Embora vitória de Obama seja vista como o triunfo da irreligião “ao estilo europeu”, ela só foi possível por causa do eleitorado evangélico. A observação de que os EUA são o único país rico do mundo em que a religião ainda exerce papel central já virou clichê -e, como é o caso de quase todos os clichês, contém muita verdade.

Mas o papel e o impacto da fé no cenário americano são, também, muito mais complexos do que frequentemente aparentam ser à primeira vista -especialmente à primeira vista de estrangeiros vindos de sociedades em grande medida pós-cristãs da Europa Ocidental ou das sociedades pós-budistas e pós-confucianas da Ásia oriental, sendo a Coréia do Sul e Mianmar as grandes exceções piedosas.

Comecemos pelo saber convencional: é inquestionável que qualquer pessoa interessada em ocupar cargos políticos de alto nível nos EUA hoje precisa afirmar-se como uma pessoa de fé.

Isso não quer dizer que o candidato precise ir tão longe quanto foi George W. Bush na campanha presidencial de 2000, ao dizer que a maior influência em sua vida foi Jesus Cristo (o 43º presidente insistiria, mais tarde, em que não tinha necessidade de consultar seu pai, o 41º presidente, porque podia consultar o Divino).

Pelo contrário -presidentes americanos tão diferentes quanto Richard Nixon, Ronald Reagan e Bill Clinton não deram grande destaque a sua fé e, embora fizessem todos os gestos corretos para assinalar a obediência à religião, dificilmente se poderia afirmar que a piedade fosse um traço essencial do caráter de qualquer um dos três. Mas nunca houve nenhuma dúvida de que demonstrassem respeito, ao menos da boca para fora, à ideia de devoção religiosa.

Barack Obama enfrenta uma situação mais complexa.

Ele assumiu a Presidência depois de oito anos de um governo Bush possibilitado pelos votos de protestantes evangélicos e católicos socialmente conservadores -incluindo, na eleição de 2000, um número considerável de eleitores de origem latina nascidos nos Estados Unidos.

Durante algum tempo, até as obsessões xenófobas da linha dura do Partido Republicano terem desagradado tanto aos eleitores imigrantes que acabaram prejudicando até mesmo Bush -cujas posições sobre a imigração na realidade são surpreendentemente esclarecidas-, comentava-se entre os altos assessores de Bush que o partido poderia garantir seu futuro ao assegurar a fidelidade dos imigrantes latinos.

Isso seria conseguido enfatizando os pontos em comum identificados em eleições -sobretudo a oposição ao casamento gay-, o respaldo ao apoio dado pelo governo às fundações religiosas, apesar dos impedimentos constitucionais, e, enfim, a ênfase nos valores familiares tradicionais.

Recriação

Entretanto a adesão suicida do Partido Republicano a uma plataforma anti-imigração extrema não levou os democratas a perder de vista a necessidade de tentar atrair os eleitores religiosos.

De fato, nos últimos anos da administração Bush, vários nomes de destaque do Partido Democrata -entre eles, sobretudo, a muito influente ex-secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Albright- escreveram livros exortando o partido a reconhecer o papel fundamental exercido pela religião na vida americana e acabar com a reputação do partido de indiferença às preocupações dos eleitores religiosos.

De fato, esse apelo por um “compromisso histórico” com os crentes fez parte do projeto do Partido Democrata de se recriar -um acréscimo à compreensão pelos democratas de que, enquanto não conseguissem enfraquecer a acusação republicana de que eram fracos em questões de segurança nacional, jamais retornariam ao poder em Washington.

É claro que havia questões importantes para os eleitores religiosos com as quais os democratas se negavam totalmente a conciliar -sobretudo o direito legal das mulheres ao aborto e os direitos dos gays (embora não necessariamente o casamento gay, algo ao qual o candidato Barack Obama fez questão de se opor).

Mas, excetuando algumas figuras periféricas da extrema esquerda do partido, houve pouca ou nenhuma divergência de opinião quanto à necessidade de trazer os eleitores religiosos de volta ao rebanho democrata, pois os estrategistas do partido compreendiam que, sem fazer pelo menos alguns dos eleitores se afastarem do Partido Republicano -assim como estrategistas republicanos, como o assessor de Bush Karl Rove, pretendiam atrair os eleitores imigrantes-, os democratas jamais conseguiriam reconstruir uma coalizão governante.

Margem estreita

É importante lembrar que as eleições nos EUA costumam ser decididas por margens relativamente estreitas.

Num país tão igualmente dividido politicamente, a vitória por cinco pontos percentuais numa eleição presidencial é considerada decisiva, e uma vitória por dez pontos é vista como avassaladora.

É por isso que eleitorados que, demograficamente falando, são relativamente pequenos exercem influência tão desproporcional, quer se trate de um grupo étnico, como os judeus americanos, ou dos eleitores obcecados por uma questão única, como os defensores dos “direitos às armas”.

Não se trata de modo nenhum de conspiração, não importa o que possam imaginar alguns paranóicos -em lugar disso, essa situação reflete a realidade política americana, na qual mudanças relativamente pequenas nos padrões de voto em um dado Estado podem alterar todo o rumo de uma eleição.

E os eleitores evangélicos não são um contingente pequeno: são contabilizados em dezenas de milhões.

