Um ataque aéreo de Israel matou neste domingo pelo menos 54 libaneses, incluindo 37 crianças, na cidade de Qana -a mesma onde um bombardeio israelense matou mais de cem civis, em 1996. Foi o maior ataque em número de mortos desde o início do conflito, iniciado depois que o grupo terrorista Hizbollah seqüestrou dois soldados israelenses, em 12 de julho.
O governo israelense lamentou o episódio e decidiu suspender os bombardeios no sul do Líbano por 48 horas, até que o Exército conclua um inquérito sobre o ocorrido em Qana. As autoridades, falando em condição de anonimato por não terem sido autorizadas a dar declarações à imprensa, disseram que a pausa deveria começar “imediatamente”.
O bombardeio provocou protestos na Europa e em países muçulmanos, fez crescer os apelos internacionais por um cessar-fogo e provocou a suspensão das negociações iniciadas no sábado na região pela secretária de Estado americana, Condoleezza Rice. O governo libanês, que acusou Israel de “terrorismo”, deixou claro que ela não seria bem-vinda a Beirute ontem, onde tinha uma visita planejada.
Durante todo o dia, equipes de socorro às vítimas em Qana, que fica a 85 km de Beirute e a 11 km da fronteira israelense, removiam com as próprias mãos os escombros do edifício de três andares, em cujo porão estavam mais de 60 refugiados. Eram membros de duas famílias que se escondiam ali em busca de proteção, por não poderem pagar um táxi para deixar Qana.
No resgate, corpos de crianças cobertos por poeira eram retirados de baixo dos escombros de concreto. Os últimos corpos a ser retirados dos escombros eram justamente os menores -às vezes intactos, mas com os pulmões destruídos pela forte corrente de ar do bombardeio.
Muitos morreram enquanto dormiam. “Por que atacaram crianças de um, dois anos, e mulheres indefesas?”, perguntava Mohamed Samai, que estava no local.
Os corpos foram enrolados em plástico e levados para uma tenda. Flores eram colocadas ao lado dos cadáveres. Duas escavadeiras, uma delas fornecida pela ONU, também eram usadas no resgate, mas os membros das equipes de ajuda diziam precisar de mais equipamentos para a remoção dos escombros.
Segundo testemunhas, no início da madrugada de ontem houve duas explosões no prédio. Os sobreviventes da primeira, desesperados, corriam de um lado para o outro, até que houve a segunda explosão. Foram encontrados oito sobreviventes, com ferimentos.
“Deus é grande”, murmurava um policial que levava nos braços um menino de no máximo dez anos, coberto por poeira e com nariz e ouvidos ensangüentados.
O resgate seguia, enquanto jatos israelenses continuavam sobrevoando a cidade.
Desacordo
A suspensão dos sobrevôos israelenses no sul do Líbano foi anunciada pelo porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Adam Ereli. Segundo ele, Israel manteve o direito de atacar se souber de ataques preparados contra o Estado.
Em Jerusalém, o porta-voz do Exército israelense disse não saber nada sobre um acordo para suspender temporariamente os ataques aéreos ao Líbano.
Um membro do Departamento de Estado disse, sob condição de anonimato, que Condoleezza Rice já estava negociando um acordo como esse antes do ataque a Qana.
Uma sessão extraordinária do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi convocada na manhã de ontem, e o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, instou o conselho a condenar o ataque e a pedir o fim imediato das hostilidades.
O premiê israelense, Ehud Olmert, “lamentou profundamente” o bombardeio, mas garantiu que a guerra contra o Hizbollah continuaria. Ontem, o premiê israelense disse a Rice que o Exército de seu país precisaria de entre dez e 14 dias para apertar a ofensiva contra o Hizbollah, segundo um porta-voz do governo.
A raiva tomou conta do Líbano e do mundo árabe. Manifestantes chegaram a promover quebra-quebra diante do prédio da ONU no centro de Beirute. O premiê libanês, Fouad Siniora, disse que não negociaria antes de um cessar-fogo.
O Hizbollah prometeu retaliação. “Esse massacre terrível não vai ficar sem resposta”, declarou. O grupo extremista palestino Hamas também prometeu ataques a Israel.
Pelo menos 561 pessoas foram mortas no Líbano desde o início do conflito, a maioria civis. Em Israel, os mortos são 51.
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A comunidade internacional condenou o ataque mais violento desde o início da guerra não declarada entre o grupo terrorista libanês Hizbollah e Israel. Ao menos 56 pessoas morreram nos bombardeios contra o vilarejo de Qana na madrugada deste domingo. Dentre as vítimas, 37 eram crianças, segundo fontes da polícia libanesa e das equipes de resgate.
Líderes da França, Espanha, Alemanha, Egito, Brasil, Jordânia e outros países condenaram os ataques, pedindo cessar-fogo imediato. “A França condena essa ação injustificável, que mostra mais do que nunca a necessidade de um cessar-fogo”, disse um comunicado do presidente francês Jacques Chirac.
O representante das Relações Exteriores da União Européia, Javier Solana, afirmou em um comunicado que “nada pode justificar” a morte de civis inocentes.
