Apesar de desejada pelas Igrejas e até por muçulmanos, não haverá menção a Deus no preâmbulo do novo tratado constitucional da União Européia (UE). Prova da consolidação do secularismo religioso.
Somente em cinco Constituições dos 27 países-membros da UE a palavra “Deus” aparece. É o caso da Lei Fundamental alemã, cujo preâmbulo reza: “Na consciência de sua responsabilidade perante Deus e os homens, animado pelo desejo […] o povo alemão outorgou-se esta Lei Fundamental, em virtude de seu poder constitucional”.
Tal formulação poderia ter funcionado bem no tratado constitucional da EU, afirmam as Igrejas luteranas alemãs. “”Em responsabilidade perante Deus e os homens”, consta em nossa Lei Fundamental”, diz Nikolaus Schneider, presidente das Igrejas Luteranas da Renânia.
“Cita-se um ponto de referência. Para os muçulmanos, isto não representaria nenhum problema e, com a duplicidade “perante Deus e os homens”, também aqueles que não acreditam em Deus poderiam encontrar um ponto de orientação. Não se deve subestimar a importância de pontos de referência para as pessoas e para os processos estatais”.
Sugestões cristãs democráticas
Irlandeses, dinamarqueses e gregos dispõem, em sua Constituição, da chamada Nominatio Dei, expressão latina para a alusão a Deus. Para muitos democrata-cristãos da Alemanha, o preâmbulo da Constituição polonesa de 1997 seria como um bom meio-termo para o tratado da UE. Dele consta:
“Nós – a nação polonesa – isto é, tanto aqueles que acreditam em Deus como fonte da verdade, justiça, do bom e do belo, como também aqueles que não compartilham esta crença, mas que deduzem estes valores universais de outras fontes […]”.
O catolicismo é bastante presente na Polônia. Há muito que católicos alemães também pleiteiam uma alusão a Deus na Constituição. Hubert Tintelott, porta-voz do Comitê Central dos Católicos Alemães, afirma: “Para nós, a menção a Deus é de importância primordial. Uma admissão de Deus no preâmbulo [do tratado constitucional da EU] reforçaria que o homem não pode fazer tudo o que quer, que há regras acima da dimensão humana que facilitariam a convivência entre os homens”.
Uma outra sugestão dos democrata-cristãos europeus é incluir o seguinte no preâmbulo do tratado da UE, no tocante ao legado cultural comum do continente “que se baseia na filosofia grego-romana, na mensagem cristã e nos valores judaico-cristãos”.
Nenhum Deus não significa ao mesmo tempo nenhuma Igreja
Somente cinco Constituições européias contêm a palavra “Deus” – isto não significa que nas demais Constituições do continente a religião não esteja presente. Para além do preâmbulo, a Lei Fundamental alemã menciona “sociedades religiosas”. Em algumas Constituições européias, as “sociedades religiosas” têm um nome, o que implica em um melhor posicionamento destas em relação às demais que não são mencionadas diretamente.
Itália
“Todas as crenças religiosas são igualmente livres perante a lei”, assegura o parágrafo 8° da Constituição italiana. No entanto, lá também consta: “Todas as outras crenças diferentes do catolicismo têm o direito de se organizar conforme seus próprios estatutos, contanto que não entrem em atrito com o sistema legal italiano”.
França
A Constituição francesa representa um exemplo de laicismo absoluto na Europa. “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” encarnam o ideal comum do povo francês. Não há vaga para nenhum deus no preâmbulo constitucional. E já no primeiro artigo é explicado: “A França é uma república indivisível, laica, democrática e social”.
Laicismo como doutrina de Estado
“Por que deveria haver uma alusão a Deus no preâmbulo do tratado da UE?”, pergunta-se Rudolf Ladwig, da Liga Internacional de Não-Religiosos e Ateístas. “A UE é uma instituição secular. Sua visão de mundo deveria ser neutra. Mesmo aqueles que não possuem uma visão de mundo religiosa devem se sentir acolhidos na União Européia. Desta forma, nenhuma terminologia religiosa lhes deve ser imposta. Todo tratado mundano é secular”, comenta Rudolf Ladwig.
Turquia
Há anos que um outro país laico bate às portas da Europa: a Turquia. O preâmbulo de sua Constituição prescreve que “como exige o princípio do laicismo, sentimentos religiosos sagrados não devem, de forma alguma, ser misturados com assuntos da política e do Estado”.
O Islã, no entanto, representa um papel importante na sociedade turca. O laicismo aqui é diferente do da França. Não se trata de uma separação total entre Estado e religião, mas de um controle do Estado sobre a religião. Para tornar isto claro, foi introduzido, no Artigo 136 da Constituição turca, o Diretório Geral para Assuntos Religiosos.
“A Turquia também vê com bons olhos o fato de a religião ocupar um lugar na Constituição”, explica Aiman A. Mazyek, secretário-geral do Conselho Central dos Muçulmanos na Alemanha.
Segundo ele, “os muçulmanos alemães estão decepcionados pelo fato de os cristãos da Europa não terem conseguido impor a menção a Deus, apesar de seu lobby”.
“Na Europa existem sistemas muito diferenciados. Seria muito precipitado dizer que não podemos admitir Deus em nossa Constituição pelo fato de a França possuir um sistema laico. Na Lei Fundamental alemã, conseguimos introduzir o reconhecimento de um ser que tudo criou, sem, de forma alguma, pôr em questão o laicismo ou a secularidade”, comenta Mazyek.
Fonte: Portas Abertas