Levantamento feito pela Academia Chinesa de Ciências Sociais aponta que existam no país 23 milhões de cristãos.
Durante o feriado de Páscoa deste ano, a polícia chinesa prendeu 36 membros da congregação da Shouwang, a igreja independente mais famosa de Pequim, que comandava um culto público. A prisão foi decretada não contra a fé ocidentalizada, mas ao ato de demonstração pública, que é proibida pelas leis do país. Criticada sempre pelo Vaticano – que ainda mantém relações diplomáticas com Taiwan – a China tenta abraçar o crescente número de fiéis para mantê-los sob as asas dos ensinamentos de Mao, sem deixá-los formar mais um grupo de dissidentes dispostos a lutar e morrer por outro que não o Partido Comunista.
Levantamento feito pela Academia Chinesa de Ciências Sociais (ACCS) em 2010, o primeiro documento oficial a ser publicado sobre religiosidade na China, aponta que existam no país 23 milhões de cristãos ¿ o que representa 1,8% da população total e 73% da população de crentes ¿, sendo 5,7 milhões de católicos. No Império do Meio, onde as fés católicas e protestantes figuram na lista das cinco religiões mais seguidas (ao lado do budismo, taoísmo e islamismo), os centros eclesiásticos registrados legalmente perante a Administração Estatal para Assuntos Religiosos (Sara, na língua em inglês), somam 4,6 mil. Os protestantes chegam a 12 mil, conforme o site da entidade.
Com centenas de igrejas ainda na ilegalidade, o número de cristãos na China pode chegar a 130 milhões, como especula o portal norte-americano Cristão Hoje (Christian Today).
Conforme o relatório da ACCS, a maioria dos chineses que se dizem cristãos só terminaram a educação fundamental. Em torno de 70% dos 60 mil respondentes disseram ter se convertido ao cristianismo devido a casos de doença na família. O total de igrejas e templos levantados pelo documento chega a 55 mil.
A Sociedade Bíblica Unida (United Bible Society, em inglês), maior tradutora e publicadora de bíblias do globo, afirma que Pequim e a província de Hebei concentram o maior número de cristãos da China. No primeiro semestre deste ano, a Sociedade distribuiu 200 mil Bíblias e 800 mil Novos Testamentos entre as duas localidades. De lá, os volumes seriam partilhados pelo país.
[b]Histórico[/b]
A constituição chinesa garante a liberdade à religião e ao exercício de sacramentos por instituições registradas com o governo. É contra a lei, no entanto, a pregação em locais públicos e o missionarismo. Nas entidades registradas, o exercício da fé por chineses é liberado, ao passo que igrejas internacionais podem somente permitir a entrada de congregantes portadores de passaporte estrangeiro. As igrejas ilegais, se autuadas, podem ter prisão decretada dos fiéis e evangelistas.
Segundo a Sara, a primeira investida cristã na China data do século VII, quando missionários vindos da Europa (Inglaterra, Espanha e Escandinávia, em especial) e Estados Unidos trouxeram ao país o catolicismo. O protestantismo levou mais mil anos para entrar na China, com a primeira aparição notada no século XIX.
Quando a revolução comunista estourou e deu origem à República Popular da China, em 1949, missionários estrangeiros foram expulsos do país. O governo obrigou que os protestantes se reunissem sob uma única igreja, e assim o Movimento Patriótico das Três Autonomias (MPTA) foi criado. Essencialmente chinês, a entidade era baseada nos princípios de autoadministração, autossustentação e autopropagação, em vistas a dar vida à fé protestante para chineses independente de ministros estrangeiros.
Em 1957, a Associação Patriótica Católica (APC) surgiu no país, capaz de nomear bispos que seriam depois aprovados pelo governo. As igrejas eram inicialmente formadas por grupos de estudo litúrgico em residências privadas. A fim de oficializar o culto e manter controle sobre a crescente congregação, Pequim fomentou a criação de igrejas institucionalizadas. Prédios eram cedidos aos grupos de fiéis e havia o recolhimento de tributos pelo governo central.
Ambos o MPTA e a APC estão sob o controle da Administração Estatal para Assuntos Religiosos. Fundada em 1951, fazia parte do comitê para Educação e Cultura do Conselho do Estado. A entidade ficou fechada entre 1975 e 1979, quando foi reaberta diretamente abaixo do Conselho de Estado.
Com a Revolução Cultural iniciada em 1966, as instalações foram confiscadas pelo governo e transformadas em escolas e indústrias.
Bispos e pastores foram enviados para campos de trabalho forçado, ao lado de intelectuais e dissidentes. A religião foi mandada para a lista de ilegalidades, junto ao estudo superior (com exceção de estudos sobre Marxismo) e à leitura de publicações que não o Livro Vermelho, de Mao Tse-tung. A profissão da fé ocidental só seria legalizada novamente em 1979, quando o presidente Deng Xiaoping assumiu o poder.
Diversas instituições se recusaram a ficar sob o comando do Partido Comunista, corroborado através do Conselho Cristão Chinês, que divide o poder sobre as fés católica e protestante entre as entidades reguladoras Aliança Católica e Três Autonomias (Three-Self, em inglês). Outras congregações escolheram ficar na clandestinidade para fugir do peso fiscal, uma vez que os prédios confiscados durante a Revolução Cultural foram devolvidos na década de 1990. A negativa de registro motivou o país a abolir a cobrança de impostos de igrejas em 2005.
