Sob o regime comunista, até 1989, muitos padres foram forçados a colaborar com a polícia política; hoje, arquivos comprometedores trazem de volta esse passado embaraçoso.

No seu minúsculo apartamento de dois dormitórios da Rua Krucza, no centro de Varsóvia, Eugeniusz Kliminski, um padre de 72 anos, não se cansa de fazer a sua chave USB girar na sua mão. Ela contém dezenas de documentos que, segundo ele afirma, poderiam comprometer uma parte do clero de uma única cidade, Gdansk. “Mas vocês acham que este seja o momento certo para revelar todas essas histórias?”, indaga Kliminski a ele mesmo, antes de varrer a pergunta com um movimento da mão.

Hoje, o passado comunista está de volta e paira assim como um fantasma sobre a Polônia. Todo mundo o considerava enterrado sob os escombros dos arquivos que foram destruídos depois da mudança de 1989, mas ele ressuscitou na esteira de uma política de “ordem moral” conduzida pela direita conservadora no poder. O primeiro efeito que esta produziu foi de quebrar a imagem de uma Igreja que teria sido por unanimidade resistente e mártir.

Assim como Karol Wojtyla, o futuro João Paulo 2º cujas fotos estão grampeadas nas paredes do seu apartamento, o Padre Kliminski ensinava na universidade e organizava acampamentos para jovens, o que fazia dele um alvo excepcional para a polícia comunista (SB) encarregada de infiltrar o clero.

Num belo dia de 1968, ele recebe uma convocação para se apresentar no café Metropol, a pouca distância do Palácio da Cultura, para se encontrar com um oficial, o “major Stanislaw”, que ele poderá reconhecer pelo jornal “Nossa Família”, que ele deverá carregar debaixo do braço. Eugeniusz Kliminski vai até lá e chega com meia-hora de antecedência. O oficial aparece. O padre levanta-se e vai ao seu encontro: “O senhor queria me ver?” Desnorteado, o oficial responde: “O senhor me conhece?” Para o padre, a batalha psicológica estava ganha: “Eu entendi que eu era mais forte do que ele”.

Na época, todos os padres e seminaristas eram sistematicamente fichados. A polícia comunista selecionava os perfis os mais solitários e frágeis que eram imediatamente vigiados, colocados sob escuta telefônica, até serem abordados por um oficial num café ou convocados a se apresentarem num poste de polícia. Alguns deles assinavam, em toda consciência ou ingenuidade, uma missão de colaboração e se viam atribuir um pseudônimo, tal como “Grey” ou “Adam”, aquele que usava o jovem padre Stanislaw Wielgus, um informante secreto da SB que, décadas mais tarde, em 6 de dezembro de 2006, seria nomeado arcebispo de Varsóvia pelo papa.

As suas confissões tardias, seguidas pela sua demissão em 7 de janeiro, acabam de desencadear a maior crise da Igreja polonesa desde a guerra. “Nós tínhamos recebido duas instruções: nunca assinar nada e relatar tudo aos nossos superiores”, retoma o Padre Kliminski, que também reconhece que era mais fácil resistir ao assédio da SB quando, assim como ele, um sacerdote pertencia a uma comunidade religiosa (os Padres “pallottinos”) ou era um pároco do campo. O clero das cidades universitárias, dos centros intelectuais e das instituições vinculadas ao episcopado, e os padres de periferia isolados eram os menos poupados.

Para Andrzej Paczkowski, um historiador especialista nos aparelhos de segurança comunistas e membro da comissão constituída pelo mediador polonês para investigar o passado de Dom Wielgus, “a polícia procurava recrutar colaboradores para obter informações sobre a Igreja, mas, sobretudo para “quebrar” (“zlamac”, em polonês) o clero. O objetivo era de comprometer o maior número possível de padres, obrigando-os a assinarem declarações”.

