As críticas a um credo trazem implícita a discriminação de seus crentes? Apesar do risco populista, manda a liberdade de expressão.
Em 2004, um imã afirmou na Holanda que a homossexualidade é uma doença infecciosa. Sem mais demora, foi parar na Justiça, acusado de discriminação. Os juízes, entretanto, decidiram que ele falava em nome de suas crenças religiosas e o absolveram. Naquela ocasião, a liberdade de credo foi mais relevante que o suposto tratamento de inferioridade dado a um coletivo em particular. E a falsidade da afirmação.
Há poucas semanas, outros magistrados decidiram que se pode insultar uma religião sem incorrer em delito. Desta vez, o credo era o islamismo e o que o insultou, Geert Wilders, ex-liberal convertido em líder da direita xenófoba nacional. O tribunal decidiu que ele falava de sua condição de político e no quadro de uma discussão pública sobre a sociedade pluricultural. Embora tivesse sido “um grosseiro” e algumas de suas ideias “poderiam incitar ao ódio contra os muçulmanos”, fazia uso de sua liberdade de expressão. Como o pregador muçulmano de quase uma década atrás, Wilders foi exonerado da acusação de discriminação. A sentença também suspendeu a acusação de incitação ao ódio.
Em seu momento, o assunto do imã homofóbico avivou a controvérsia sobre a perda de valores, o respeito e a igualdade em uma sociedade democrática. Mas a liberdade religiosa está amparada pela Constituição na pequena, rica e estável Holanda. Assim o eco da decisão judicial acabou se diluindo. Com Wilders, a reação foi diferente. Para ser exato, o processo contra ele gerou um intenso debate sobre a presença do islã nas sociedades ocidentais, transcendendo o âmbito nacional. Em 2006 a crise provocada pelas 12 caricaturas de Maomé publicadas no jornal dinamarquês “Jyllands Posten” impôs um alto preço à liberdade de expressão. O caso holandês atual, por sua vez, põe a incógnita sobre o tipo de relação – ou de contrato social – que deve reger hoje uma Europa onde os cidadãos muçulmanos caminham para a terceira geração.
O líder populista holandês saiu exultante dos tribunais de Amsterdã em junho passado. Convencido como está de dizer “só a verdade” quando qualifica a religião muçulmana de “violenta e retrógrada”, sua vitória legal reforçou seu duplo perfil. De um lado, aparece como o defensor do liberalismo laico que é uma das versões mais reconhecíveis da identidade nacional holandesa. Do outro, é o único político capaz de pedir o fechamento de fronteiras para os imigrantes muçulmanos e negar a existência de um islã moderado. “Mas não devemos nos equivocar. Na Holanda não está crescendo um populismo anti-islâmico”, diz Hans Jansen, reconhecido arabista holandês e testemunha no processo contra Geert Wilders.
Autor de livros como “Islã para porcos, macacos, asnos e outros animais” (referindo-se aos apelativos usados por essa religião para se referir aos não crentes), Jansen afirma que muitos muçulmanos criticam sua religião. “Alguns inclusive fizeram declaração de apostasia.” A ex-deputada holandesa de origem somaliana Ayaan Hirsi Ali, hoje exilada nos EUA, é a mais famosa.
“Em uma sociedade livre, as críticas às religiões e seus preceitos são um direito inalienável garantido pela Declaração Universal de Direitos Humanos. O que ocorre é que o islã e as normas de conduta que ele impõe, entre elas a xariá, são agora contestados pública e livremente. Isso é algo corrente no cristianismo, judaísmo ou protestantismo, casos em que não se fala de populismo. No islã, a crítica é proibida e castigada com dureza. É normal que os imigrantes muçulmanos estejam assombrados e ofendidos pela expressão de liberdade religiosa ocidental. Mas no mundo livre não é crime dizer que a Bíblia, ou o Corão, não são a palavra de Deus”, afirma o arabista holandês.
Apesar de Wilders diferenciar entre islamismo e muçulmanos em suas críticas, e graças a isso pôde escapar da condenação, os grupos antirracistas e de imigrantes que o levaram aos tribunais se sentem desprotegidos. Sua advogada, Ties Prakken, pensa em recorrer à Comissão de Direitos Humanos da ONU porque considera que o político “envenenou o ambiente”, desviando-o para a islamofobia.
