Os católicos que se divertem com a malhação do Judas, tradição folclórica do Sábado da Aleluia, deverão pesar o sentido dessa brincadeira, depois de ler o que Bento XVI disse nesta quarta-feira sobre o apóstolo que entregou Jesus à morte a troco de 30 moedas.

“Embora ele (Judas) se tenha enforcado, não cabe a nós julgar o seu gesto, sobrepondo-nos a Deus infinitamente misericordioso e justo”, advertiu o papa na audiência geral das quartas-feiras, falando a cerca de 30 mil pessoas na Praça de São Pedro, no Vaticano.

Bento XVI classificou como um mistério o fato de Jesus haver incluído Judas Iscariotes entre os seus discípulos, sabendo que ele iria traí-lo e outro mistério a sua sorte eterna, quando se sabe que ele se arrependeu e devolveu as 30 moedas de prata aos sumos sacerdotes e anciãos, dizendo “eu entreguei sangue inocente”. O papa disse que, após haver falado dos outros apóstolos nas audiências anteriores, não poderia deixar de mencionar “aquele que é sempre citado em último lugar na lista dos 12”.

Não se trata, certamente, de uma reabilitação de Judas, mas de uma análise sob nova perspectiva de seu perfil e das razões que o levaram à traição. A começar pelo sentido dessa palavra, embora os evangelistas se refiram a Judas como aquele que ia trair Jesus. “O verbo trair é a versão de uma palavra grega que significa entregar”, observou o papa, acrescentando que nesse sentido “em seu misterioso projeto de salvação, Deus assume o gesto indesculpável de Judas como ocasião do dom total do Filho pela salvação do mundo”.

Ao explicar a origem do sobrenome Iscariotes, o papa admite que possa ser uma variação hebraica de sicário, “alusão a um guerrilheiro armado de punhal, sica em latim”. Essa explicação confirmaria a hipótese de que Judas pertencia a um grupo de resistência a Roma e resolveu entregar Jesus a seus inimigos porque ficou decepcionado ao ver que ele não lutaria pela libertação do povo judeu, mas pregava o estabelecimento do Reino de Deus.

É a versão apresentada por várias obras de ficção, entre elas o filme “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, baseado no romance de Nikos Kazantzakis. “Jesus respeita a nossa liberdade”, disse Bento XVI, refletindo sobre o “mistério da traição”, que foi o fato de um apóstolo tratado como amigo ter podido ceder às tentações de Satanás.

Se Jesus sabia que Judas ia traí-lo, por que não evitou a traição? “Jesus espera a nossa disponibilidade ao arrependimento e à conversão, é rico de misericórdia e de perdão”, acrescentou o papa, depois de comparar o comportamento de Judas com o de Pedro, que também traiu, mas se arrependeu.

Evangelho de Judas

Frei Jacir de Freitas Faria, especialista em exegese bíblica e em textos antigos, achou interessantes essas reflexões de Bento XVI, depois de sua reação à divulgação de “O Evangelho de Judas”, livro dos primeiros séculos do cristianismo considerado apócrifo pela Igreja. “Em vez de criticar o texto, como se fez, seria melhor encará-lo como uma fonte de estudo para compreender o pensamento dos gnósticos”, observa o frade franciscano, professor do Instituto Santo Tomás de Aquino, em Belo Horizonte.

Segundo os gnósticos, Judas traiu Jesus para que se realizasse a salvação. “A descoberta do Evangelho de Judas nos permite rediscutir o papel de Judas na história do cristianismo”, disse frei Jacir, lembrando outros textos também apócrifos que apresentam outras versões sobre a traição. Um deles procura transferir a atitude de Judas para sua mulher, que o teria levado a vender Jesus por 30 moedas de prata. Outro texto conta que, ao descer à Morada dos Mortos (o limbo), após a sua morte, Jesus lá encontrou Judas e lhe perguntou o que tinha ganho com a traição.

Segundo o especialista franciscano, levanta-se também a hipótese de que Judas tenta sido colocado na lista dos apóstolos para dizer que os judeus traíram Jesus.

Fonte: Estadão

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