Como? Afagando a sua fibra patriótica, exercendo sobre eles uma chantagem por motivos de malversação ou de comportamento pouco condizente com a sua função, ou ainda por meio do “toma lá dá cá”. Na Polônia, para descrever as técnicas de corrupção dos padres, as pessoas brincam com as rimas das palavras “korek”, “worek” e “rozporek”: a rolha (a garrafa de álcool oferecida), a bolsa (presentes), a braguilha (chantagem relacionada a uma suposta ligação amorosa).

Até os anos 1980, 4.000 a 5.000 homens haviam sido recrutados pelo “departamento 4” da SB, encarregado dos “contatos” com o clero e cinicamente batizado de “Proteção da Igreja e das associações de crentes”. Na época, a polícia política contava 24.000 funcionários. “Cada funcionário operacional geria então, em média, 7,9 colaboradores!”, calcula, sorrindo, o historiador Paczkowski.

O número que está sendo aventado atualmente na Polônia, de 10% de padres “informantes secretos” (de um total de 15.000 padres diocesanos), é tão improvável quanto impossível de verificar. Além disso, nem todos eles eram colaboradores ativos. Um padre aceitava “assinar” para poder consertar o seu campanário, obter material de construção para concluir a obra da sua capela ou receber um passaporte e assim poder viajar para o exterior para empreender estudos ou dar conferências. O oficial da SB colocava o passaporte sobre a mesa, ao alcance da mão do padre, e propunha entregá-lo contra a promessa de o padre fornecer informações sobre as pessoas que ele iria encontrar, em Paris ou em Roma, e sobre os meios estudantis que ele iria freqüentar. Este jogo de “toma lá dá cá podia perdurar por semanas”.

Esses informantes nem sempre prestavam os serviços que deles se esperavam. Ao retornaram de uma viagem, muitos deles fingiam estar “mortos”. Mas outros falavam, acabavam cedendo, tal como aconteceu com Stanislaw Wielgus, recrutado pela SB desde 1967 – ele tinha então 28 anos – e que trouxe informações de Munique, onde ele era um tão bom agente que a polícia tentou, sem sucesso, fazer com que ele fosse admitido na Rádio Free Europe. Hoje, ele não tem consciência de ter “entregado nomes” ou “prejudicado alguém”, mas os documentos que foram encontrados com ele provaram o contrário.

A maioria resistia à pressão policial. Este foi o caso de Janusz Zyzniewski, um padre aposentado confortavelmente instalado na sua bela igreja de tijolos vermelhos em Varsóvia, e que conta: “O fato de aceitar uma garrafa de conhaque já equivalia a enviar o sinal para a SB de que ela poderia ir mais longe; eu sempre recusei”. Para desculpar aqueles que cediam, ele acrescenta: “A polícia não era nem um pouco estúpida; ela sabia muito bem corromper os jovens padres e seminaristas utilizando o seu ponto fraco: a vontade de viajar para o exterior, para estudar e seguir carreira”.

Os recalcitrantes tais como o Padre Zyzniewski se inspiravam nos exemplos famosos de Stanislas Wyszynski, o primado da Polônia, uma figure heróica da resistência ao sistema, de Karol Wojtyla, o arcebispo de Cracóvia, ou ainda de Jozef Glemp, o atual primado, os quais, assim como tantos outros, foram fichados, dotados de um pseudônimo, colocados sob escuta, seguidos, mas nunca assinaram nada.

Em Cracóvia, no santuário do “Tygodnik Powszechny”, a revista semanal dos intelectuais católicos, em meio a um cenário de jornais amarelados e de poltronas detonadas, Krzysztof Kozlowski, um ex-vice-ministro do interior durante o primeiro governo livre de Tadeusz Mazowiecki, relata as conversas que ele teve em 1989 e 1990 com a hierarquia católica e com o general Czeslaw Kiszczak, o último ministro do interior comunista. Aos bispos, ele pergunta se a Igreja está interessada em tomar conhecimento dos “papéis” comprometedores que a polícia política conseguira reunir sobre ela ao longo de quarenta anos. A resposta de Dom Bronislaw Dobrovski, o então secretário-geral do episcopado foi clara e concisa: “Não, para a Igreja, isso não é interessante. Isso não é da nossa conta. É da conta do Estado”.

