A família de um índio de cinco anos internado em São Paulo decidiu chamar um pajé para salvar a vida do menino com um ritual indígena de cura.
Felipe, o indiozinho Kaiabi, tem uma doença grave. O fungo causador da criptococose se instalou nos pulmões e no cérebro do menino, que desenvolveu uma infecção respiratória crônica e também uma forma rara de meningite.
“Esse fungo existe na natureza. Então a gente pode pegar através de fezes de pombos, eucaliptos, mata, e normalmente a gente aspira esses fungos. A maioria das pessoas resolve essa infecção, porque têm defesas boas e acabam não desenvolvendo o quadro”, diz Maria Aparecida Ferrarini, pediatra infectologista da Unifesp.
Em 20 % dos casos, porém, pessoas sem qualquer problema imunológico, como Felipe, podem contrair a doença. “É uma criança que a gente não tem o que responder. A gente faz um toque no rosto dele, a gente conversa, cochicha com ele. Ele é muito risonho, ele é muito bonzinho. Ele só fica chateado mesmo quando ele está com a dor, que aí ele não quer conversa, ele chora”, diz a pediatra.
A meningite aumenta a pressão dentro do crânio, o que provoca dores de cabeça muito fortes. O tratamento é penoso: há sete meses, Felipe luta contra a infecção. Primeiro em Mato Grosso, e, nos últimos dois meses, no hospital São Paulo. “Ele está esgotado de hospital, ele quer sair porque é muito difícil, permanecer, para uma criança que é criada livremente, imagina um índio, você ficar preso numa cama”, diz Maria Aparecida.
A vida de Felipe nunca mais será a mesma. “Ele está cego e isso é irreversível”, diz a médica. Apático, o menino não queria comer e nem sair da cama.
Ajuda indígena
A família pediu, então, a ajuda de um pajé. Yawa Mi U foi trazido pelo projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo, que há mais de 40 anos trabalha com índios e hoje cuida de Felipe.
Para a tradição indígena, maus espíritos atrapalham o tratamento. “Porque ele tem os espíritos que está desviando o remédio da doença dele”, diz Yawa Mi U.
A pajelança levou quatro dias. “A febre que o paciente tem e a dor que o paciente tem penetra no corpo do pajé. A gente sente muito fraco quando a gente faz pajelança”, diz o pajé.
O indiozinho tomou também um banho com ervas medicinais e raízes. Esse remédio combate a febre e a dor do corpo. É um remédio que só o pajé sabe.
Viagem
A reza não terminou no hospital. O Fantástico acompanhou o pajé, de avião e de barco, até a aldeia de Felipe, que fica na região do Xingu, em Mato Grosso.
A reportagem visitou a oca do indiozinho e conversou com o avô dele. Ele dorme junto com a mãe e com o pai. Felipe já avisou: quer uma rede só pra ele quando voltar. “Já tem rede nova pronta”, avisa o avô.
O velho Kaiabi mostra também os remos de que o neto tanto gosta. “Ele gostava de remar quando ele estava bom de saúde.” Ele diz ter saudade do neto: “Para a família, faz falta. Faz bastante falta”.
Foi ideia do avô chamar o pajé para rezar pelo menino. “Eu estava preocupado muito com o meu netinho, com o Felipe. Tudo isso doeu pra mim”.
Na tribo, começa uma nova pajelança que completa o trabalho feito em São Paulo. A primeira parte do ritual é uma festa para o Felipe. O pajé pede pela saúde do menino e os índios acompanham.
A cerimônia continua dentro da oca, com os objetos de Felipe. “Nós confiamos bastante que ele vai melhorar mais e vai voltar para cá, para a família dele”, afirma o pajé.
Resultado positivo
Em São Paulo, uma surpresa. Felipe nunca deixou de tomar os remédios, mas de alguma forma a pajelança parece ter ajudado. A situação do menino mudou, diz Douglas Rodrigues, coordenador do projeto Xingu. “Ele não conseguia se movimentar. Tremia tudo, parece que sentia fraqueza”, diz o pai de Felipe, Mayup Kaiabi.
“Depois desses quatro dias de pajelança, hoje eu já vi outro Felipe, andando, sorrindo”, afirma Marcos Schaper, pediatra do projeto Xingu. Na última sexta-feira, o pequeno Kaiabi recebeu alta do hospital. Vai ficar em São Paulo por mais alguns dias, para fazer exames.
“Eu acho que não dá pra gente tratar a medicina do pajé, a medicina tradicional indígena com o mesmo enfoque que a gente faz com a medicina científica”, diz Rodrigues. “Pra mim o que importa é que o Felipe, que é a pessoa que eu cuido, acredita. Que a família do Felipe acredita que a comunidade do Felipe acredita. Isso pra mim basta”, diz o pediatra.
Fonte: G1