“Estou instruindo o Ministro das Relações Exteriores [Celso Amorim] no sentido de que o Governo brasileiro apóie o apelo de Vossa Excelência para que o Conselho de Segurança das Nações Unidas imponha cessar-fogo imediato ao conflito. Estou profundamente chocado, indignado e consternado”, disse Luiz Inácio Lula da Silva por meio de nota.
O presidente do Egito, Hosni Mubarak, classificou como “irresponsável” o bombardeio. Na nota, o presidente egípcio voltou a pedir um imediato cessar-fogo na guerra não declarada entre Israel e o Hizzbolah.
“Não é possível calar sobre isso (…). O silêncio equivaleria ao silêncio que guardaram durante muito tempo personagens e Estados frente à irracionalidade do nazismo, ao silêncio cúmplice diante do genocídio cometido contra o povo judeu”, disse o vice-presidente da Venezuela, José Vicente Rangel, em comunicado.
O presidente palestino, Mahmoud Abbas, acusou Israel de ter cometido um crime em Qana, no sul do Líbano, e pediu à ONU que instaure um cessar-fogo imediato.
Washington pediu a Israel que “tenha mais cuidado”, mas não mencionou um cessar-fogo imediato após o massacre, classificado como “incidente trágico e terrível” em comunicado do porta-voz da Casa Branca, Blair Jones.
O rei Abdullah, da Jordânia, tradicional aliado dos Estados Unidos e um dos poucos países árabes que mantém relações com Israel, disse que o ataque foi um “crime horrível” e uma gritante violação da lei internacional.
A secretária de relações exteriores do Reino Unido, Margaret Beckett, disse que a morte dos civis era “pavorosa” e reafirmou que o governo britânico defendia uma resposta proporcional de Israel ao Hizbollah.
O secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), por sua vez, que convocou reunião de emergência para domingo, disse ser necessário “que o Conselho [de Segurança] tome medidas para evitar que a situação se torne incontrolável e a escalada de violência se espalhe.”
Países do Norte da África também manifestaram sua condenação ao ataque de Qana. A Argélia chamou o bombardeio de “ato criminoso”, a Tunísia de “massacre horrível” e o Marrocos pediu uma grande ação da ONU para encerrar o conflito.
O Papa Bento 16 também pediu, durante a benção do Angelus, um cessar-fogo imediato no Oriente Médio. “Em nome de Deus me dirijo a todos os responsáveis por esta espiral de violência, para que as armas sejam depostas imediatamente por todas as partes”, disse em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas, perto de Roma.
Na manhã de ontem, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, afirmou estar “profundamente triste com a terrível perda de vidas inocentes”. “Queremos um cessar-fogo o mais rápido possível”, afirmou Rice, que teve sua visita ao Líbano cancelada.
Qana: sinônimo de massacre e local polêmico de um milagre de Jesus
A cidade de Qana no sul do Líbano, onde pelo menos 57 pessoas, dentre elas 37 crianças, foram mortas neste domingo em um bombardeio israelense, é há dez anos sinônimo de massacre de civis libaneses em confrontos entre Israel e o Hezbollah.
Durante a operação armada israelense no Líbano, denominada “Vinhas da ira”, dirigida contra o movimento xiita, vários obuses israelenses atingiram em cheio, no dia 18 de abril de 1996, um abrigo da ONU do contingente fijiano da Força interina das Nações Unidas no Líbano (Finul). O ataque deixou 105 mortos, entre eles vários civis que se refugiavam no local.
Esta matança marcou uma reviravolta na ofensiva. Diante da reprovação do mundo inteiro e dos incessantes apelos pelo fim das hostilidades, um cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah foi concluído em 26 de abril.
O cessar das hostilidades estabelecia que os beligerantes, o Exército israelense e sua milícia complementar, o Exército do Líbano Sul (ALS) além dos grupos anti-israelenses, principalmente o Hezbollah, não poderiam realizar ataques contra ou a partir de zonas habitadas para que os civis fossem poupados.
A operação “Vinhas da Ira”, desencadeada no dia 11 de abril de 1996, que registrou cerca de 600 incursões aéreas israelenses e o disparo de 23.000 obuses, deixou em 16 dias 175 mortos e 351 feridos, civis em maioria.
Um relatório da ONU concluiu que o bombardeio a Qana teria sido provavelmente deliberado.
A Cidade de Qana-al-Jalil, ao sul da cidade de Tiro e a 85 km de Beirute, é para os libaneses o local das “Bodas de Canaã”, onde Jesus realizou seu primeiro milagre, transformando a água em vinho durante um casamento.
Uma prova da existência de Jesus Cristo seria uma gruta onde teria descansado, e as rochas nas quais estão esculpidas figuras humanas.
Para Israel, entretanto, o local bíblico mencionado no Evangelho de São João se situa em uma cidade homônima na Galiléia, próxima de Nazaré, a cidade onde Jesus Cristo passou a infância.
As pesquisas dos arqueólogos e estudiosos dos textos bíblicos fizeram pesar a balança em favor da tese israelense.
O apelo do xeque xiita de Qana, Jaafar Sayegh, pela construção de uma mesquita no suposto local do milagre, em 1994, forçou o Exército libanês a intervir para proteger o lugar.
Fonte: Folha de São Paulo e AFP