosos comprometidos com determinado credo estão qualificados para ensinar a sua tradição religiosa. Por outro lado, os críticos também dizem que a religião é epifenomenal e deve, portanto, ser reduzida a sistemas e processos mais básicos, como as infra-estruturas psicológica, sociológica e econômica. O que realmente precisamos hoje é de uma abordagem do estudo da religião que seja multidisciplinar e comparativa. É necessário utilizar a luz de cada uma das diferentes perspectivas metodológicas nas tradições religiosas que dialogam entre si.
Quais são os pensadores que o senhor julga importantes para o estudo da religião hoje? Acredito que os trabalhos mais interessantes para o estudo da religião estão sendo feitos fora dessa área de conhecimento. Eu identificaria três áreas: arte, literatura e ciências biológicas. É preciso enfatizar, no entanto, que nenhum desses pensadores necessariamente consideram seu trabalho como religioso ou até mesmo relevante para a religião. No campo das artes, artistas que fazem intervenções paisagísticas, como Michael Heizer e James Turrel, estão desenvolvendo projetos altamente ambiciosos e importantes. Outros artistas com trabalhos importantes são Richard Serra, Ann Hamilton, Matthew Barney, Joseph Beuys e Anselm Kiefer. Na literatura, dois autores merecem bastante atenção: William Gaddis e Mark Danielewski. Finalmente, nas ciências biológicas, eu citaria trajetórias ao invés de indivíduos. Acredito que nas próximas décadas a bioinformática será tão importante quanto os computadores e as redes têm sido no passado recente. À medida que as pesquisas avançam na biologia digital e vida artificial e se alcançam novas tecnologias, a fronteira entre homem e máquina será cada vez mais obscura. Esses avanços têm implicações enormes para as tradições religiosas.
O senhor disse certa vez que vive em vários mundos e que o seu trabalho é profundamente marcado por uma abordagem interdisciplinar abrangente. Dentre outras coisas, o senhor já trabalhou com teologia, artes e arquitetura, cultura popular, mídia, tecnologia e cibernética, o corpo e a carne, epitáfios de túmulos e sistemas complexos, economia e mercado. Por que o senhor investiu em tantas direções? Acredito que a existência é algo relacional -ser é estar conectado. Para entender uma coisa é necessário deslindar a teia de relacionamentos dentro da qual emerge o objeto de estudo. Por exemplo, não é possível compreender o neoliberalismo do capitalismo global sem entender, por exemplo, a doutrina da providência de Calvino e, por outro lado, os jogos de representação de papéis on-line para múltiplos jogadores (MMORPGs). A centelha criativa aparecesse quando aproximamos dois fenômenos aparentemente não relacionados entre si. A maneira pela qual o conhecimento se estrutura não é imutável, mas reflete os modos de produção e reprodução existentes na sociedade. À medida que passamos do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo e finalmente ao capitalismo financeiro, a estrutura da realidade foi sendo modificada. O problema é que as universidades não se transformaram junto com o mundo. O modelo das universidades atuais foi formulado pela primeira vez por Kant, num artigo presciente publicado em 1789. Kant usou como modelo a universidade de produção em massa. Tente imaginar currículos e universidade estruturados como se fossem uma rede, ao invés de uma assembléia linear e você terá uma idéia das mudanças de que a universidade necessita hoje.
Seus alunos adoram as suas aulas. Eu fui testemunha disso aqui na Universidade Columbia. Em 1995, o senhor ganhou o prêmio Professor Universitário do Ano, concedido pela Fundação Carnegie para o Aperfeiçoamento da Docência. Como o senhor vê o seu trabalho como professor? Eu levo o ensino muito a sério. Na verdade, vejo a docência como minha vocação. Sempre digo aos meus alunos que a relação professor-estudante é ética: ambos têm obrigações, e nenhuma das partes consegue fazer o seu trabalho sem as contribuições da outra. Freqüentemente, nas universidades onde se faz pesquisa, a atividade docente é menosprezada. A dicotomia pesquisa/docência é apenas ilusória, porque a pesquisa informa a atividade docente, que por sua vez alimenta a pesquisa. Não há nada mais recompensador do que o compromisso sério com estudantes inteligentes e interessados.
Como o senhor vê a relação pessoal do presidente George Bush com a religião. Estaria ele tentando criar uma teocracia? Eu tenho dito freqüentemente que me preocupo mais com os que acreditam do que com os que não acreditam. Em maneiras diversas, as guerras religiosas do século 21 são extensões das guerras culturais dos anos 60. Para muita gente, que vai de George Bush ao papa Bento 16, os anos 60 nos introduziram em um caminho de relativismo que somente poderá ser corrigido pelo returno aos absolutos. Penso que esses absolutos e essas certezas que eles advogam são altamente perigosos. Eu não creio que Bush esteja querendo criar uma teocracia, mas penso que o comprometimento religioso acrítico que ele desenvolve tem afetado profundamente as políticas internas e externas dos Estados Unidos, o que tem causado vários desastres.
Como a visão do presidente Bush a respeito da religião transformou a maneira pela qual os Estados Unidos conduzem a política e a economia tanto internamente quanto com o resto do mundo? Nos últimos anos, o cenário político nos Estados Unidos foram transformados pelo que eu chamo de nova direita religiosa, que surgiu quando os protestantes e católicos conservadores uniram forças, entre o final dos anos 60 e o início da década de 70. Os temas mais importantes eram o aborto, as orações nas escolas, a teoria da evolução e o Judiciário federal. Esses temas ainda orientam uma grande parte da agenda de Bush. É importante entender que os protestantes conservadores sempre foram capazes de perceber como as novas tecnologias podem ser usadas para espalhar a sua fé. Isso começou com a imprensa e se disseminou pelo rádio e a televisão e agora alcança também a internet. Essa astúcia tecnológica gerou um enorme poder financeiro e político. Não há nada que seja páreo para isso na esquerda.
Como devemos entender o mundo depois dos atentados de 11 de Setembro? Como o senhor entende a idéia de “terrorismo”? Como sugeri anteriormente, o terrorismo é um fenômeno caracteristicamente pós-moderno, uma reação ao crescente poder do capitalismo global. O terrorismo é baseado numa ideologia de oposição, que joga o bem contra o mal. O que faz essa ideologia tão perigosa é o fato de o mundo estar cada vez mais interconectado. Quando se tem uma ideologia de oposição num mundo formado por teias e redes, os resultados podem ser desastrosos.
Com que olhos o senhor vê o futuro? Para ser bem honesto, é difícil ser otimista em relação ao futuro. Os problemas que enfrentamos são grandes e há pouca boa vontade em reconhecê-los ou empenho para solucioná-los. Acredito que as questões mais críticas no século XXI serão as ambientais, e em nenhum outro lugar do mundo isso é tão evidente quanto no Brasil. A destruição da floresta tropical ameaça a vida no planeta. As teias nas quais estamos emaranhados não são só a internet e o capital global, mas são também as teias naturais, que uma vez danificadas não podem mais ser reconstruídas. Estamos nos aproximando rapidamente do ponto de inflexão, que pode também trazer uma grande destruição.
Para encerrar nossa conversa, como o estudo da religião pode ajudar na resistência ou criar alternativas à situação política, econômica e religiosa atual? Pensamento e ação, teoria e prática, estão inseparavelmente relacionadas. Precisamos desesperadamente de uma compreensão de mundo que nos permita entender que tudo é co-dependente e co-evoluiu. Se continuarmos como estamos agora, é difícil imaginar algum futuro.
Fonte: Trópico