A Igreja acreditava ingenuamente que os dossiês haviam sido destruídos durante o período de transição. O ministro do interior Kiszczak havia dado a ordem, em 4 de setembro de 1989, para queimar os dossiês do departamento 4 que se referissem ao clero, para não deixar sinais das perseguições comunistas contra a Igreja. A operação foi concluída em março de 1990. Mas os documentos do departamento 1, aquele da espionagem – relativos aos padres em viagem no exterior -, haviam sido conservados sob forma de microfichas.

Em abril de 1990, o mesmo general Kiszczak, movido pelo cinismo, confessará ao novo vice-ministre do interior, o católico Krzysztof Kozlowski, que ele havia incentivado a destruição dos arquivos relativos à Igreja, uma vez que a sua publicação seria para ela uma “catástrofe”.

Resumindo, por ocasião da queda do comunismo, diferentemente do que aconteceu na Tchecoslováquia e na ex-RDA (Alemanha do Leste), a Polônia, em conseqüência de um acordo tácito entre a Igreja e os últimos representantes da hierarquia comunista, optou por apagar o passado e voltar-se para o futuro.

Contudo, 17 anos mais tarde, o passado volta a assombrar a Polônia, que se mostra perplexa e questiona. Por que terá sido preciso esperar até 2003 para poder aceder aos arquivos da SB, que se encontravam conservadas no Instituto da memória nacional (IPN)? “Todo mundo é culpado”, argumenta Krzysztof Kozlowski. “O Instituto da Memória, que tardou a revelar a existência dos arquivos, o episcopado, que não quis arriscar sujar a imagem heróica da Igreja polonesa, e finalmente o núncio apostólico, que não transmitiu para o Vaticano as informações completas a respeito da situação, tal como foi o caso para a nomeação de Dom Wielgus”.

Em 1999, a publicação pelo historiador Andrzej Grajewski de um livro sobre os vínculos da Igreja com o poder comunista, intitulado “O Complexo de Judas”, havia disparado o sinal de alarme. Mas ninguém havia tomado qualquer atitude. A tempestade tem início logo depois da morte de João Paulo 2º, em 2005.

Uma avalanche de revelações respinga sobre padres conhecidos e mancha a sua imagem: Konrad Hejmö, o responsável das peregrinações polonesas a Roma, Mieczyslaw Malinski, um fiel colaborador de Karol Wojtyla em Cracóvia, acusado de ter falado demais, Michal Czajkowski, um colaborador da prestigiosa revista católica “Wiez”, a respeito do qual foram encontradas cerca de mil páginas dando conta da sua colaboração ativa ao longo de vinte anos com a SB, que o conduziu a denunciar outros padres. “Ele foi vítima de uma odiosa e longa chantagem relativa ao seu comportamento”, explica Zbigniew Nosowski, o seu redator em chefe, que publicou as suas confissões.

Em agosto de 2006, no santuário nacional de Jasna Gora (Czestochowa), o episcopado polonês adota solenemente um “Memorando” que estipula que o simples fato de ter consentido a entrar em contato com a SB é um “pecado público”. Esta formulação é incisiva, mas a comissão de inquérito histórico da Igreja só começa a trabalhar em outubro, e, em meio ao estardalhaço dos veículos de comunicação provocado pela nomeação do novo arcebispo de Varsóvia, o primeiro caso que ela investiga é justamente aquele do espião Wielgus.