Jansen pensa o contrário. “O julgamento foi uma prova para a liberdade de expressão. Se declarassem Wilders culpado, teríamos de ter retirado das bibliotecas montes de livros com seus mesmos argumentos. O que a vanguarda política muçulmana chama de islamofobia não é senão uma crítica aos preceitos religiosos. Acaso denominamos ‘papafobia’ as críticas contra a doutrina católica sobre os anticoncepcionais?”, pergunta.
Vários de seus colegas estudiosos são um pouco mais cautelosos. Ineke van der Valk, especialista em ciências sociais que colaborou com a Fundação Anne Frank e prepara um livro sobre islamofobia, situa o caso holandês no mapa europeu. “Não estamos isolados nessa tendência. Escandinávia, França, Áustria e Bélgica, entre outros países, viram para a extrema-direita e se concentram no islã. Na Holanda, o debate cultural não parece ter progredido. Este era um lugar aberto à igualdade, mas acordos como o do atual governo [onde liberais e democratas-cristãos, que consideram o islã uma religião, são apoiados pelo Partido da Liberdade, de Wilders, que o chama de ideologia] legitimam de certa forma a islamofobia do líder populista.”
“Antes os partidos políticos se concentravam nos valores que podiam dar exemplo”, continua. “Hoje cedem ao pragmatismo para não perder votos. Contudo, não sou pessimista. O importante é que se veja a diversidade social, também entre os imigrantes”, afirma Van der Valk.
Para Peter Rodrigues, catedrático de Direito da Imigração na Universidade de Leiden, parece que as mudanças experimentadas na última década se fazem notar na sentença absolutória. “A proteção contra a discriminação é regida por convênios europeus. A liberdade de expressão, por mais ampla que seja, não deve se chocar com nossas obrigações legais. Os juízes analisaram a fundo esse caso de insultos ao islã e limitaram a liberdade de expressão ao ofício de político. Mas me surpreende que não tenham contemplado a discriminação por motivo de raça. Porque raça e etnia estão muito unidas na comunidade muçulmana”, considera. Ao se despedir, aponta para a aparente falta de reação da comunidade muçulmana holandesa aos insultos religiosos. “Explica-se porque não são um grupo homogêneo e lhes falta uma voz própria.”
Halim Madkouri, responsável pelo programa de Religião e Identidade do Instituto Forum, dedicado ao desenvolvimento multicultural, compartilha sua opinião. “As pessoas não reagem e noto certa apatia. Também há preocupação e medo. Por enquanto, predomina a confiança de que estamos em uma democracia e é preciso aceitar a presença de partidos antimuçulmanos”, indica. Em sua análise sobre a liberdade de expressão, Madkouri lembra que a separação entre a Igreja e o Estado não é tão radical na Holanda quanto na França. “Os holandeses a implantaram para defender as minorias religiosas. Antes os católicos podiam fazer muito poucas coisas nesta terra. Hoje a liberdade religiosa parece reduzida. É aceitável para cristãos e judeus, mas não para os muçulmanos.”
Embora os juízes tenham sido imparciais, Madkouri tem certeza “de que há alguns anos Wilders teria sido condenado por algumas de suas críticas; quando a economia se recuperar, não será tão popular”, acrescenta.
A mesma percepção tem Atef Hamdy, especialista egípcio no islã radical na Europa e colaborador do Instituto Clingendael de Relações Internacionais, em Haia. “Há duas décadas este país já tinha alguns problemas sociais relativos à imigração. Agora se islamizou a percepção dos imigrantes e se chega ao estereótipo. Mas não se pode generalizar. Já há segundas e até terceiras gerações nascidas aqui. De modo que não é possível reduzir os conflitos sociais à religião ou à etnia. A sociedade também tem sua própria responsabilidade”, afirma.