A fé protestante goza de mais liberdade do que a católica na China, motivada pelos laços diplomáticos mantidos entre a Santa Sé e Taiwan. O Vaticano é um dos 23 Estados que reconhecem a ilha como um poder independente, ao contrário dos tratados internacionais que reconhecem o princípio de “uma só China”, a República Popular, desde 2001.
[b]A igreja Cristã de Zhongguan Cun
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Na Igreja Cristã de Zhongguan Cun, no noroeste da capital Pequim, os cultos realizados aos domingos chegam a receber seis mil fiéis – maioria chineses. Na última noite dos finais de semana, a língua é trocada para o inglês, e o público assume feições mais ocidentalizadas.
O prédio em que funciona, construído em 2003, foi reformado e teve seu primeiro piso transformado em uma segunda sala de orações para poder comportar a congregação. A missa acontece na capela principal, no segundo piso, e é exibida em telões em ambos os andares, com legendas em inglês e mandarim.
Por fora, o prédio parece uma Bíblia aberta. No interior, o design pouco remete à concepção romana de igrejas conhecida no Brasil. De fé protestante, o centro de Zhongguan Cun tem apenas uma enorme cruz vermelha no centro do altar, de onde os pastores formados pelo seminário Yanjing Xian Xueyuan lecionam sobre as escrituras bíblicas.
A ministra de sobrenome Hua, casada e sem filhos, trabalha na igreja desde 2006, depois de ter sido formada pelo seminário. Ela é uma das três mulheres que compõem o quadro de pastores do local, completo por outros onze homens. Filha da primeira geração de cristãos em sua família, Hua diz ter se aproximado do protestantismo por vontade própria.
“Meus pais se converteram em 1980, no ano em que eu nasci, quando estavam passando por dificuldades. Mas eu escolhi este caminho para mim mesma, e não por influência de meus pais”, insiste, deixando claro que sua família não infringiu nenhuma lei do seu país, que proíbe as tentativas à conversão de laicos.
[b]Funcionamento[/b]
A igreja de Hua sobrevive, segundo ela, apenas das caixas de doações espalhadas pelos três andares do prédio abertos ao público. Os 14 ministros que trabalham no local não têm outras ocupações remuneradas fora da igreja; a congregação ainda conta com uma centena de voluntários para dar continuidade aos trabalhos, conta Hua. “Temos muitos casos de estrangeiros que vêm a Pequim e querem participar, além dos estudantes chineses que vão para o exterior e voltam seguidores da nossa fé”, continua.
No primeiro andar ainda há uma loja de artigos religiosos. Bíblias, que custam 70 yuans (R$ 17,32) e edições de bolso do Novo Testamento, vendidos a 10 yuans (R$ 2,47) são publicadas pela gráfica própria da igreja. No primeiro andar há ainda uma cafeteria, que é alugada a terceiros para ajudar na manutenção do prédio.
No terceiro andar funcionam os escritórios de trabalho. A porta de vidro é mantida fechada por meio de um sistema digital, acessado somente por meio de senhas. Do alto, os corredores são fechados por uma grande janela de vidro, a qual permite a visão panorâmica do salão de culto.
Em função de embates diplomáticos entre a República Popular e o Vaticano, nenhuma das igrejas instaladas na China é reconhecida pela Santa Sé, e nem os padres formados no país são ordenados pelo Papa. A China conta com seu próprio sistema de organização da fé ocidental, legalizada sob a Administração Estatal para Assuntos Religiosos.
[b]Relações com o governo central
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As igrejas reconhecidas pelo governo chinês são inspecionadas periodicamente, bem como os centros que oferecem sacramentos à população expatriada e de visitantes. “Há um entedimento entre as igrejas e o governo, e eles vêm revistar nossas instalações com frequência, para verificar extintores de incêndio e saídas de emergência”, conta Hua. Questionada se esses seriam os motivos reais das visitas (que não são realizadas de surpresa, ela ressalta), a pastora diz “ser apenas uma pastora”. “É preciso ir perguntar ao governo. Eu só sei fazer o que sei. Não quebro as leis, e não há nada que o governo possa fazer a respeito”, acrescenta.
A China ainda figura no topo da lista da Freedom House em termos de grau de perseguição religiosa. Uma dos pilares centrais do embate do governo com a religiosidade é o Falungong. Em 1999, seguidores da seita extremista organizaram um protesto em que reuniram 10 mil pessoas em frente ao Palácio do Povo. O evento culminou na morte de cinco pessoas, incluindo uma mãe e sua filha, que atearam fogo a seus próprios corpos na Praça da Paz Celestial.
A igreja Shouwang foi uma das que decidiu não se unir à linha “patriótica” criada pelo governo. Fundada em 1993, o líder religioso é eleito pelos fiéis, que passaram de 10 para mais de mil em 15 anos funcionando na clandestinidade. “Existe um entendimento entre o governo e suas igrejas”, explica Hua. As igrejas, quando decidem se formalizar por meio das entidades oficiais, passam a ficar sob o controle direto de Pequim.
Nestes últimos dez anos, o Partido Comunista vem estreitando o cordão umbilical que prende a liturgia ao seu controle. Problemas relacionados à legalidade da ocupação de prédios são apontados pela comunidade internacional como uma desculpa para terminar com o profissão da fé ocidental no dragão do oriente.
[b]Fonte: Terra[/b]