Ao assumir a arquidiocese do Rio de Janeiro, em setembro de 2001, o cardeal dom Eusébio Oscar Scheid chegou simpático e falastrão. As declarações espalhafatosas – como a de que o presidente Lula não era católico, mas “caótico” – pareciam estratégia para se destacar da sombra do antecessor, dom Eugênio Sales, o poderoso amigo do então papa João Paulo II, que comandou a Igreja no Rio por três décadas e é um dos principais nomes da Igreja Católica do Brasil na segunda metade do século passado.
Este mês, dom Eusébio voltou a se destacar, desta vez com ações de alcance bem maior e mais conseqüentes. Em uma decisão que surpreendeu religiosos em todo o País, demitiu 44 funcionários da arquidiocese, muitos ligados a dom Eugênio, e desmontou pastorais criadas há mais de 20 anos pelo antecessor, como a do Menor, das Favelas e dos Trabalhadores.
As demissões mais barulhentas foram a de Cândido Feliciano da Ponte Neto, eminência econômica de dom Eugênio, e a do assessor de imprensa Adionel Carlos da Cunha, que deu lugar ao padre Leandro Cury. Dom Eugênio e dom Eusébio não comentam, mas seus seguidores duelam em público. Adionel, 39 anos de arquidiocese, não aceita que as dispensas tenham sido motivadas pela necessidade de cortes, começando pelos altos salários. “Isso não explica as demissões de todas as pessoas que trabalhavam comigo, até o office- boy e a bibliotecária”, diz. “A reforma não foi concluída e seu único objetivo é melhorar o desempenho da arquidiocese”, afirma Cunha, o novo assessor. Um dos objetivos das intervenções nas pastorais, segundo ele, é reduzir o quadro e incentivar o voluntariado.
As medidas chegam com um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) a pedido do novo manda- chuva dos cofres da arquidiocese, padre Edvino Steckel. As demissões incluem 18 pessoas da Pastoral do Menor, menina-dos-olhos de dom Eugênio. A ex-coordenadora Regina Leão, há 20 anos na pastoral, diz que as demissões ocorreram por telefone. Algumas ações sociais foram assumidas pela prefeitura, que instalou uma placa na Casa do Catete, onde a pastoral recebia meninos de rua e adolescentes grávidas. “É um ato desumano, que destrói uma história e terceiriza uma política da Igreja para os políticos em ano eleitoral”, protesta. A coordenadora nacional da pastoral, Marilene Cruz, de Minas Gerais, tenta há semanas uma audiência com dom Eusébio, sem sucesso. “A prefeitura pode assumir as ações por não querer que elas acabem, mas isso passa a ser outro programa, não mais da pastoral, cuja metodologia muitas vezes inclui críticas ao poder público”, ressalta Marilene.
Um dos trabalhos no Catete era dar suporte ao Projeto Ex-Cola, ONG que reconcilia adolescentes grávidas com suas famílias. Despejada, a organização foi para um espaço doado por um grupo cultural na Lapa, que só pode ser usado um dia por semana. “Estamos atordoados, esperando que a arquidiocese diga o que aconteceu. Do dia para a noite, ficamos sem lugar”, diz a coordenadora da ONG, Elizabeth Oliveira. Já a igreja do Rio sustenta que a Casa do Catete estava em total abandono, com dívidas contraídas pela pastoral.
Érika Glória, da Pastoral das Favelas e também demitida, diz que continuará a se dedicar como voluntária a defender as famílias ameaçadas de despejo. A entidade atua em 30 comunidades e as reuniões eram no térreo do Edifício João Paulo II, na Glória, sede da arquidiocese, junto com a Pastoral dos Trabalhadores. Outro marco demolido por dom Eusébio foi o conjunto de salas construído por dom Eugênio nos jardins do Palácio São Joaquim, também na Glória, para receber e dar assistência a refugiados políticos. Embora convivesse bem com os golpistas de 1964 no combate ao “perigo comunista”, dom Eugênio se notabilizou por abrigar perseguidos por várias ditaduras, inclusive a brasileira. “Dom Eusébio demoliu essa história para ampliar o jardim, derrubou as salas e transferiu os serviços para uma unidade na zona norte”, lamenta Cunha.
A indignação com a chegada do neoliberalismo à administração da arquidiocese tende a aumentar, caso se confirmem os indícios segundo os quais a igreja carioca alugará o espaço térreo do Edifício João Paulo II, para uma agência bancária. A FGV estuda também reduzir o número de andares ocupados pela entidade (sete). O edifício foi inaugurado por dom Eugênio em 1980.
A divergência chegou à academia. O teólogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, da Pontifícia Universidade Católica do Rio, avalia como positiva a atuação de dom Eusébio. “Depois de 30 anos, algumas ações precisavam ser renovadas. Vejo mais atenção às pastorais”, diz o teólogo. Miguel Baldez, professor de direito da Universidade Cândido Mendes e assessor voluntário da Pastoral das Favelas, discorda. “Não renovou nem ampliou coisa alguma. Dom Eugênio criou as pastorais há mais de duas décadas e dom Eusébio está extinguindo”, afirma. Pior, para Baldez, é entregar o serviço à prefeitura, “que sempre está do lado oposto, tentando desalojar famílias para abrir espaço à especulação imobiliária”.
O papa Bento XVI pode acabar com a briga. Ao completar 75 anos de idade, em dezembro do ano passado, dom Eusébio encaminhou ao Vaticano uma carta pondo o cargo à disposição, conforme manda o Código de Direito Canônico. Com uma ressalva, segundo Cunha, que agora assessora dom Eugênio de forma voluntária. “Dom Eusébio pôs o cargo à disposição, mas pediu para ficar mais um ano. Cabe ao papa decidir se aceita ou não”, alfineta. Quando dom Eugênio ofereceu o cargo, João Paulo II demorou cinco anos para nomear seu substituto – outra prova do enorme prestígio que ele gozava e ainda goza na Santa Sé. Seus seguidores agora esperam que Bento XVI seja mais rápido.
Fonte: Revista Isto É