“O episcopado se considerava como inatingível”, diz o jornalista da “Rzeczpospolita”, Tomasz Terlikowski, um dos primeiros a ter levantado a lebre. Aquilo não passa de um “silêncio corporativista”, confirma Piotr Cywinski, um dirigente do Clube dos Intelectuais Católicos (KIK) de Cracóvia. Desde então, surgiu uma divisão entre as gerações, e ainda entre os laicos que exigem a verdade e o alto clero. “Pela primeira vez, os laicos tomam a palavra num debate que diz respeito aos mais importantes assuntos da Igreja”, constata Piotr Cywinski.

Os jovens capelães ou vicários de paróquia estão na linha de frente deste debate. “O que responder a um adolescente que lhe pergunta se o clero mente?”, indaga um jovem jesuíta de Varsóvia, Witold Sokolowski. Eles estão zangados com a sua hierarquia, não por ela ter colaborado, e sim por ela ter adotado uma posição de perpétua denegação.

Já no mês de agosto de 2006, o nome de Dom Wielgus, apontado como um antigo colaborador havia sido citado num jornal sério, o “Przekröj”, numa menção que seria retomada na “Rzeczpospolita”. “Não existe nenhuma disposição que proíba a um núncio de ler os jornais”, observa o Padre Sokolowski, “nem de consultar os arquivos do IPN. Infelizmente, na Polônia, a visão de uma Igreja triunfante sobreviveu a João Paulo 2º, que dela fora o grande arquiteto. A maioria do clero ainda vive com uma concepção piramidal e autoritária da Igreja de antes de Vaticano II”.

Diante desses ataques, a voz de Jozef Zycinski, o arcebispo de Lublin, uma personalidade aberta, treme de emoção. Ele mesmo pediu espontaneamente a abertura dos arquivos que lhe dizem respeito e criou uma comissão histórica que vem passando um pente fino em todos os fatos e gestos dos professores da universidade católica da sua cidade. Ele denuncia “o clima obsessivo de caça às bruxas” que tem como alvos aqueles padres idosos, “o único grupo social ao qual está sendo pedido todo dia para fornecer as provas da sua inocência”.

A mesma revolta pode ser constatada com Dom Tadeusz Pieronek, um antigo secretário-geral do episcopado, que se diz aflito ao constatar o abismo que foi aberto na sociedade polonesa: “Os jovens são agressivos, assim como um enxame de abelhas que, da manhã até a noite, gira em volta de nós para obter mais notícias. Eles não entendem que o comunismo penetrava em cada detalhe da nossa vida, vasculhava o passado de cada indivíduo desde a maternal. Além disso, neste sistema, a Igreja era a primeira a ser atacada, porque ela tinha a força numérica, intelectual, moral”.

A Polônia é unânime em dizer que a Igreja deve ir até o fim nesta operação-verdade, qualquer que seja o preço a ser pago. “Na sua qualidade de instituição de confiança pública, ela tem o dever de passar a limpo todo o seu passado”, diz o Padre Sokolowski. Os mais reservados, entretanto, são os liberais, herdeiros da primeira geração do (sindicato) Solidarnosc no poder, fiéis à opção inicial de não remexer na lama do passado – o diário liberal-centrista “Gazeta Wyborcza” encarna uma linha moderada neste debate -, enquanto os mais hostis são os auditores fundamentalistas da poderosa Rádio Maryja, que apoiou até o fim Dom Wielgus, e ainda assumiu o risco de difundir, depois da sua demissão aceita por Bento 16, slogans anti-papa.

Surfando sobre a onda, a classe política no poder, dirigida pela direita encarnada pelos irmãos Kaczynski (do partido Direito e Justiça, PiS), acaba de apresentar as grandes linhas de um projeto de lei que alveja os antigos funcionários da SB. “Nós cometemos o erro de pensar que num país onde a Igreja tem sido altamente resistente, nós poderíamos ter evitado este debate sobre o passado”, comenta Marek Jurek, o presidente do Parlamento polonês. “Agora, o nosso dever passou a ser de cuidar dos carrascos”.

Fonte: Le Monde

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