Eleitores distantes

O que os democratas acabaram por entender durante os longos anos dos dois mandatos de Bush foi que, sem esses eleitores comparecendo em números avassaladores para votar nos republicanos, os democratas provavelmente venceriam.

O corolário, é claro, era que o distanciamento desses eleitores em relação ao Partido Democrata foi o que abriu a porta a Bush em primeiro lugar.

O que surpreende é quanto tempo foi preciso para os democratas se darem conta dessa verdade. Afinal, se, nos países da Europa ocidental, a exclusão da fé das campanhas eleitorais se tornou praticamente uma lei inabalável da política, nos EUA há no mínimo um imperativo igualmente forte para fazer o contrário.

Como candidato, Obama estava bem posicionado para capitalizar sobre essa nova ortodoxia democrata (nos dois sentidos do termo).

Igrejas e política

As igrejas sempre estiveram no centro da política afro-americana. De fato, existem poucos políticos afro-americanos importantes nos EUA, hoje, que não saíram eles próprios das igrejas (como pastores ou diáconos) ou ascenderam graças ao apoio dedicado de líderes religiosos em suas comunidades.

Como sempre se queixam os americanos de direita -e com razão-, apesar de ser ilegal líderes religiosos endossarem políticos no púlpito e ainda conservarem o status de isenção de impostos de suas igrejas, essas leis nunca foram aplicadas às igrejas afro-americanas.

Qual é a natureza da fé pessoal de Obama, sua profundidade e até que ponto é central para ele são questões que permanecem um enigma para quem não o conhece pessoalmente.

Mas não há dúvida sobre os vínculos profundos que ele tem com sua igreja. Embora a lealdade pessoal tenha inegavelmente exercido um papel, foram esses vínculos uma razão importante pela qual Obama, o candidato, relutou tanto em cortar seus laços com seu pastor radical, o reverendo Jeremiah Wright.

É também isso o que ajuda a explicar por que, desagradando os elementos mais de esquerda de sua base política, o presidente eleito Obama achou tão fácil convidar um evangélico (branco) popular, o reverendo Rick Warren -homem que já afirmou que acredita no criacionismo e que vem se opondo inflexivelmente ao casamento gay e, na visão de muitos, aos direitos dos gays de modo mais geral- para fazer a evocação (religiosa) em sua posse, em 20/1.

A decisão levou muitos a acreditarem que o papel da religião na política americana poderá ser tão forte sob o governo de Obama quanto foi no de Bush. Mas não é assim que os evangélicos de direita enxergam a situação.

Pelo contrário -nesses círculos a vitória de Obama está sendo vista como vitória da irreligião “ao estilo europeu”.

Como disse o teólogo evangélico de linha dura J.D. Moreland no programa de rádio de Hugh Hewitt (após o programa de Rush Limbaugh, um dos programas de entrevistas de direita na rádio mais ouvidos no país), após a vitória de Obama, “os evangélicos recuaram, foram expulsos, e a cultura está se deslocando rapidamente em direção à Europa. Está cada vez mais secularizada”.

Em um dado momento, Hewitt adota tom ainda mais apocalíptico. Os evangélicos, diz, “foram absolutamente destruídos nas urnas e estão sentados ali, se perguntando o que aconteceu -“onde foi que erramos, por que este governo é tão de extrema esquerda?'”.

Assim, ao mesmo tempo em que o papel da fé no início da administração Obama pode parecer, visto de fora, uma continuação do monopólio que a religião vem desfrutando na vida política americana, os conservadores religiosos militantes temem o exato oposto -que estejam perdendo o controle.

E a cooptação por Obama de figuras como Warren apenas intensifica sua perplexidade e exacerba sua desorganização política. Assim, não surpreende que os vários elementos constituintes da coalizão que elegeu Bush duas vezes -conservadores religiosos, neoconservadores e conservadores empresariais- estejam culpando uns aos outros pela derrota.

Isso não significa que a religiosidade americana esteja se desfazendo da maneira como imaginam os católicos de direita e a liderança evangélica.

Mudança para o centro

Uma explicação mais provável é que o centro de gravidade política entre os eleitores religiosos esteja se deslocando para o centro.

Afinal, mesmo a hierarquia atual da Igreja Católica americana, socialmente bastante conservadora, enfatiza a justiça social pelo menos tanto quanto enfatiza a oposição ao aborto e aposta em seu futuro demográfico -imigrantes do México e da América Central, que são o futuro demográfico do mundo católico praticante nos EUA.

E, mesmo entre os evangélicos, há uma divisão de gerações: os evangélicos mais jovens são quase tão atraídos pela candidatura Obama quanto os jovens seculares.

Em outras palavras, não há razões para supor que as duas perguntas que visitantes europeus vêm fazendo desde o século 19 -por que os americanos são tão religiosos e por que o socialismo nunca deitou raízes entre eles?- vão se tornar ultrapassadas no futuro próximo.

Ou, para dizer a mesma coisa com mais cautela, a questão da religião dificilmente irá se tornar irrelevante.

Em vista da implosão do capitalismo caubói dos últimos 25 anos e do opróbrio universal hoje dedicado a Wall Street, o socialismo americano hoje tem uma chance muito melhor de finalmente emergir do que tem a religião americana de ser relegada às margens culturais e políticas -não importa o que a direita possa temer ou o que os frustrados cosmopolitas americanos possam esperar.

Fonte: Folha de São Paulo

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