Segundo ele, quando o populismo atual denigre o islã, “explora igualmente a ignorância dos autóctones e as comunidades vulneráveis de imigrantes”. Tanto Hamdy como Madkouri veem uma linha “muito fina” separando os insultos dirigidos à religião e a seus crentes.
“Deveria primar o conceito de cidadania sobre o de identidade, para que todos conheçam suas responsabilidades”, sugere Hamdy.
Em sua obra “O Aprendiz de Bruxo”, o cientista político Meindert Fennema, de Amsterdã, retrata Wilders como “um republicano com um aguilhão para picar o islã”. Seu colega Chris Bickerton fala em “guerras culturais que arrasam a Europa”. E escreve: “Se o anti-islamismo e a rejeição à imigração são um complemento do fatalismo atual diante da economia, o governo holandês se adapta à tecnocracia populista. Mark Rutte, primeiro-ministro liberal de direita, é o tecnocrata por excelência. Wilders é o populista contemporâneo”.
O populismo holandês se declara intolerante com a intolerância, mas como lembra o pensador Ian Buruma “tolerância não é a mesma coisa que cosmopolitismo. Em uma sociedade cosmopolita, alguém com uma cultura diferente pode se misturar em pé de igualdade. Na Holanda é difícil que um imigrante seja aceito assim. A identidade cultural, que é visceral e não está regulamentada, não se compartilha facilmente”.
“No Egito faço parte da minoria cristã copta. Na Holanda me enquadram na minoria árabe”, ironiza Hamdy. Sua reflexão salienta os erros de percepção e as contradições da presença do islamismo na secular Holanda.
[b]Muçulmanos com milhares de rostos
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Em escala europeia, o islã é a segunda religião majoritária depois do cristianismo. Nem todos são imigrantes. Nos Bálcãs e países como Rússia há grandes concentrações de minorias autóctones muçulmanas. Segundo o Instituto Forum, especializado em assuntos multiculturais, a Alemanha possuía em 2009 o maior número de cidadãos de credo muçulmano, cerca de 4 milhões. A França tinha 3,5 milhões e o Reino Unido, 1,6 milhão. Na Europa havia cerca de 38 milhões.
“Dar-lhes um rosto único é um erro de percepção. Também no islã há diversidade de credos, entre xiitas, sunitas e outras escolas”, diz Hamdy, do Instituto Clingendael de Relações Internacionais. “O Islã na Europa é dinâmico, e não monolítico”, acrescenta Madkouri, especialista em religião e identidade. O Forum calcula que em 2040 25% da população holandesa serão minorias étnicas. Destas, 15% virão de países não ocidentais. Hoje os 907 mil muçulmanos assentados na Holanda (5% dos 16,6 milhões de habitantes atuais) são originários de diversos países. Aos da Turquia e Marrocos, de onde chegaram em 1960 e 70 os primeiros trabalhadores, uniram-se imigrantes do Iraque, Afeganistão, Irã, Somália, Egito, Paquistão ou Bósnia. Dos 9 mil templos distribuídos pelo país, 450 são mesquitas.
Em sua decisão sobre os insultos ao islamismo, a justiça holandesa considerou que não se haviam discriminado seus crentes. As leis nacionais rejeitam a linguagem abusiva e a difamação, mas são mais permissivas com as obscenidades. Depois da morte do cineasta Theo van Gogh por um jovem muçulmano radical (nascido na Holanda, com bons estudos secundários e recebendo o seguro-desemprego), a discussão sobre os limites da liberdade de expressão disparou em 2004. Van Gogh era muito crítico ao islã e sofreu um assassinato ritual. Falou-se naqueles dias em proibir as escolas islâmicas; em impedir a entrada de imãs estrangeiros e até em abrir uma só porta nas mesquitas, para que homens e mulheres passem juntos. “É verdade que o islã representa um dilema para a sociedade holandesa, mas não se restringiu sua prática”, afirma Madkouri.
Diante do fato de que a identidade religiosa é cada vez mais forte entre os jovens muçulmanos, os serviços de segurança do Estado calculam que entre 20 mil e 30 mil se movem em círculos radicais. Destes, cerca de 2.500 poderiam chegar ao extremismo.
[b]Fonte: El Pais[/b]